terça-feira, 8 de julho de 2014

Da vergonha, da falta dela e da incapacidade ética

Com a devida vénia, transcrevemos a crónica de José Vítor Malheiros no PÚBLICO de hoje, a propósito do processo de avaliação das unidades de investigação.

O processo de avaliação das unidades de investigação nacionais, levado a cabo pela European Science Foundation (ESF) por encomenda da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), cujos primeiros resultados foram publicados há dias, é uma vergonha e um desastre.

É uma vergonha para a FCT e para o seu presidente, Miguel Seabra; para a secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira; e para o Ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato. E é uma vergonha não apenas porque estas três pessoas são os responsáveis pela operação, mas também porque os três são investigadores e, como oficiais do ofício, não podem sacudir a água do capote invocando um desconhecimento das peculiaridades da área. E é um desastre porque esta avaliação é parte de uma operação de desmantelamento do sistema científico português e arrisca-se a destruir de uma penada instituições de referência que demoraram décadas a construir e a empurrar mais investigadores de qualidade para o exílio.

O processo de avaliação é uma vergonha porque suscita dúvidas sobre a competência técnica, a competência política e a competência ética de quem o dirige. Quanto à competência técnica, aquilo que se sabe até agora sobre o processo de avaliação torna claro que ele foi levado a cabo de forma superficial (se não negligente), descurando a análise da informação relevante sobre o trabalho das unidades de investigação avaliadas, sem discutir as avaliações com os avaliados, usando critérios incoerentes para avaliar diferentes unidades e por comissões de avaliação que não possuíam especialistas com as competências adequadas.

O processo levanta dúvidas sobre a competência política dos seus dirigentes pois nenhum deles parece dar-se conta de que, a prosseguir nestes termos, esta avaliação vai condenar à morte a prazo metade das unidades de investigação portuguesas, aniquilando áreas de investigação e deixando lacunas impossíveis de colmatar no conhecimento científico e tecnológico nacional, afectando de forma duradoura a credibilidade do Estado e a confiança que os investigadores e os agentes económicos possam ter nas decisões e promessas de política científica e de inovação.

Finalmente, em termos éticos, é absolutamente inadmissível que seja lançado um processo de avaliação onde os critérios não foram objecto de uma apresentação clara e de uma discussão prévia com a comunidade científica (tal como, infelizmente, a FCT já tinha feito com as bolsas de doutoramente e pós-doutoramento), onde não existe transparência na composição das comissões de avaliação, onde não houve o cuidado de incluir especialistas das diferentes áreas a avaliar mas onde o facto também não parece ter inibido os restantes de se pronunciar sobre áreas que desconhecem, onde não existe direito de recurso e onde são evidentes casos de enviezamento ideológico na avaliação. A título de exemplo, basta citar o caso da comissão de avaliação que entendeu criticar o interesse de uma unidade de investigação (o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL) pelas temáticas da desigualdade e das migrações, que considerou “esgotadas em termos de publicações” e exortá-la a dedicar-se a tópicos de pesquisa “mais inovadores”. O que dizer da qualidade científica e da lisura intelectual de uma comissão de sábios que entende não haver nada mais a estudar sobre desigualdade e migrações? E o que dizer da ausência de resposta por parte de Crato à vaga de críticas que a avaliação das unidades de investigação suscitou?

A incompetência ética não significa necessariamente desonestidade. As propostas de investigação chumbadas pela comissão de ética de um hospital não são necessariamente desonestas. O que esta incapacidade ética revela é um menosprezo pela transparência e pelo debate, pela equidade e pela isenção ideológica, pelo escrutínio dos cidadãos em geral e da comunidade científica em particular.

É verdade que é difícil ver racionalidade no que a FCT e Nuno Crato estão a fazer na investigação, mas gostaria de propor uma hipótese justificativa e alternativa da simples estupidez (que, por rigor metodológico, não deve porém ser descartada). Acontece que o investimento das últimas décadas na investigação nasceu de um consenso político laboriosamente construído, do CDS ao PCP, que sustentou um evidente progresso nesta área, beneficiou em cascata inúmeras outras actividades no país e contribuiu em larga medida para fazer de Portugal um país moderno.

Ora a direita furiosa que se encontra no poder não gosta de consensos (ao contrário do que proclama), muito menos de consensos sobre a importância de um papel central do Estado num sector vital para o país e menos ainda de consensos que sustentam ideias de independência, de autodeterminação e sentido crítico. A machadada que Nuno Crato quer dar na investigação é apenas uma forma de o governo mostrar que não existem sectores protegidos da austeridade, que não existem sectores que o estado assuma como responsabilidade sua e que o saber não possui um estatuto particular na escala de valores e na sociedade de mercado que a direita preconiza. O Governo quer mostrar quem manda.

3 comentários:

Anónimo disse...

Independentemente da concordância ou não com a opinião, este texto, não há discussão possível quando não se apresentam argumentos. Além das acusações para as quais o único exemplo apresentado foi o do CIES, que mais diz este texto? Isto não é um artigo, é um texto de panfleto e não se percebe como é que o jornal Público continua a publicar estas coisas. Vivemos numa realidade que necessita urgentemente de contributos sólidos e assentes em discussão séria e fundamentada. Guardem as vénias para os verdadeiros contributos à reflexão e acção sustentada.

Anónimo disse...

O Público tem todo o direito de publicar os «panfletos». É sempre interessante quando a conversa resvala para a questão de jornais publicarem ou não coisas. E ver como estruturas mentais de certas pessoas apontam sempre com espantosa facilidade para essa questão. Sinais dos tempos...

Deixe lá o Público e o que lá é publicado... Também há muita gente que gosta de ver as suas opiniões «sustentadas» por lá publicadas. E ainda bem que se pode ver disso. Por que não «sustentar» mais e deixar o que é ou não publicado para quando a temática for essa?

Anónimo disse...

Tem toda a razão. As minhas desculpas. De facto, a opção em ler as bocas de café é minha, seja no Público ou em qualquer outro lado. Que estupidez minha achar que um jornal diário deve publicar coisas que ficam bem é, por exemplo, num blogue. Conservadorismo, com certeza. Por isso o que faz sentido é ser eu, comentador de bancada, a sustentar a coisa num comentário a um blogue.
Então, assumindo o meu desconhecimento por não ter "inside information", e num claro tom opinativo, acho o seguinte:
- partindo do pressuposto que não há volta a dar este caminho de corte cego, acho que a avaliação ao CIES é vergonhosa e devia ser refeita;
- pelo que li na net (avaliações) e do que conheço de alguns centros, acho que muitas das avaliações de centros mal avaliados têm muita propriedade em muitas críticas. No entanto, há avaliadores que tecem comentários impróprios e demonstram claro desconhecimento da área em questão (se me recordo bem, com um comentário abjecto sobre migrações, por exemplo);
- por outro lado, acho que há muita gente que não sabe fazer candidaturas e acha que pode justificando-se com informação diferente da que estava na candidatura ou que nem seque lá estava (como li, por exemplo, neste blogue numa justificação sem sentido de um centro da Lusófona).
Enfim, poderia continuar mas sou da opinião que está na hora de jantar. Termino dizendo que para mim e nesta questão específica das unidades, o que está mal de raiz é o corte orçamental na ciência e uma política não articulada que corta abruptamente a capacidade de investigação existente, sem hipótese de preparação. Agora que há muita coisa que precisava de, no mínimo, um abanão forte, lá isso há.

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