As mensagens de correio electrónico que as editoras de manuais escolares enviam aos professores, nesta altura do ano lectivo, são tão interessantes quanto a sua estratégia de marketing presencial, a que me referi em texto anterior.
Atente-se na mensagem-tipo que se segue, destinada a docentes do primeiro ciclo do Ensino Básico, que considero, de entre as várias que li, de grande interesse, como objecto de reflexão pedagógica.
Olá Professor(a)
(nome completo do professor)
Estou de volta com uma coleção ainda mais completa e totalmente adequada aos novos programas, metas de aprendizagem e orientações curriculares.
Este ano, com os projetos de Língua Portuguesa – 1.º e 2.º anos, Estudo do Meio – 2.º ano e Matemática – 2.º e 4.º anos, ofereço-lhe um conjunto de recursos de apoio às suas aulas que contextualizam a aprendizagem de uma forma lúdica, interativa e motivadora.
Clique nos vários projetos em baixo e fique a conhecer toda a nova coleção.
Saudações intergalácticas!
(nome da editora, não dum representante).
Passo por cima da saudação usada – Olá –, muito mais adequada quando existe uma proximidade pessoal do que quando se trata de uma relação formal, como é o caso. Nisto de saudações, a nossa língua tem muitas peculiaridades que permitem esclarecer as relações interpessoais que estão em causa numa determinada circunstância.
Passo também por cima da inovadora expressão “saudações intergalácticas” (que noto ser acompanhada de ponto de exclamação, o qual, lembre-se, também é de admiração), por me sentir pura e simplesmente desconcertada com ela e não saber o que dizer.
Detendo-me, então, em questões pedagógicas que, afinal, é isso que mais interessa.
No primeiro parágrafo li que a colecção de manuais é “totalmente adequada aos novos programas, metas de aprendizagem e orientações curriculares”. Releio-o e confirmo: consta na frase a palavra “totalmente”… Se fosse “na medida do possível”, eu não escreveria este texto, mas, estando essa palavra, não posso deixar de me interrogar. Como conseguiram os autores articular as orientações do Currículo Nacional do Ensino Básico (2001), dos novos Programas de Português (2009) e das Metas de Aprendizagem (2010), de modo a que os seus manuais estivessem “totalmente” adequadas com elas?
É que, quem conhece e analisou, como eu conheço e tenho analisado, com grelhas e sem grelhas, sob este e aquele ponto de vista, parcial ou na globalidade tais documentos, percebe que a coerência entre eles deixa muito a desejar. O reconhecimento desta particularidade nos dois primeiros documentos (que deveriam ser absolutamente claros e compatíveis: um harmoniosamente na continuidade do outro, operacionalizando-o) terá sido um dos motivos que levou o Ministério da Educação a “encomendar” as Metas.
Portanto, diria que a palavra “totalmente” talvez não seja a mais apropriada.
Detenho-me também no segundo parágrafo para tecer duas considerações.
Uma – decorrente da oferta de “um conjunto de recursos de apoio às suas aulas”, a qual se afirma ser feita aos professores – prende-se com a tendência, que tenho vindo a constatar e que não posso aceitar, de se dar tudo pronto aos professores: planificações, materiais didácticos, fichas de avaliação… reduzindo-se estes profissionais a meros aplicadores de decisões tomadas por outrem para gerir o seu próprio ensino. O Ministério da Educação começou esta “tradição” e as editoras têm-na aperfeiçoado.
A investigação pedagógica preocupou-se com este fenómeno, que adquiriu ampla expressão nos Estados Unidos da América antes de a ter em Portugal. Nesse país, tais materiais, que agora vejo concretizados nos nossos manuais escolares, sobretudo nos materiais disponibilizados aos docentes, foram designados por “Currículos-à-prova-de-professor”. Deles se dizia poderem ser aplicados por qualquer professor, por pior que fosse, por mais mal preparado que estivesse. Esta designação é perfeita para designar o que referi no parágrafo anterior.
Outra – que decorre do entusiasmo pela contextualização da aprendizagem de uma forma lúdica, interativa e motivadora – relaciona-se com as crenças que alimentamos sobre como se deve ensinar, embora os resultados académicos que obtemos em todas as matérias contradigam essas mesmas crenças.
De facto, a investigação pedagógica também se tem preocupado em perceber se a contextualização e o lúdico constituem mais-valias em termos de aprendizagem. A resposta é muito simples: Não.
A contextualização, se entendida como a estratégia que consiste em situar as aprendizagens na vivência concreta, quotidiana, prática dos alunos, levanta problemas de desenvolvimento de competências abstractas, de restrição do conhecimento a adquirir. E, se incidente na vida privada e íntima dos alunos, não pode deixar de levantar problemas relacionais e éticos.
Também a transposição do lúdico para os ambientes de educação escolar é um erro. O lúdico e o trabalho devem ser separados para que a criança tenha, desde cedo, a noção de que há um espaço/tempo de aprendizagem formal e outro em que pode e tem o direito de brincar. Isto não significa, naturalmente, que os ambientes de aprendizagem devam ser pesados, taciturnos...
Sobre estes dois aspectos já escrevi neste blogue e continuarei a escrever.
A motivação é um outro assunto: o ensino deve contemplar esse aspecto, mas não da maneira como os manuais escolares desta editora preconizam. Havendo sufientente investigação pedagógica também neste campo, não posso deixar de perguntar: porque é que não é devidamente usada?
sexta-feira, 20 de maio de 2011
Totalmente?
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7 comentários:
Muito, muito obrigado por este texto, Professora Helena Damião.
Se todos os que devem e podem escrevessem assim, a educação/ensino no nosso país ainda voltava a ter futuro.
Olá, Professora Helena...
As estratégias de marketing são interessantes de analisar, como diz. Ainda ontem me chegou à mão o manual de uma Editora, que talvez até seja muito bom, ainda não tive tempo de o analisar, que oferece aos professores, no caso de o adoptarem, formação creditada (1 crédito)em TIC, a realizar em diversos pontos do país.
Boa!
Eu sou a favor da informalidade e agrada-me a tendência para se utilizarem cada vez menos os títulos mas realmente este email mais parece dirigido a uma criança. Quem o idealizou deve ser mesmo de outra galáxia.
por muitas razões ...o factor tempo e o nº de alunos nº de turmas tempo disponível versus necessidade de cumprir programas são algumas razões
quanto ao aspecto lúdico tem muitas facetas
devido à tv cabo e à internet muitos alunos encontram temas que consideram apelativos especialmente a nível científico
a nível experimental principalmente encarar o ensino da ciência nesta perspectiva pode dar bons resultados
pelo menos para alguns
não como uma receita aplicável a todos os professores
http://fiel-inimigo.blogspot.com/2011/05/exercicio-masturbatorio-em-eduques.html
Este assunto, manuais escolares, dava pano para mangas...
1 - “saudações intergalácticas”, quer dizer que o manual em causa poderá dar pelo nome de Galácticos ou Pequenos Galácticos, o que é sempre um bom nome para um manual. Poderia ser Planeta Alfa ou Viagem no Espaço que ia dar ao mesmo. Vivemos numa escola de extra-terrestes ;)
2 - a proximidade do "olá" deve-se às ofertas e permanente assédio de que os professores são alvo no período de adopção de manuais e que recebem com alguma gratidão entusiástica.
O mais importante:
1 - Desconfio do 'totalmente' e 'completamente' nesta questão dos manuais.
2 - Desconfio da quantidade de recursos disponíveis.
3 - Desconfio dos que acham que trazem 'tudo' (planificações, materiais, fichas de consolidação, fichas de revisão, fichas de avaliação, fichas de apoio ao estudo, livro de problemas, CD, DVD...) e que são oferta ou ao aluno ou ao professor.
4 - Desconfio das colecções de manuais que têm mais que um livro (curiosamente, a média é 3 por disciplina...).
5 - Desconfio do manual 'lúdico'.
O marketing é muito forte. As escolas são inundadas por dezenas de manuais que têm que ser (todos) analisados com o preenchimento de formulários para cada um deles. Isto quer dizer que, a levar isto a sério, os professores não poderiam fazer mais nada durante 15 dias ou mais... E as acções de apresentação? Recebi dezenas de mails, alguns reencaminhados pela própria direcção da escola, para a participação nessas acções.
É difícil chegar a um consenso na selecção de manuais. Geralmente não é adoptado aquele que eu acho mais interessante e inovador. Desta vez, 'consegui' 50%, mas tive que recorrer aos meus melhores argumentos e... fazer uma operação de 'charme' de 3 folhas A4. ;)
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