domingo, 11 de janeiro de 2009

Piaget I: Ensinar pode impedir a compreensão?

“Cada vez que se ensina prematuramente a uma criança algo que ela poderia ter descoberto por si, ela fica impedida de a inventar e, por isso, de a compreender completamente” (Jean Piaget, 1937).

Esta foi a frase do biólogo, psicólogo e epistemólogo suíço, Jean Piaget (1896-1980), constante sua obra La construction du réel chez l'enfant, datada de 1937, que Nuno Crato recordou e discutiu na sua crónica do Semanário Expresso, de 20 de Dezembro do ano passado.

Trata-se duma frase que é frequentemente invocada como argumento de autoridade por académicos e responsáveis por políticas educativas: se Piaget escreveu o que escreveu, então, é verdade. E o que é que é verdade?

É verdade que a criança não deve ser ensinada, ou seja, direccionada para determinada aprendizagem pelo professor, porque, quando se encontra no momento apropriado para a fazer, é capaz de a fazer autónoma e criativamente (por si só e em colaboração com outras crianças) sendo que (só) desta maneira, atinge a compreensão.

Esta ideia de Piaget aparece reforçada numa outra obra de 1969 - Psychologie et Pedagogie -, que foi apresentada como “A resposta do grande psicólogo aos problemas do ensino”. No tópico dedicado aos métodos activos, este autor adverte para o facto de as actividades educativas proporcionadas à criança não deverem ser entendidas apenas como manipulação de objectos, mas também e, principalmente, como reflexão, abstracção e exploração verbal. Terão, no entanto, de ser espontâneas, e não impostas, sob o risco de permanecerem parcialmente incompreendidas (página 102).

Como Nuno Crato notou, temos hoje suficientes dados científicos para afirmar que, no essencial, esta ideia de Piaget está errada: as crianças precisam de ser ensinadas (ou seja, ajudadas pelo professor) para compreenderem e criarem.
Para tanto, não basta o jogo de assimilação e de acomodação ou o jogo da carga genética e da maturação combinadas com a simples exposição ao meio, por muito rico que ele seja. Ou, pelo menos, não basta para se adquirirem saberes e princípios civilizacionais abstractos e eruditos a que atribuímos valor e para se desenvolverem capacidades cognitivas que nos tornam verdadeiramente humanos.

Sabemos, portanto, com grande certeza, que os processos de compreensão e de criação não despontam naturalmente: requerem uma estimulação direccionada, que é, no presente, em grande medida, da responsabilidade das escolas e, claro, dos professores, seguida de um trabalho necessário por parte do aluno.

Acontece que os investigadores, mesmo os maiores, enganam-se e, neste particular, como, certamente, noutros, Piaget enganou-se. Mas, como já tive oportunidade de dizer a Nuno Crato, o mais grave não foi ele ter-se enganado; o mais grave é dispormos de observações empíricas credíveis que evidenciam o erro e continuarmos a persistir nele. Mais: afirmarmos o erro como um princípio pedagógico inquestionável, invocado-o para justificar medidas educativas que vão no sentido de deixar as crianças mais ou menos entregues a si própria ou entregues umas às outras, na esperança de que, assim, atinjam a verdadeira compreensão e se tornem criativas.

10 comentários:

Andrew Black disse...

É curioso que os entusiastas do "não ensinar, deixá-los aprender" eduquês, são os mesmos que advogam a escola a tempo inteiro e desde tenra idade, com "actividades" exuastivamente supervisionadas e planificadas. Assim, de uma assentada, destroem a aprendizagem espontânea e a aprendizagem escolar.

kafkazul disse...

Penso que a leitura que faz de Jean Piaget sobre o papel que a espontaneidade desempenha na aprendizagem e no desenvolvimento, e das respectivas implicações educacionais, se afasta de uma interpretação que considero mais fiel ao seu pensamento. Quando Piaget afirma que as actividades educativas proporcionadas à criança devem ser espontâneas, e não impostas, está simplesmente a enfatizar o facto de uma verdadeira aprendizagem, ou seja, para usar os conceitos piagetianos, uma aprendizagem em que o pólo da acomodação do pensamento predomine sobre o pólo da simples assimilação, implicar um papel activo do indivíduo. Como ele afirmou “(...) tudo aquilo que não é adquirido através da experiência e da reflexão pessoal não é senão adquirido à superfície e não modifica em nada o pensamento.” (Jean Piaget, 1965, Études sociologiques. Genève: Droz, p. 231).
Piaget nunca disse, que eu tenha conhecimento, que as crianças não necessitem de ser ensinadas para compreenderem ou criarem. É certo que Piaget defendeu os então designados métodos activos, que não podem ser confundidos com a secundarização do papel do professor, muito pelo contrário, por oposição a uma pedagogia tradicional. E no quadro dos métodos activos deu uma especial ênfase ao papel dos pares, em particular no que respeita à educação social e moral.
Ora, é precisamente neste duplo aspecto que, contrariamente ao que afirma, observações empíricas credíveis atestam a importância quer da actividade do sujeito na aprendizagem, quer no papel positivo que os pares podem desempenhar na aprendizagem. Um exemplo apenas: as investigações do Prof. Eric Mazur, da Universidade de Harvard, na qual uma síntese pode ser encontrada no seguinte link (http://mazur-www.harvard.edu/sentFiles/Mazur_53619.pdf).
Este mesmo professor afirmou, numa entrevista dada aos Professores Carlos Fiolhais e Carlos Pessoa, publicada na Gazeta da Física (http://nautilus.fis.uc.pt/gazeta/revistas/26_1/entrevista.pdf), que "ensinar é apenas ajudar a aprender e é esse o meu papel enquanto professor", uma frase que se fosse proferida por algum elemento das Ciências da Educação seria quase automaticamente rotulada de “eduquês”, pedagogia romântica e outros epítetos semelhantes.

Vivant Denon disse...

X: É preciso querer aprender.
Y: Deve-se ensinar a querer.

X + Y = 0

Carlos Medina Ribeiro disse...

O referido texto de Nuno Crato, intitulado «Ensine-me, por favor», pode ser lido [aqui].
Aliás, as crónicas que ele publica aos sábados, no «Expresso», são afixadas no «Sorumbático» três dias mais tarde, frequentemente enriquecidas com imagens.

Anónimo disse...

Concordo plenamente, mas acrescento: também é triste que, pegando numa afirmação já com décadas, se a use vezes sem conta para bater na aplicação de ciência à educação, esquecendo que, ainda no tempo de vida de Piaget, já nisto havia trabalho discordante, como os trabalhos de Vygotsky e Luria, já para não falar em trabalhos posteriores de Bruner. E desde então muito se evoluiu no estudo do ensino.
É como criticar toda a Física pelos enganos dos séculos passados, tão importantes, afinal, no caminho a seguir.

Mas Piaget estaria realmente errado na essência? Pensemos nisto: é verdade que sempre que alguém é ensinado, perde uma oportunidade de aprender por si. Mas, claro, oportunidades não são garantias! Daqui nasce um equilíbrio difícil para o professor. Isto qualquer bom professor sabe: se o aluno está "lá mesmo a chegar", mais vale deixá-lo esforçar-se um pouco mais, incentivá-lo a chegar por si; se está perdido, mais vale mostrar-lhe o caminho.

Anónimo disse...

Piaget foi tomado como uma referência incontornável no ensino da Psicologia, por exemplo, e daí até se ter tornado num referencial de verdades dogmáticas por muitos professores imbecis, no ensino superior de Psicologia, foi um passo.

Piaget é efectivamente um dos autores que mais contribuiram para a disseminação do aluno-centrismo e para a desvalorização/desautorização do papel do docente/educador.

Piaget é tão nocivo para o ensino como Rousseau, com a diferença de que o primeiro nos é exibido como um "cientista", em vez de epistemólogo metafísico.

Marta Bellini disse...

Piaget fez este comentário no livro Psicologia e pedagogia. Erro? Acerto? Será que não é erro para aqueles que tomam a educação somente pela ponta do ensino e se esquecem do aprender, de como as crianças aprendem e de como a escola e seus professores precisam conhecer a aprendizagem, ou melhor, as aprendizagens? Quando diz-se que é preciso ensinar na escola estamos falando da teoria de Piaget ou da escola que segue seus rituais arcaicos (estou falando do Brasil, mas creio que em Portugal a escola se assemelha à nossa), preguiçosa com professores que odeiam crianças, que não leem?
Para mim, a reivindicação do ensino na escola não foca a teoria de Piaget e, sim, a organização de nossa escola. Do contrário estamos a fazer fogueira para queimar pensadores (inclusive chamando-os como fez o anônimo de nocivo)e não fazendo o debate sempre democrático e necessário.

Anónimo disse...

Isaiah Berlin colocou Rousseau no panteão dos "inimigos da liberdade". Será que também ele deverá ser considerado como um inquisidor?

Qualquer pessoa liberta do "politicamente correcto", decerto entenderá que a adjectivação de "nocivo" tem a ver sobretudo com as ideias de Piaget e com o conceito de que qualquer criança é um pequeno cientista em acção, daí decorrendo a lamentável concepção de que o educador é um simples "animador" de aprendizagens.

A propósito, Rousseau, o cultor e amante das crianças, abandonou os seus próprios filhos num asilo...

O simples facto de se separar a "organização" da escola do que lá se ensina e como se ensina, revela um olhar tecno-burocrático sobre algo que não pode nem deve ser esquartejado pelo bisturi do positivismo.

Anónimo disse...

A formulação que conheço é esta: "Tout ce qu'on apprend à l'enfant, on l'empêche de l'inventer ou de le découvrir", apresentada em Conversations avec J.C.I. Bringuier, que o autor do livro atribui a Jean Piaget. A citação (que estou a tentar encontrar no texto original, na língua original) que inicia o presente apontamento contém uma modulação que me parece ser completamente ignorada na sua discussão posterior: o termo "permaturamente". A (suposta) citação que eu apresento é mais radical, não apresenta essa modulação. Mesmo assim, parece-me que o autor deste apontamento, bem como Nuno Crato, aqui referido, vão bem para além do que a frase de Piaget lhes permite - no meu entender - ir. Tanto quanto sei, Piaget nunca liderou qualquer movimento anti-escola, anti-ensino dirigido... Não vou repetir aqui o que já foi dito noutros comentários já aqui publicados, que considero muito bem feitos e tocando "contraditórios" oportunos.
Quanto ao artigo referido de Nuno Crato, já o li e fez-me lembrar aqueles provérbios ou citações que falam das andorinhas e da primavera; das nuvens e de Juno; do penso e do existo. É como se se dissesse: "EU não aprendi AQUILO sozinho, logo TODOS aprendem bem é se forem ensinados". E nada como AQUELE artigo, DAQUELES autores, sobre AQUELA aprendizagem específica para certificar a minha razão.
Como já escrevi noutro lado, tenho telhados de vidro, se calhar agora sou eu que estou a ir além do que me é legitimamente possível.

Haddammann Verão disse...

Vcs têm noção de que enquanto padres e pastores e a lama petista no Brasil ganham fortunas, os filhos dos brasileiros, garotos e garotas muito legais, ganham uma mísera bolsa pra ficarem enfiados como escravos pesquisando para fazer uma tese enquanto aparecem pulhas que sondam o que fazem, roubam o que produzem na banca, perseguem os piás na cara, e ainda dizem que “não se dêem ao trabalho de querer ir pra laboratórios ‘dar marteladas em pregos’”. Esse é o modo como ‘trabalham’ e pensam mentores do descambo civil no Brasil ao (des)serviço da teo-pulhítica que tá aí …
Em nome da Rebeldia Estudantil …
Ponderem sobre esta posição, se têm noção do que é ter amor pelo Brasil …
Os trabalhadores que pegam trem não estão em greve não, nem lutando pra tirar esse (des)governo ladrão, estão indo trabalhar E TOMANDO PORRADA E CHICOTADA: “Entrem aí seus escravos”. É a ’segurança’ da Teo-Pulhítica que amansa os ludibriados nas senzalas mistas na “paz” “abençoada” “sacralizada” “fiel”. O lula é o resto do excremento do bush. O dinheiro ROUBADO do brasileiro foi diretinho pra mão dos feitores da “crise do pânico”. Aí o canalha corre pra tirar fotinha de “bonzin” pra Educação.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...