domingo, 29 de março de 2009

"À ESPERA DE GODINHO" - PRÉ-PUBLICAÇÃO


Do livro "À espera de Godinho" de quatro exilados portugueses na Bélgica, que a editora Bizâncio irá lançar em breve, trancrevemos com o acordo do autor e da editora, em pré-publicação, este trecho em que Manuel Paiva, físico jubilado da Universidade Livre de Bruxelas e especialista em fisiologia espacial, lembra em diálogo com um dos seus co-autores as circunstâncias da sua saída do país a meio dos anos 60 (na foto a igreja de S.Martinho de Aldoar, Porto):

"Jorge Oliveira e Sousa – Manel, quanto tempo estiveste desligado do país?

Manuel Paiva – Bastantes anos. Deixa ver… A minha mãe morreu em 1981 e ainda demos uma volta por lá, em mobilhome, no Verão de 1982. A minha mulher Irina e as nossas filhas tinham insistido para voltarmos. Depois, só fui esporadicamente até 1996. Foi nessa altura que Henk Olthof, um alto responsável na Agência Espacial Europeia e que conhecia as minhas origens portuguesas, pediu para que eu contactasse um grupo de investigadores portugueses que estavam interessado na medicina espacial. Convidaram-me então para ir fazer umas palestras a Portugal. Depois conto, se vocês estão interessados, mas ainda quero dizer uma palavrinha sobre o nosso jantar em casa do Jorge. Fiquei impressionado com o contraste entre a vida de estudante do José [Morais] e a minha: o José correu enormes riscos, enquanto que eu decidi, muito simplesmente, ir-me embora.

JM – Lembras-te em que circunstâncias?

MP – Perfeitamente. Em Janeiro de 1962 estava numa reunião familiar, em casa do tal tio graças a quem tinha obtido o passaporte, e tive uma discussão violenta com o confessor da minha tia, um beneditino que andava sempre lá metido. Exprimiu ideias extremamente racistas. Mostrava as mãos e dizia que muitas vezes tinham ficado vermelhas de tanta bofetada dada em pretos. Depois, a conversa virou para a ciência e a teoria da evolução e aí o diálogo tornou-se impossível. O resultado é que, ao chegar a casa, levei um raspanete monstro. Curiosamente, a minha mãe, que era a mais crente da família, era também a mais compreensiva. Nesse dia, convenci-me que os meus filhos teriam o direito de crescer noutro tipo de sociedade.

Quase 19 anos depois, a lição de tolerância da minha mãe emergiria da profundeza da minha memória durante o nosso último e breve encontro. Por vontade dos filhos não crentes, a cerimónia fúnebre realizava-se na antiga igreja de Aldoar, diante do altar de Nossa Senhora de Fátima que a minha mãe enfeitara durante tantos anos e onde, vezes sem conta, eu a tinha acompanhado, num ritual que começava pela escolha das flores no nosso jardim até, sentado nos banquinhos reservados à gente modesta, admirar a obra de arte final. A igreja estava cheia de muitos que há tantos anos não me viam e que queriam prestar uma última homenagem à minha mãe. Algumas palavras simples de gente humilde, vindas directamente do coração, contrastaram com a homilia, cuja intolerância culminou com uma frase que me foi dirigida com a voz e o olhar: “…porque a fé não são modelos matemáticos…”. Que a fé não é um ou vários modelos matemáticos é das raras frases que deve fazer a unanimidade entre gente sã de espírito, quaisquer que sejam as suas convicções. O padre não obteve o efeito desejado. Não deixei de o encarar, esperando que interpretasse, mais como a vontade de lhe dar um murro que de sentir um apelo místico vindo sei lá de onde. Pensei no que teria pensado a minha mãe, que deveria ter compreendido mas não aprovado o meu gesto, e limitei-me a cravar os olhos em quem deveria ter aprendido a não tentar tirar partido da fragilidade daqueles que respeitavam, contra as suas próprias convicções, a vontade de quem já não as podia exprimir. Fiquei imóvel como um esteio de granito, enquanto prosseguia um ritual bem meu conhecido e que sempre respeitarei, mas no qual nunca mais ninguém me poderá obrigar a participar. É pena que não tivesse comigo o Evangelho Segundo Jesus Cristo que Saramago ainda não tinha escrito e ter-me-ia apetecido recitar o Poema para Galileu, se já conhecesse o poema de António Gedeão.

Recentemente pensei nisto tudo, porque a minha filha Nathalie quis passar uns dias comigo na serra algarvia para falarmos da sua família portuguesa. Veio com a Coline, a minha última neta que ainda não tinha nascido, e o nosso acordo é que me limitaria a responder às perguntas e que a conversa seria gravada. Fomos ao Costa, na Fábrica, perto de Cacela, comer amêijoas e conversar. Como a primeira pergunta foi sobre as minhas recordações mais antigas, tudo começou pelas “actividades religiosas”, não na antiga igreja de Aldoar, mas no antigo cemitério, do qual a irmã da minha mãe, que toda a gente chamava Dona Rosinha, tinha a chave. Era uma pessoa com uma paciência de anjo e a conversa era, muitas vezes, sobre os que ainda hoje lá devem estar, incluindo ela própria. Os jazigos respeitavam a hierarquia social do Aldoar de então e enquanto eram enfeitadas as diferentes prateleiras, em que a hierarquia familiar também era respeitada, era-me explicado que os defuntos ali presentes nos observavam lá de cima e até agradeciam a nossa acção. Um dia, muito mais tarde, até talvez encontrasse pessoalmente o patriarca da família, Joaquim Lopes da Silva, nascido no dia de Natal de 1821 e que tinha trabalhado como um desalmado até voltar do Brasil com fortuna feita. Tudo me parecia então perfeitamente normal e não é estranho que, nas respostas à minha filha, mais que a igreja, fosse o cemitério a simbolizar a vida, no gosto de lhe transmitir recordações dos nossos antepassados. No avião, entre Faro e Bruxelas, pude ler o que a Nathalie tinha escrito e fartei-me de rir, pois como ela escreveu, très souvent la plume s’est envolée et a transformé la réalité… Menos de dois anos depois, no mesmo Costa, enquanto os meus netos mais velhos, o Alexandre e a Margaux, se regalavam com as amêijoas ali mesmo apanhadas, Coline descobria, no dia do seu primeiro aniversário, as delícias da pasta de sardinha. Por aí passa também a busca das raízes lusitanas.

Mas, para acabar definitivamente com histórias de padres: depois de um período de grande cumplicidade entre o padre e o meu pai, presidente da Junta de Freguesia, houve a ruptura. O padre não aceitou que o lavadouro que estava em frente da casa dele fosse coberto, pois as mulheres acordavam-no de manhã cedo, com uma enxurrada de palavrões, chuva celeste que era bem merecida. O conflito fez com que tanto o meu pai como o padre tenham sido substituídos nas suas respectivas funções por ordem das respectivas autoridades, isto é, o Governador Civil do Porto e o Bispo da mesma cidade. Infelizmente, a zanga tinha durado uns tempos, pois fui proibido de ir à igreja de Aldoar e obrigado a ir à de Nevogilde, a ida e volta a pé levando mais tempo que a missa! Depois veio um padre velhinho, muito simpático, mas não fazia a unanimidade das beatas, pois despachava as confissões a grande velocidade. Redescobri o ambiente paroquial português ao ler certos romances do fim do século XIX e a mentalidade paroquial das universidades ao frequentá-las recentemente. As amêijoas esfriaram mas a catarse ficou feita. Desculpem lá.

JOS – Por amor de Deus…

MP – Talvez não seja a melhor expressão…

JOS – Então se bem percebi, tomaste a decisão de deixar o país, depois de um simples episódio com o tal padre beneditino.

MP – Claro que isso foi a gota de água que fez transbordar o copo. Andava deprimido sem saber que rumo dar à vida e a partir daí tive uma finalidade. Sabia que com esforço poderia conseguir fazer física numa universidade fora de Portugal. Portanto, até Junho de 64 dei explicações, por vezes tardes inteiras, aos filhos preguiçosos da burguesia portuense. Talvez por causa disso, as lutas estudantis de 62 tiveram menos impacto em mim. Lembro-me também de ter passado a inspecção militar com mais uma centena de jovens nascidos, como eu, em Miragaia. Os médicos perguntaram-me se eu me queixava de alguma coisa e ficaram surpreendidos por eu dizer que não. Aparentemente era o primeiro do grupo que se sentia em boa saúde, talvez por ser o único que já tinha decidido ir-se embora."

1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

A igreja que se vê na foto é, de facto, a igreja antiga de Aldoar, no Porto. Para evitar confusões com a nova igreja paroquial, esta igreja é agora habitualmente chamada Igreja da Vilarinha. Vilarinha é o nome da rua em ela que se situa.

Como se vê na imagem, é uma igreja pequenina e muito simples, em tudo idêntica a muitas outras igrejas de aldeia existentes no Noroeste de Portugal. Ela é do tempo em que Aldoar ainda não fazia parte da cidade do Porto, sendo uma freguesia do concelho de Bouças, que é o actual concelho de Matosinhos.

Ainda hoje subsistem alguns (cada vez menos) vestígios da antiga ruralidade de Aldoar na Rua de Vila Nova, nas proximidades do Centro de Saúde.

Fernando Ribeiro

P.S. - Nota-se muito que moro em Aldoar?

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