sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Errar é humano

Um dos obstáculos à excelência do ensino e da investigação, que se reflecte na vida pública e económica do país, é uma atitude errada em relação ao... erro. O tipo de atitude de que vou falar está entranhada na cultura portuguesa e é uma das raízes mais profundas dos problemas estruturais que afectam o país em muitas áreas, impedindo o desenvolvimento.

Essa atitude caracteriza-se por considerar todo o erro um escândalo, uma vergonha, uma nódoa indelével a ensombrar para toda a eternidade a alma de quem errou. Esta atitude cultural tem os efeitos perniciosos que passo a descrever.

Em primeiro lugar, torna impossível a discussão crítica de ideias. Na cultura nacional, discordar de alguém é visto com maus olhos. Porquê? Porque se entende que se duas pessoas discordam, pelo menos uma delas tem de estar errada — o que é verdade. Mas como estar errado é um escândalo, a cultura portuguesa desliza logo para a pluralidade de «perspectivas», para o relativismo fácil em que tudo vale, para a riqueza de «problematizações opostas» — recursos desesperados para evitar que se pense o escandaloso: alguém de nós os dois está a fazer um erro qualquer.

Esta atitude cultural implica imediatamente a troca de elogios mútuos sempre que duas pessoas que se prezam discordam, para garantir que não estamos afinal a dizer que pensamos que a outra está errada. O efeito disto é a paralisação da discussão racional de pontos de vista opostos. E o efeito disto é o empobrecimento cultural, pois é precisamente da discussão racional frontal, e sem tabus, de ideias opostas que nascem ideias melhores.

Na vida académica e escolar, o efeito desta atitude cultural perante o erro é devastador. Se alguém escreve um artigo ou um livro, é escandaloso que possa ter erros. Como tal, os autores apressam-se a usar todos os recursos possíveis para disfarçar os erros: muitas notas com centenas de referências, muitas citações, uma redacção embrulhada e falsamente erudita para desencorajar o leitor a pensar por si, etc. O resultado é precisamente o almejado: em Portugal, não há discussão filosófica entre pares. As pessoas publicam livros e artigos em português, mas ninguém discorda das ideias desses artigos e livros, que em qualquer caso estão enterrados em centenas de páginas de meros relatórios bizantinos do que os outros dizem. E assim a cultura filosófica nacional é uma quimera.

Em segundo lugar, esta cultura de intolerância ao erro tem um efeito paralisante. Se qualquer erro é um escândalo, tenho de garantir que o que escrevo não tem erros. Mas para garantir isso, tenho de levar anos a fazer o que poderia fazer em dois meses. Mas ao fim de anos a fazer a mesma coisa, uma pessoa aborrece-se. Por isso, mais vale nada fazer e ir ver futebol.

Felizmente, há cada vez mais sinais de que esta cultura paralisante e retrógrada está prestes a ser substituída por uma cultura escolar e académica desempenada, frontal, que encara a discordância e a discussão de ideias opostas como natural. No site de apoio ao manual A Arte de Pensar, há uma secção que encoraja as pessoas a expor aos autores os erros que encontrarem no manual. As pessoas da velha cultura ficarão chocadas: «Mas então estes idiotas escrevem um manual e admitem que tem erros? Que escândalo!» Sim, os autores admitem que o que fazem tem erros porque não são deuses nem daqueles académicos falsamente eruditos que por terem medo da discussão crítica escondem o que pensam por detrás de uma barragem de citações, palavras caras e parágrafos bizantinos. Ora, o que é irónico é que a probabilidade de haver menos erros quando se tem esta atitude é... maior. Porque esta atitude não bloqueia a análise crítica, a discussão frontal. Porque esta atitude é incompatível com a ideia peregrina de que cada qual é perfeito e sabe tudo e não erra. Porque com esta atitude as pessoas aprendem, corrigem-se, levam a sério as críticas e as críticas são feitas com seriedade e não com um ar de escândalo e incredulidade, dando a entender que, porque se fez um erro, a pessoa não tem qualquer valor intelectual ou académico.

Não há livros nem artigos sem erros. Platão errou, Aristóteles também, e Descartes, Santo Agostinho ou David Hume, Saul Kripke ou Donald Davidson e Quine. E Einstein, Fernando Pessoa e Mozart. Toda a gente comete erros. Tudo o que podemos fazer é ser tolerante mesmo para com os erros que consideramos muito graves, e esclarecer frontalmente por que razão pensamos que são erros, e como podemos corrigi-los. Claro que ao fazer isto podemos também estar a errar, e é assim que se gera o diálogo crítico racional: a outra pessoa pode dizer «Isto não é um erro, estás a ver isto mal porque te enganaste no seguinte...». E nada disto é escandaloso; pelo contrário, é encarado como a actividade principal e normal numa escola ou numa academia. É isto que, em grande parte, é uma escola ou academia, por oposição a uma confissão religiosa.

Compare-se a cultura escolar que encara o erro como um escândalo com uma cultura escolar que encara o erro como parte integrante do processo de aprendizagem. Se um erro é um escândalo, então o estudante será descontado por qualquer erro que fez, ainda que tenha feito outras coisas de muito valor. E isto é castrador. Pois se o aluno está a escrever um ensaio e sabe que qualquer erro será descontado na sua cotação, tudo o que ele irá procurar é fazer um relatório anónimo, que copie tão fielmente quanto possível as coisas que estudou. Esta é uma cultura escolar do copianço sofisticado: uma tese de mestrado, um livro ou um ensaio é apenas uma forma sofisticada de copiar fielmente e anonimamente as ideias dos livros alheios. No máximo, serve unicamente para exibir, tantas vezes com ademanes pavoneantes, que se compreendeu o que se leu. O que é manifestamente pouco.

Em contraste com esta cultura escolar, veja-se o que acontece aos meus estudantes. No meu departamento, os erros dos ensaios dos estudantes não contam. Só o que tem valor nos ensaios deles conta; e a originalidade é encorajada. Se o estudante escreve um ensaio com ideias boas que são fruto da sua reflexão, terá uma boa classificação, mesmo que tenha cometido erros algures. O estudante só tem notas negativas se nada do que disse, depois de excluídos os erros, tem qualquer valor. Isto não significa que os erros não sejam corrigidos; são-no, claro. O tutor corrige o estudante verbalmente ou por escrito; mas não o penaliza pelo erro. Deste modo, o estudante sente-se livre para tentar pensar por si e sabe que só isso lhe poderá dar boas classificações. Relatórios anónimos das ideias alheias nunca merecem mais de 50% quando são classificados. Por outro lado, os erros são eliminados naturalmente, no decurso da discussão aberta; o próprio estudante percebe que, para poder pensar correctamente sobre seja o que for, o seu pensamento não pode basear-se em erros. Mas ao mesmo tempo não fica paralisado com a perspectiva de cometer erros escandalosos; sabe que pode contar com a comunidade escolar para lhe corrigir os erros com bonomia.

Evidentemente, há erros e erros. Há erros muito graves e erros pouco graves. Mas quando se adopta a cultura do escândalo, todos os erros são escandalosos — todos são inacreditavelmente graves e quem os comete deveria cometer hara-kiri e desaparecer de circulação. Esta cultura é avessa ao desenvolvimento e é paralisante. Urge livramo-nos dela e passarmos a encarar o erro de forma natural, como uma oportunidade de ouro para entrarmos em diálogo com os nossos pares, com a alegria de quem sabe estar a dar a sua contribuição para fazer progredir a correcta compreensão das coisas. Se errar é humano, sabê-lo e assumi-lo é o que nos resgata do mais tosco provincianismo.

8 comentários:

r disse...

Junte-se este ao «Ofensa, insulto e discussão de ideias» e diria: «Na mouche!», ainda assim, há-de alguém pensar: "mais uma convertida [?] àqueles tipos da filosofia anlítica a papaguear o manual «Arte de Pensar»"... herrar é umano.

Esse temor do erro, nasce em casa, desenvolve-se na escola e persiste na sociedade e esconde, creio, um outro: o temor de dizer: não sei. Os portugueses sabem sempre alguma coisa sobre cada coisa, mesmo que nada saibam sobre as coisas.

Anónimo disse...

"O estudante só tem notas negativas se nada do que disse, depois de excluídos os erros, tem qualquer valor."

Se aos erros nao e atribuido o mesmo valor que aquilo que e escrito de forma certa entao segue que os erros estao a ser penalizados. Pode ser uma penalidade mais baixa que aquela que os seus pares aplicam aos seus respectivos alunos.
E discordo. O problema da discussao publica em Portugal (e nao so) nao parte e resultado principal da aversao patologica ao erro. E isso sim uma aversao patologica a critica e acima de tudo, e isto sim, gravissimo uma falta de cultura cientifica, o que significa tambem uma falta de ferramentas intelectuais para criar proposicoes fundamentadas e posteriormente avaliar as proposicoes a que se e exposto.

J.M.P.O disse...

Sou um estudante (de licenciatura) que usa/cita uma infinidade de bibliografia e faço-o com frequência.

Muito honestamente, não o faço para não errar (apesar de admitir que reflexamente possa ser por causa do erro) mas para: a) tentar perceber melhor o problema; b) conhecer a sua história; c) usar uma alavanca para compreender problemas intrincados com esse mas periféricos e que podem ter impacto na sua solução; c)tentar encontrar falhas para “aperfeiçoar”(ou tentar aperfeiçoar) a tese.

Parece-me também que somos muito pequenos face ao conhecimento que nos precede, apesar de nem sempre necessitarmos dessa bengala.

Quanto à penalização. Acho interessante esse seu ponto de vista mas parece-me que "não penalizar" o aluno poderá ser contraproducente. Um aluno com alguma imaginação irá para a prova dizer disparates sem se preocupar com a possivel reprovação. Para além disso favorecem-se os aproveitamentos do excesso de significação (penso que é esta a expressão de Ricoeur para a situação em que o meu interlocutor pensa que eu disse aquilo que eu não disse, se não é foi isto que eu quis dizer).

Concordo com o Sr. Professor na medida em que muitas vezes não se dão segundas oportunidades a quem erra. Também há muitos casos em que as pessoas se tornam alvo de chacota.

Ainda não há muito tempo que verifiquei que nos EUA muitos dos administradores de grandes holdings já tinham levado sociedades à falência, coisa que raramente acontece em Portugal. Quando perguntei porquê houve um professor que disse: “têm uma mentalidade diferente, já sabem que aquele administrador ficou mais experiente e com certeza não seguirá o mesmo caminho”.

Pode ser que o contributo não seja muito válido ou esclarecido mas não me pareceu que as coisas fossem tão lineares como o Sr. Professor expôs.

Desidério Murcho disse...

Obrigado pelos vossos comentários. Parece necessário esclarecer duas coisas.

Um aluno que escreve um ensaio muitíssimo bom, mas no meio do ensaio comete um erro, deve ter menos nota por isso ou não? A resposta é não, do meu ponto de vista. Os erros não contam. Se o ensaio sem o erro vale 100%, com o erro vale igualmente 100%. O aluno não é penalizado por errar. É apenas penalizado se o que fez não é suficiente para ter 100%.

Segundo, nada do que eu disse invalida o trabalho académico normal de conhecer a bibliografia relevante e discuti-la. Mas há uma enorme diferença entre penalizar um aluno só porque não cita livros ou bibliografia e penalizá-lo por nada dizer de valor. Se o que o aluno escreveu tem valor, por que razão vamos descontar só por não ter citado a bibliografia? Isso revela provincianismo: medo de que o aluno de facto esteja a dizer disparates da cabeça dele. Mas se somos incapazes de avaliar o que o aluno escreveu exclusivamente pelo que escreveu, é porque somos maus professores. As bibliografias e as citações devem existir quando são relevantes para a discussão em causa, e não como armas de arremesso para fazer o leitor encolher-se perante a autoridade dos citados.

Matheus Silva disse...

Estou de pleno acordo Desidério. Mas é importante também explicar para o aluno a relevância de conhecer, por pouco que seja, a bibliografia da área em questão. Se não fazemos isso o aluno pode até escrever um ensaio bem argumentado e inventivo, mas que repete teorias já refutadas na bibliografia. É claro, o grau de exigência pode variar se o aluno não é de filosofia, ou se é apenas um aluno iniciante, mas em qualquer caso é bom incentivar o recurso à bibliografia, não para citá-la, mas para conhecer os argumentos já discutidos.


Outra coisa que se deve notar sobre isso é que um aluno que utiliza bibliografia sem citá-la está a um passo de cometer plágio, não devemos esquecer disso.

Quanto aos erros: se são erros de pormenor, na maior parte das vezes são pouco relevantes para as idéias defendidas no ensaio do aluno. Se são erros argumentativos (o aluno defende um argumento inválido) fazem parte do ofício: que filósofo, de Platão até hoje não pode ser acusado de ter defendido um argumento inválido?

Anónimo disse...

Talvez seja possível aperfeiçoar a relação com o erro sem cair naquilo que me parece um erro de avaliação: avaliar o erro como neutro. O erro não é neutro, retira valor ao trabalho, por isso deve ser descontado.

Agora a capacidade de aprender com o erro é benéfica. Assim, o aluno que consegue progredir a partir dos seus erros deve ser encarado como mais promissor do que aquele outro aluno que, mesmo cometendo menos erros à partida, não consegue aprender com os seus erros ou nem sequer os consegue identificar enquanto tal.

WR

Anónimo disse...

Essa dos erros não contarem é de gritos. Onde chega a influência das ditas Ciências da Inducação.
António Verdadeiro-Nome da Silva
PS. Além deste comentário queria mandar uma boca mas como são proibidas vou fazê-lo noutro blogue.
E peço desculpa se não fui respeitoso. Eu tentei, se calhar errei.

Desidério Murcho disse...

Caros leitores

Cabe-me fazer mais um esclarecimento, apesar de isso estar dito no texto. Dizer que os erros não devem tirar pontos na avaliação do estudante não é dizer que o estudante não deva ser corrigido. Uma coisa é dizer-lhe "isto está errado porque x" outra coisa é tirar-lhe pontos por causa disso.

Quem pensa que errar tira pontos tem de conceber que o aluno tem 100% antes de começar a fazer o teste, sendo-lhe depois descontado pontos à medida que erra. Eu penso que isto não funciona. O aluno começa com 0% e não 100%. E chega aos 100% não se tudo o que disse é isento de erro, mas se disse tudo o que de correcto é suficiente dizer para ter 100%.

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...