Por Eugénio Lisboa
A língua portuguesa, originada no Latim vulgar ou popular, soube resistir, ao longo dos tempos, aos assaltos de invasores poderosos como os germanos e, depois, os árabes. A língua não morreu com essas ocupações, antes se enriqueceu de vocábulos novos, mas sempre preservando um núcleo central oriundo do latim.
Levada pelos portugueses do século dos Descobrimentos aos mais remotos recantos do mundo, aí ficaria, preservada e acrescentada por vocábulos de sabor local e construções gramaticais que a latitude capitosamente inflectiu.
Amada e trabalhada nas mais diversas latitudes e longitudes, ela viria a apresentar os mais aliciantes rostos: o poeta Afonso Lopes Vieira, que lhe dedicou dois lindíssimos pequenos poemas, deu-se a imaginá-la ao sol mais quente de outras paragens, transformada numa apetitosa mulata, sensual e provocante. E de glossário saborosamente acrescentado. Em Moçambique, em Angola, no Brasil, em Cabo Verde, escritores como José Craveirinha, Mia Couto, Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Pepetela, Luandino Vieira, José Eduardo Agualusa, Germano de Almeida e muitos outros souberam afeiçoar a língua e enriquecê-la dos modos mais inesperados, ao calor de outros sóis.
Olavo Bilac, no Brasil, dedicou-lhe um soneto famoso, de que destaco apenas dois versos:
“Amo o teu viço agreste e o teu aromaDe virgens selvas de oceano largo!”
Ainda no Brasil, o poeta mineiro Oldney Lopes escreveu um “Poema à Língua Portuguesa”, de que retiro estes quatro versos:
“É essa língua tórrida e faceiraInebriante e meiga e doce e audazQue envolve e enleia a gente brasileiraE quem a utiliza é quem a faz.”
Clarice Lispector, ucraniana naturalizada brasileira e grande ficcionista do país de Machado de Assis, deixou-nos este comovente testemunho:
“Sou brasileira naturalizada, quando, por questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor.”
O escritor francês Valéry Larbaud, grande viajante e espírito cosmopolita, aprendeu o português para ler os nossos escritores no original e descobriu, fascinado, “a doçura e a graça de certos vocábulos” (Rodrigues Lapa).
Mas a língua portuguesa tem sabido ser, ao longo dos tempos, o recurso e a pátria de tantos exilados ou estrangeirados que não pouco contribuíram para a acrescentar e modernizar: Camões, Garrett, Eça, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, José Rodrigues Miguéis, entre outros.
Já no século XVIII, o francês Rivarol, fugido de França, para salvar o pescoço da guilhotina do Terror, agarrou-se à sua língua nestes termos: “A minha pátria é a língua francesa”. Dois séculos depois, o exilado alemão Herman Hesse, fugido ao terror nazi, dizia assim: “A minha pátria é a língua alemã.” E o eterno estrangeiro Fernando Pessoa faria a proclamação célebre: “A minha pátria é a língua portuguesa.”
A língua é pois a única pátria possível para aqueles que saem do seu país e a essa pátria se acolhem, aumentando-lhe a dimensão, em forma de retribuição. Acrescentando-a. Autor: auctor, isto é, aquele que acrescenta.
Para aqui sublinhar o valor insigne e a beleza da língua que Camões manipulou como ninguém, transcrevo o belíssimo poema “A Língua Portuguesa”, do poeta português Alberto de Lacerda, nascido na Ilha de Moçambique e tendo passado quase toda a sua vida adulta em Londres:
“Esta língua que eu amoCom seu bárbaro lanhoSeu melSeu helénico salE azeitonaEsta limpidezQue se nimbaDe surdaQuanta vezEsta maravilhaAssassinadíssimaPor quase todos que a falamEste requebroEsta ânforaCantanteEsta máscula espadaGraciosíssimaCapaz de brandir os caminhos todosDe todos os aresDe todas as dançasEsta vozEsta línguaSoberbaCapaz de todas as coresDe todos os riscosDe expressão(E ganha sempre a partida)Esta língua portuguesaCapaz de tudoComo uma mulher realmenteApaixonadaEsta línguaÉ a minha Índia constanteMinha núpcia ininterruptaMeu amor para sempreMinha libertinagemMinha eternaVirgindade”.
Eugénio Lisboa
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