terça-feira, 3 de abril de 2012

PRO MEMORIA: OS JUROS DO TALENTO


Por deferência do autor, uma vez mais, com o proveito e deleite de sempre, publica-se um novo e notável texto do ensaísta e académico Eugénio Lisboa (na imagem):

Numa mesa redonda de que fiz parte, na última edição das soberbas Correntes d’Escritas, que todos os anos nos são proporcionadas pela generosa e criativa municipalidade da Póvoa de Varzim, foi proposto, aos convidados para essa “mesa”, que glosassem um aforismo do escritor setecentista francês Antoine Rivarol. O aforismo, tal como nos foi apresentado, rezava assim: “As ideias são fundos que nunca dão juros nas mãos do talento.” Confesso que fiquei perplexo com o conteúdo da máxima.

Antoine de Rivarol (1753 – 1801) pode ter todos os defeitos (foi reaccionário, fazendo-se passar por conde, sem o ser), mas não costumava escrever coisas estapafúrdias, embora as pudesse escrever contestáveis. Concordava-se com ele ou não, mas o que dizia tinha sempre um sentido fácil de decifrar. Ora o aforismo que nos fora servido, sobretudo, enfatizado pelo advérbio “nunca”, era um total disparate.

Autor, principalmente, de um texto importante – “Sur l’universalité de la langue française” – Rivarol, com a aproximação da Revolução Francesa, começou a sentir-se desenraizado em França. Ali, já se não sentia “em sua casa”. Em 1792, os sinais começaram a ser-lhe francamente hostis: no ano seguinte, o Terror, que provavelmente antecipava, poderia ser-lhe funesto, dadas as suas ideias e as setas que dirigira a autores que a Revolução acarinhava. Vai, pois, para o exílio, nesse ano de 1792, primeiro para Bruxelas, depois para Londres, a seguir para Hamburgo e, finalmente, para Berlim, onde viria a falecer. Como todo o exilado – e ele começara a sentir-se exilado, no seu próprio país – Rivarol sentiu que precisava de segurar, nalguma bóia, a sua salvação identitária: como tantos, em idênticas circunstâncias, agarrou-se à língua, que celebrou no ensaio sobre a sua universalidade. E é dele, antes de outros, o famoso aforismo: “A minha pátria é a língua francesa”. Hermann Hesse, exilado alemão, na Suíça, segue-o de perto: “A minha pátria é a língua alemã.” E Fernando Pessoa, eterno gentleman britânico, exilado no meio de lu síadas, que lhe pareciam cómicos e de que fez desbocada troça, roubou, sem escrúpulos, o falso conde francês, ao proclamar, no “Livro do Desassossego”: “A minha pátria é a língua portuguesa.” Falo de roubo e falo bem, pois de puro pilhanço se trata (já o Eça pilharaVieira que pilhara Pascal...). Não era Eliot quem dizia que os escritores imaturos imitam e que os escritores maduros roubam? Quem, com talento, se torna ladrão, tem mil anos de perdão. E outros tantos de consagração. Bem está o que bem acaba. (Rivarol, que Voltaire elogiava, dizia isso mesmo, com seca brutalidade: “Le génie gorge ceux qu’il pille”, ou seja: “O génio massacra os que pilha.)

Voltando a Rivarol e ao seu suposto aforismo. Depois de ter quebrado a cabeça, a tentar achar-lhe sentido, resolvi que o melhor era ir ver se o “conde” tinha de facto dito tal coisa. Se melhor o decidi, melhor o fiz. E, em boa hora: o “conde”, afinal, tinha dito exactamente o contrário daquilo que lhe mandaram que dissesse às “Correntes d’Escrita”. O aforismo original rezava assim: “As ideias são um capital que só rende juros nas mãos do talento.” “Só” em vez de “nunca”. Tratava-se de um simples erro de tradução do francês. De qualquer modo, nem o aforismo falso está inteiramente errado, nem o aforismo verdadeiro está inteiramente certo: apenas pecam por excesso – um, por causa do “nunca”, o outro, por causa do “só”.

De facto, ao contrário do que diz o aforismo falso, há talentos e até grandes talentos que rendem juros materiais e imateriais (a glória). E, nalguns casos, juros bem elevados. O nosso João de Barros, pelas suas Décadas da Ásia, recebeu, do rei, o belo presente de uma propriedade de 130000 acres, no Brasil. Hemingway ficou riquíssimo, com um punhado não demasiado grande de contos e romances, o que lhe permitiu fazer dispendiosas caçadas em África e possuir casas em Veneza, nos Estados Unidos e em Havana (a famosa Quinta Vigia, ainda hoje visitável), além de um belo barco – Pilar – para pesca graúda. Simenon, com literatura policial e da outra, ambas de grande classe, ficou milionário. Um só conto de Hemingway – “The Snows ofthe Kilimanjaro” – rendeu-lhe, com os direitos de adaptação ao cinema, 250000 dólares. James Jones, que não é um talento maior, mas é um talento razoável, teve o que é, talvez, até hoje, o mais elevado pagamento por um trabalho literário. Recebeu, para alterar uma linha de um diálogo do filme “The Longest Day “ (O Dia Mais Longo), a soma de 15000 dólares. A linha dizia assim: “I can’t eat that bloody box of tunny fish” e Jones corrigiu para: “I can’t stand this damne dold tuna fish.”Cortou duas palavras e alterou quatro: por mexer em seis palavras, recebeu 15000 dólares, ou seja, 2500 dólares por palavra. Poucos, se algum, foram, até hoje, tão sumptuosamente pagos. Por outras palavras, Rivarol não tem razão, no seu categórico “nunca”. Mas tem, infelizmente, alguma melancólica razão. Alexandre Dumas, Pai, por exemplo, à hora da morte, e depois de uma longa e abundante carreira literária (1500 títulos, diz-se...), que deu best-sellers como “O Conde de Monte Cristo” e “Os Três Mosqueteiros”, encontrava-se na posse de apenas 40 francos. Iniciara a sua carreira com 53 francos no bolso, o que significava ter tido, numa vida de criação literária, um prejuízo de 13 francos. Em vista disso, queixava-se, ia ter de continuar a escrever [depois de morto], para recuperar os 13 francos. John Milton recebeu o equivalente a dez dólares de hoje, pelo seu “Paradise Lost” e Jonathan Swift, um dos maiores prosadores da língua inglesa, queixava-se de que, com excepção de “As Viagens de Gulliver”, nunca recebeu um tostão por nada do que escrevera. Freud colheu a pífia quantia de 200 dólares, em termos actuais, pelo seu livro ”A Interpretação dos Sonhos" (não que aquilo tenha grande valor científico, mas, enfim, hoje vende-se como pastelinhos de Belém). Edgar Poe viu o seu célebre poema “The Raven” (O Corvo), que Pessoa traduziu, rejeitado pelo “Graham’s Magazine”. Mas tiveram tanta pena do ar deprimido e esfaimado do poeta, que fizeram um peditório que rendeu 15 dólares, para o compensarem da não publicação. Eventualmente, Poe vendeu “O Corvo” ao “New York Mirror” por 10 dólares, mas teve que esperar ano e meio pelo pagamento. Balzac escreveu uma obra monumental e passou a vida a fugir aos credores. Enquanto Margaret Thatcher, já nos tempos de hoje, andou pelos Estados Unidos a receber 50000 dólares por conferências em que dizia coisas profundas, do género “Não se deve gastar mais do que se ganha”, no século XIX, o filósofo Ralph Waldo Emerson recebeu, por uma conferência, 5 dólares e aveia para o cavalo (e esta acabaram por não lha quererem pagar, alegando não fazer parte da combinação). Julia Ward Howe, pelo “Hino de Batalha da República”,recebeu 4 dólares. Erich Maria Remarque chegou a vender pedras tumulares para sobreviver. Por outro lado, o dramaturgo romano Séneca chegou ao fim da vida milionário (30 milhões de dólares, em termos actuais). Mas vivia de tal modo com medo de que o seu ex-discípulo, Nero, lhe mandasse envenenar a comida, que vivia frugalmente de água e maçãs selvagens: morto, apresentava-se emaciado de fome...

Antes de concluir, dou o cheque-mate ao não-Rivarol das “Correntes”: segundo o especialista Charles Hamilton, se uma das sete assinaturas conhecidas e atribuídas a Shakespeare fosse posta no mercado, valeria, no mínimo, 1 500 000 dólares. Melhor, só a de Júlio César, avaliada em dois milhões. Para concluir, podemos dizer que nem o Rivarol das "Correntes" nem o Rivarol de facto têm razão: um por causa do ”nunca”, o outro por causa do “só”. Quanto ao primeiro, vimos que o talento umas vezes não dá dinheiro, outras dá até bastante. Quanto ao segundo, sabe-se que a falta de talento não é impeditiva de se ganhar pequenas fortunas: os escritores televisivos que o digam.


Eugénio Lisboa,
Crónica publicada no“Jornal de Letras”, n.º 1082, de 21 de Março.

2 comentários:

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor Rui Baptista;

Este texto ajuda a perceber a ideologia dominante que se estende também à cultura e às artes do tipo «gato por lebre».

Cordialmente,

Anónimo disse...

Moral da história...



E escreveu Campos:

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

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