Meu texto num dos últimos JL:
Lembro-me bem do dia 8 de Março de 2018. Chegou-me logo de manhã a notícia do falecimento do físico Stephen Hawking, notícia que ganhou destaque em todos os noticiários e foros de primeira página em todos os jornais do dia seguinte. Fiz umas declarações breves para as rádios e, como tinha uma viagem marcada para o Porto, fui atendendo chamadas de jornalistas ao longo do caminho. Estava um tempo invernal, apesar de ser quase Primavera. Dei no caminho uma longa entrevista ao Público, usando o sistema de mãos livres. esperando que fosse editada para extrair o principal, mas qual não foi o meu espanto quando no dia seguinte verifiquei que ela se espraiava por quase duas páginas: aproveitaram quase tudo o que eu tinha dito. No Porto fui aos estúdios de dois canais de televisão. Regressei a casa quase sem voz.
Sem voz viveu a maior parte da sua vida aquele que. nos tempos mais recentes, foi não apenas o físico, mas também o cientista mais famoso, para alguns – com algum exagero, como fiz questão de assinalar – chegando ao estatuto de Newton, Darwin ou Einstein.
O que tornou aquele professor de Matemática da Universidade de Cambridge – titular da mesma cátedra que Newton um dia tinha ocupado a ser alvo de tanta atenção? Por que razão, tal como Newton e Darwin, embora numa campa mais discreta, ele está sepultado na abadia de Westminster em Londres? A razão tem menos a ver com as suas capacidades na física – foi um investigador notável que fez propostas arrojadas na sua área da gravitação, que abrange os buracos negros e o Big Bang – do que a enorme incapacidade do seu físico.
Era, sem qualquer dúvida, uma mente poderosíssima, ampliada ao máximo, mas ela estava contida num corpo tolhido pela ELA – Esclerose Lateral Amiotrófica – e, portanto, reduzido ao mínimo. Ele próprio tinha a consciência que a sua fama vinha mais da sua deficiência do que da sua ciência. Era um cientista que não podia falar naturalmente e que andava numa cadeira de rodas que estava a tentar subir, metaforicamente bem entendido, aos ombros de Einstein, que por sua vez tinha subido aos ombros de Newton.
Aproveitou o melhor que pôde o mito que foi crescendo à sua volta, até porque, como ele dizia, tinha de «pagar às suas enfermeiras.» O seu livro Breve História do Tempo (1.ª edição, Gradiva, 1998), que muitos compraram – ter-se-ão vendido mais de dez milhões de exemplares em todo o mundo–, mas que poucos leram na totalidade e menos ainda perceberam (muitas vezes admira-se mais o que menos se compreende…) foi escrito por essa razão. A probabilidade estava toda contra Hawking quando aos 21 anos lhe foi diagnostica a ELA, que normalmente é fatal em menos de meia dúzia de anos. O certo é que ele, com uma inexcedível força de vontade, e com a ajuda de uma equipa de saúde, viveu até aos 76 anos, quase a média do tempo de vida média dos homens.
Existiam várias biografias de Hawking – incluindo a sua curta autobiografia A Minha Breve História (Gradiva, 2014) e documentários – e até um filme sobre uma parte da sua vida, Teoria de Tudo (2014, dirigido por James Marsh, com uma grande interpretação de Eddie Redmayne, premiada com um Oscar), baseado num livro biográfico da primeira mulher, de quem se separou para se vir a casar com uma das suas enfermeiras.
Mas faltava uma biografia que, mais distante da aura criada à volta do físico, mostrasse o ser humano que estava por detrás. Faltava «a» biografia. Esse livro saiu agora traduzido em português, do prelo da editora Kathartika, de Guimarães (que se tem especializado em biografias, principalmente de desportistas, empresário e políticos, como Roger Federer, Jeff Bezos e Vladimir Putin). Para a revista Science, é a «melhor biografia alguma vez publicada de Stephen Hawking». É seu autor o norte-americano Charles Seife, formado em Matemática pela Universidade de Princeton, professor de Jornalismo na Universidade de Nova Iorque e autor, entre outros, do elogiado livro Zero – A Biografia de uma Ideia perigosa, Gradiva, 2001).
O título Stephen Hawking tem o esclarecedor subtítulo Como vender uma celebridade científica. De facto, por muito grande que seja o mérito científico de Hawking, forçoso será reconhecer que o seu nome se tornou um produto de marketing, promovido pelo próprio e por várias outras pessoas à volta dele. Quando era precisa uma declaração sobre o fim do mundo – a versão da moda atribui a culpa do apocalipse à inteligência artificial – por muitos nomes que estivessem no abaixo-assinado, o que saltava sempre para a ribalta era precisamente o de Hawking, mesmo quando ele não tinha qualquer competência específica no assunto sobre o qual estava a emitir opinião.
O livro de Seife, muito bem escrito e traduzido (sou suspeito, porque fiz a revisão técnica) está escrito na ordem cronológica inversa em três partes – «Reverberação», «Impacto» e «Espiralamento». É como um filme que é passado ao c contrário, contrariando a famosa Segunda Lei da Termodinâmica (que tem uma versão para buracos negros, que Hawking estudou). Chegado ao fim das 471 páginas, não contando com as numerosas referências, o leitor perceberá melhor não só quem foi Hawking, com todos os seus sucessos e contradições, mas também o modo como funciona a nossa sociedade mediática. É clara a conclusão: «Hawking sempre suspeitou que, em grande medida, a sua celebridade – e mesmo, em determinado grau, o seu sucesso académico - recompensavam mais a enfermidade do que o cérebro.» Seife conta a seguir o afecto («uma devoção, mesmo»), de Hawking pela actriz Marilyn Monroe, da qual tinha várias fotografias nas paredes.
E, a propósito, vem uma clara revelação. O realizador Errol Morris, autor de um dos documentários sobre Hawking, disse-lhe um dia sobre Marilyin: «Tal como o senhor, ela era uma pessoa valorizada pelo corpo e não necessariamente pela mente». O físico lançou-lhe um olhar «tresloucado» e, depois de um tempo de espera, ouviu-se um clique e a bem conhecida voz artificial com timbre metálico: “SIM”. O autor da biografia conclui: «De todos os paradoxos da vida de Hawking, este pode vir a ser o mais profundo.»
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