quinta-feira, 27 de julho de 2023

POR MARES DA TURQUIA

Meu texto em As Artes entre as Letras: 

A costa da actual Turquia (a República Turca está a fazer cem anos) foi parte da Grécia Antiga ou Hélade, onde floresceu uma das civilizações mais extraordinárias da Humanidade – a civilização helénica –, da qual todos nós somos herdeiros.

Numa recente excursão pelas ilhas do Dodecaneso, repartidas entre a Grécia e a Turquia (a aversão entre os dois países continua a ser evidente), pude visitar alguns lugares da Hélade, no lado turco, designadamente os sítios de Halicarnasso (hoje Bodrum), onde se situa o mausoléu que foi uma das Sete Maravilhas do mundo antigo, e Cnido, no extremo da longa e estreita península de Datça, famosa pela sua estátua de Afrodite.

Ficará para outra ocasião visitar as ilhas gregas das redondezas, como a de Samos, terra de Pitágoras, a de Cós, terra de Hipócrates, e a de Rodes, a maior de todas, sítio do colosso que foi outra das Sete Maravilhas. 

Viajei num barco à vela, beneficiando da condução de um skipper italiano, experiente naquelas águas e ventos. Para mal dos meus pecados, conhecendo praticamente toda a Europa, ainda não tinha ido à Grécia, terra do meu imaginário desde que no liceu a professora de História nos mostrou luminosos slides da Acrópole de Atenas, que me levaram a escrever o meu primeiro escrito no jornal estudantil, sobre esse conjunto arquitetónico. Lembro-me de consultar e citar o livro Hélade (é uma antologia da cultura grega), da professora Maria Helena Rocha Pereira, na altura já uma sumidade dos estudos clássicos.

Agora fui à Grécia Antiga na Turquia. Finalmente, vi ao vivo algumas ruínas helénicas, assim como as cores do céu e do mar por cima e em volta delas. Bodrum, em cuja baía ancorámos para dormir numa das etapas da viagem, é uma cidade excessivamente turística. A algazarra estival dura até altas horas da madrugada, chegando aos marinheiros acampados no mar. Vende-se de tudo e mais alguma coisa, principalmente os chamados «falsos originais», isto é, roupas com símbolos de marcas famosas que são boas imitações, excepto no preço. 

De noite ou de dia, da terra ou do mar, a paisagem é extraordinária. O monumento dominante é o castelo de São Pedro, construído no século XV pelos Cavaleiros Hospitalários e hoje sede de um Museu de Arqueologia Submarina. Parece que, na sua construção, foram usadas pedras do mausoléu de Halicarnasso, que, nas faldas de uma encosta, não fica longe. Visitei as ruínas para confirmar o que já sabia dos guias turísticos: não resta muito do outrora imponente túmulo. A origem da palavra mausoléu vem daqui, pois o defunto para o qual foi construída a moradia supostamente eterna (os sismos e o vandalismo humano não o permitiram), um sátrapa, isto é, governador provincial, do século IV a.C., chamava-se Mausolo. A construção foi ordenada por sua irmã – e esposa! – Artemísia II de Cária, cuja paixão a terá levado, segundo a lenda, a engolir as cinzas do seu irmão-marido. É um símbolo do feminismo, não só por ter sucedido a Mausolo, mas por ter derrotado numa batalha naval uma armada de rodenses que não apreciavam o seu mando.

Plínio o Velho descreve o mausoléu original, de 45 metros de altura, belas estátuas no topo e baixos-relevos em volta. Foi a quinta maravilha do mundo antigo, depois da grande pirâmide de Gizé, dos Jardins Suspensos da Babilónia, do templo de Ártemis em Éfeso (na actual Turquia) e antes do Colosso de Rodes e do Farol de Alexandria. 

De Bodrum a Cnido são aproximadamente 25 milhas náuticas por um mar azul turquesa. Com bom tempo, é muito agradável. Fundeámos no porto de Cnido com vista para as ruínas, em particular para o grande teatro. Um bote levou-nos num pulo às ruínas, não evitando um refresco na esplanada marítima (preços europeus, euros aceites com gosto dada a inflação da lira turca!). Deu para perceber que Cnido foi uma grande cidade, um centro de arte e cultura no século IV (o «século de ouro» grego). A cidade antiga fica, em parte, numa pequena península ligada ao continente, também peninsular, por um istmo. Segundo Estrabão, «a cidade que foi construída para a mais bela das deusas, Afrodite, na mais bela das penínsulas». Na ciência, distinguiu-se o cnidense Eudoxo (408-355 a.C.), matemático, astrónomo e filósofo, que, após uma viagem de formação ao Egipto, fundou uma escola e um observatório astronómico. Calculou com precisão o tamanho do ano solar. Concebeu um dos primeiros modelos cosmológicos, que era servido um modelo de esferas concêntricas para o movimento dos astros, um antecessor do modelo geocêntrico de Ptolomeu. Construiu instrumentos e escreveu os livros Espelhos e Fenómenos, que infelizmente não chegaram até nós. Na arquitectura, salientou-se Sóstrato (séculos IV e III a.C.), que desenhou o Farol de Alexandria. 

Nas artes, é imperativo referir a famosa estátua do escultor grego Praxíteles de Atenas (c. 395-330 a.C.) feita para o templo de Afrodite em Cnido. Foi uma das primeiras representações do nu feminino, em tamanho real já que o nu masculino era a norma artística. Não se sabe bem como se perdeu o original, mas existem numerosas cópias e cópias de cópias (talvez a mais famosa seja a que está nos Museus do Vaticano), que nos permitem apreciar a representação da deusa a preparar-se para o seu banho ritual, de seios expostos e cobrindo o púbis com a mão. A estátua tornou-se um cânone da beleza feminina. Segundo uma anedota antiga, a própria deusa teria descido do Olimpo para se contemplar…

As primeiras escavações em Cnido, assim como em Bodrum, foram da responsabilidade do arquitecto inglês Sir Charles Thomas Newton (1816-1884). Foi ele que levou para o British Museum o espantoso Leão de Cnido, que assinalava uma grande batalha naval nas proximidades: não sei se a Turquia o reclama. Falta dizer que Cnidos albergou uma escola médica, que rivalizou com a escola de Hipócrates, o «pai da Medicina», na ilha próxima de Cós. 

Por falar em Cós, fui reler O Búzio de Cós de Sophia de Mello Andresen.

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