sexta-feira, 4 de setembro de 2009
O Estatuto da Carreira Docente e a Fenprof
Depois de merecidas férias, voltam os posts sobre educação de Rui Baptista:
“(…) num povo, onde essa minoria intelectual, que constitui o capital de orgulho de cada nação, se vê condenado a cruzar os braços com inércia desdenhosa ou a deixá-los cair desoladamente sob pena de ser esterilmente derrotado...” (Manuel Laranjeira, O Norte, 1908).
Sem sequer recuar aos primórdios do século XX, julgo que um dos males de que enferma o nosso ensino superior reside na confusão que se tem estabelecido entre os seus dois subsistemas, o universitário e o politécnico, uma confusão que remonta a décadas.
Ainda agora no Público, em notícia bem destacada, deparei com o seguinte título: “Transportes públicos já estão a metade do preço para universitários até aos 23 anos”. A ser correcta a notícia, estaríamos na presença de uma medida discriminatória porque abrangeria unicamente uma parcela dos estudantes do ensino superior. Mas não. Logo no seu parágrafo inicial são desfeitas as dúvidas: “Secretária de Estado diz que a medida visa tornar os transportes públicos ‘mais apelativos para os jovens’ [do ensino superior público ou privado], em detrimento do uso do transporte individual”. Mas, lamentavelmente, como se tratasse de filhos de um deus menor, surgem excluídos desta medida os alunos do básico e secundário.
Aliás, esta confusão, que quase apelidaria de institucional, tem dado azo a que o ensino politécnico se desvalorize a si próprio na indefinição de um estatuto que o dignifique sem ser através da tentativa de uma espécie de clonagem com o ensino universitário, a ponto de, anos atrás, a Federação das Associações do Ensino Superior Politécnico ter defendido, à outrance, que o ensino politécnico passasse “a formar mestres e doutores tal como as universidades” (Diário de Notícias, 26/10/96).
Era o assalto que se desenhava no horizonte a todos os outros graus académicos do ensino universitário, secundado pelo então presidente do Instituto Politécnico de Viseu, João Pedro de Barros, ao chamar a atenção para a injustiça de “os alunos do ensino universitário privado conseguirem notas mais altas que os alunos das Escolas Superiores de Educação (ESE) e passarem à frente destes, mesmo com uma preparação inferior”(Jornal de Notícias, 26/10/1996). Transferindo esta argumentação, sai ela bastante reforçada quando se aplica ao ensino universitário oficial, de maior exigência curricular, de mais longa duração e com classificações de diploma inferiores às do ensino politécnico público.
De lá para cá, “tudo como dantes, quartel general em Abrantes”. Continua a insistir-se numa situação no que tange à docência do 2.º ciclo do ensino básico em que se sujeitam os licenciados por universidades a uma competição desleal com os licenciados pelas ESE, com os direitos a sobejarem para estes e a escassearem para aqueles, em desrespeito pelo princípio sagrado de iguais deveres para direitos iguais, defendido em sociedades democráticas e respeitado em Estados de direito. Recue o leitor comigo no tempo. Um dos objectivos que levou à criação das ESE foi a elevação formativa dos professores do antigo ensino primário que era levada a cabo, com muita seriedade e dignidade, no então chamado ensino médio (Escolas do Magistério Primário). Essa formação passou a ser feita no ensino politécnico, mas a megalomania do corpo docente das ESE levou à generalizada abertura de cursos para a docência do 2.º ciclo do ensino básico com negligência do importante papel da formação de professores do 1º. ciclo, a base de uma bem alicerçada aprendizagem futura. Os responsáveis pela educação nacional deveriam ter o bom senso de reconhecer a actual injustiça. Não, não se trata de competição na conquista de mercados de trabalho. Trata-se, isso sim, de evitar os perigos advindos de uma deficiente alfabetização da juventude portuguesa que, neste momento, salta à vista de toda a gente.
E o que dizem os sindicatos? Em recente conferência de imprensa (Público, 2/9/2009) a Fenprof defendeu a revisão do Estatuto da Carreira Docente. Seria a altura soberana para, simultaneamente, se proceder à atribuição da exclusividade da docência do 2.º ciclo do ensino básico aos actuais mestrados universitários porque não se pode continuar a acreditar que, quanto menor for a preparação académica dos docentes, maior será a qualidade do ensino por eles ministrado. A competição desenfreada tem levado à diminuição da exigência dentro das próprias faculdades, que não querem que os seus formandos sejam prejudicados em concursos nos quais só conta a nota final do curso. Interesses particulares não podem justificar a má qualidade do ensino ministrado no 2.º ciclo do ensino básico. E não podem merecer o aval de certas cúpulas sindicais, que assim revelam estarem simplesmente ao serviço das suas clientelas.
Rui Baptista
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5 comentários:
"E não podem merecer o aval de certas cúpulas sindicais, que assim revelam estarem simplesmente ao serviço das suas clientelas"
E os advogados que defendem criminosos são mafiosos?
E os economistas que trabalham para aumentar o lucro das empresas são ladrões?
Os sindicatos existem para defender os interesses dos seus associados - a quem mais ninguém defende, aliás. O que tem isso de estranho???
José Simões.
Seja bem vindo!
As palavras que transcreve no início do seu post são de uma actualidade constrangedora. Nada parece contrariar a ideia de que está em curso um medonho processo de domesticação de professores(José Gil, Em Busca da Identidade - o desnorte, Relógio D´´Agua, 2009).
Outro dia ouvi uma professora dizer que a lei não permite a existência de uma ordem de professores por não ser esta uma profissão liberal. Será abusivo pedir-lhe que esclareça o que acabei de referir?
Cara Helena Ribeiro
Eu sei que a pergunta que formulou é dirigida ao Dr. Rui Baptista mas, se não considerar abuso da minha parte o ter a liberdade de opinar sobre a matéria, fá-lo-ei com as minhas desculpas pela intromissão.
O Estado considera que a profissão de professor não é liberal como justificação para não perder o domínio da escola, a submissão, dominação e domesticação dos professores.
Se a criação da Ordem dos Professores fosse autorizada, perderia um esplêndido campo onde implanta a sua ideologia, e marca a posição de poder centralizado, que é o caminho mais curto para a ditadura.
Como sabe, o Governo, por constituir-se como uma instituição a-científica, preocupada com a centralização da educação, perderia no confronto com a Ordem dos Professores por, contrariamente àquele, se constituir como uma instituição científica na medida em que, a sua preocupação central seria a de libertar-se do jugo que tudo subverte.
Pode aplicar-se ao caso o que L. Trotzky dizia em 1937:
"Dans un pays où l'État est le seul employeur, toute opposition signifie mort par inanition. L'ancien principe: qui ne travaille pas, ne mange pas, est remplacé par un nouveau: qui n'obéit pas, na mange pas."
Por isso a Ordem dos Professores não é autorizada.
Cordialmente
Caro João Boaventura,
Realmente dirigi-me ao Dr. Rui Baptista porque noutras ocasiões já falámos, por aqui, sobre o assunto. Se calhar nem o deveria ter feito, talvez seja abusivo da minha parte personalizar.
Quanto à sua intervenção, ao contrário, é sempre motivo de regozijo encontrar pessoas com disponibilidade para trocar ideias e informação.
Posto isto, estou de acordo com tudo o que diz, não tenho qualquer dúvida sobre os objectivos das governações a-científicas e, acrescento, a-éticas.
As minhas dúvidas em relação a este assunto são mais básicas. Segundo me disseram, a actividade docente não pode ser considerada uma profissão liberal porque os professores não trabalham por conta própria. Nunca me interessei por política nem por direito - mea culpa, concerteza o meu alheamento somado a muitos outros permitiu este estado de coisas -, mas este argumento parece-me realmente insólito.
O que eu queria perceber é com que argumentação legal se evita que os professores se organizem numa ordem.
Obrigada pela atenção
1. Em seu comentário, José Simões lança a pergunta que transcrevo “ipsis verbis”:”Os sindicatos existem para defender os interesses dos seus associados-a quem mais ninguém defende, aliás. O que tem isso de estranho???” Clarifico a minha posição. Para mim a estranheza reside precisamente aí. No divórcio existente entre a acção sindical e o papel das ordens profissionais que se complementam em outros estratos profissionais e se antagonizam no caso dos professores podendo criar a má imagem pública de a estes apenas interessar questões meramente laborais em que a deusa Minerva presta vassalagem ao rei Midas. Nesta minha crítica, incluo o Sindicato Nacional dos Professores Licenciados que deixou agonizar o projecto da criação de uma Ordem dos Professores. Razão tinha o nosso vate: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Infelizmente, raramente, para melhor...
2. Enviei para o “De rerum natura”,ía alta a madrugada, um novo post pelo interesse que esta temática despertou nos comentários aqui deixados pelos leitores Helena Ribeiro e João Boaventura. Costumo dizer que os comentários, por vezes, lustram tanto ou mais os post's que o próprio autor que corre o risco de deixar alguns importantes assuntos no tinteiro.São exempo disso estes dois comentários sobre a criação da Ordem dos Professores que chamam a atenção para o antagonismo criado entre sindicatos dos professores e que se não verifica em outros estratos profissionais em que a deusa Minerva se recusa a prestar vassalagem ao rei Midas.Como escrevi anteriormente, o próprio Sindicato Nacional dos Professores Licenciados que teve anos a fio este projecto como menina dos seus olhos entregou o ouro ao bandido, como soe dizer-se, deixando que a Associação Nacional dos Professores clame para si,alto e bom som, um percurso já percorrido e em extensão bem maior e bem mais valiosa por ele próprio. Mas a questão não está tanto nesta discussão mas mais na criação da Ordem dos Professores surja ela donde vier.
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