domingo, 16 de julho de 2023

O RECURSO À LÍNGUA PORTUGUESA

Por Eugénio Lisboa 

A língua portuguesa, originada no Latim vulgar ou popular, soube resistir, ao longo dos tempos, aos assaltos de invasores poderosos como os germanos e, depois, os árabes. A língua não morreu com essas ocupações, antes se enriqueceu de vocábulos novos, mas sempre preservando um núcleo central oriundo do latim. Levada pelos portugueses do século dos Descobrimentos aos mais remotos recantos do mundo, aí ficaria, preservada e acrescentada por vocábulos de sabor local e construções gramaticais que a latitude capitosamente inflectiu. 

Amada e trabalhada nas mais diversas latitudes e longitudes, ela viria a apresentar os mais aliciantes rostos: o poeta Afonso Lopes Vieira, que lhe dedicou dois lindíssimos pequenos poemas, deu-se a imaginá-la ao sol mais quente de outras paragens, transformada numa apetitosa mulata, sensual e provocante. E de glossário saborosamente acrescentado. Em Moçambique, em Angola, no Brasil, em Cabo Verde, escritores como José Craveirinha, Mia Couto, Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Pepetela, Luandino Vieira, José Eduardo Agualusa, Germano de Almeida e muitos outros souberam afeiçoar a língua e enriquecê-la dos modos mais inesperados, ao calor de outros sóis. 

Olavo Bilac, no Brasil, dedicou-lhe um soneto famoso, de que destaco apenas dois versos: 
“Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas de oceano largo!”
Ainda no Brasil, o poeta mineiro Oldney Lopes escreveu um “Poema à Língua Portuguesa”, de que retiro estes quatro versos: 
“É essa língua tórrida e faceira
Inebriante e meiga e doce e audaz
Que envolve e enleia a gente brasileira
E quem a utiliza é quem a faz.” 
Clarice Lispector, ucraniana naturalizada brasileira e grande ficcionista do país de Machado de Assis, deixou-nos este comovente testemunho:
“Sou brasileira naturalizada, quando, por questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor.” 
O escritor francês Valéry Larbaud, grande viajante e espírito cosmopolita, aprendeu o português para ler os nossos escritores no original e descobriu, fascinado, “a doçura e a graça de certos vocábulos” (Rodrigues Lapa). 

Mas a língua portuguesa tem sabido ser, ao longo dos tempos, o recurso e a pátria de tantos exilados ou estrangeirados que não pouco contribuíram para a acrescentar e modernizar: Camões, Garrett, Eça, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, José Rodrigues Miguéis, entre outros. 

Já no século XVIII, o francês Rivarol, fugido de França, para salvar o pescoço da guilhotina do Terror, agarrou-se à sua língua nestes termos: “A minha pátria é a língua francesa”. Dois séculos depois, o exilado alemão Herman Hesse, fugido ao terror nazi, dizia assim: “A minha pátria é a língua alemã.” E o eterno estrangeiro Fernando Pessoa faria a proclamação célebre: “A minha pátria é a língua portuguesa.” 

A língua é pois a única pátria possível para aqueles que saem do seu país e a essa pátria se acolhem, aumentando-lhe a dimensão, em forma de retribuição. Acrescentando-a. Autor: auctor, isto é, aquele que acrescenta. 

Para aqui sublinhar o valor insigne e a beleza da língua que Camões manipulou como ninguém, transcrevo o belíssimo poema “A Língua Portuguesa”, do poeta português Alberto de Lacerda, nascido na Ilha de Moçambique e tendo passado quase toda a sua vida adulta em Londres: 
“Esta língua que eu amo
Com seu bárbaro lanho
Seu mel
Seu helénico sal
E azeitona
Esta limpidez
Que se nimba
De surda
Quanta vez
Esta maravilha
Assassinadíssima
Por quase todos que a falam
Este requebro
Esta ânfora
Cantante
Esta máscula espada
Graciosíssima
Capaz de brandir os caminhos todos
De todos os ares
De todas as danças
Esta voz 
Esta língua
Soberba
Capaz de todas as cores
De todos os riscos
De expressão 
(E ganha sempre a partida)
Esta língua portuguesa
Capaz de tudo
Como uma mulher realmente
Apaixonada
Esta língua
É a minha Índia constante
Minha núpcia ininterrupta
Meu amor para sempre
Minha libertinagem
Minha eterna
Virgindade”. 
Eugénio Lisboa

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