Na sequência de texto aqui reproduzido e recuando um pouco mais no tempo, percebemos que, entre nós, a nova Reforma de Bolonha corresponde a velhos anseios.
No Decreto-Lei n.º 74/2006 de 24 de Março, que legitima essa Reforma no nosso país, afirma-se: “A passagem de um ensino baseado na transmissão de conhecimentos para um ensino baseado no desenvolvimento de competências". O pressuposto é por demais conhecido: o Ensino Superior, tal como todos os outros níveis de escolaridade, deve (sobretudo) preparar os sujeitos para a vida activa, para o mundo do trabalho, para o saber fazer.
Assim dito parece uma revolução. Mas não é. Bernardino Machado na oração inaugural do ano lectivo de 1904-1905 proferida em 16 de Outubro de 1904, na Sala Grande dos Actos da Universidade de Coimbra, certamente influenciado pela ideias em que assentava o emergente e contagiante Movimento da Educação Nova, afirmava o seguinte:
(…) a evolução a fazer no ensino, em toda a parte, mas muito especialmente no nosso país, é identificar o estudo com o trabalho, de tal modo que a sociedade se não divida em duas castas, uma que só estuda e quase nada produz, outra que só trabalha e quase nada consome (…). Uma universidade é um laboratório, uma oficina modelo, onde professores e discípulos, como verdadeiros operários e aprendizes, não têm por ocupação consumir ideias, mas produzi-las. E uns e outros não se pertencem só mutuamente a si mesmos, não labutam exclusivamente pelo seu bem-estar e progresso, não produzem apenas para o seu próprio consumo; devem-se a todos, e mais que a ninguém, aos mais entrevecidos na ignorância e superstição”.
Quem o lembra é José Tengarrinha, que no livro Educação: Memórias e Testemunhos explica:
“Para compreender o significado da acusatória de Bernardino Machado é preciso ver o estado caótico em que se encontrava a nossa instrução pública, a ineficácia das sucessivas reformas, ou melhor, a ausência de reformas ou as reformas que nada reformavam (como a de 1901). É preciso ver esse ensino universitário sebenteiro, autoritário, elitista, divorciado do mundo exterior. É preciso ver, também, como a Universidade de Coimbra, onde professorava, permanecia inalterável nas suas estruturas, imóvel, inexpugnável (…).
Questão de extrema actualidade, também, sabendo-se como uma das principais carências de que sofre hoje a nossa universidade é a sua muito escassa ligação à sociedade. Tenha-se a ideia do que significava atacar esse problema numa altura em que o ensino em geral e, sobretudo, a Universidade estavam de costas voltadas para a realidade, incapazes de captar os sinais dos tempos, indiferentes ao que se passava lá fora. A escola em estreia ligação com a sociedade, a escola ao serviço do progresso, a escola como instrumento indispensável de desenvolvimento do País é uma tese insistentemente repetida sob diversos ângulos. Era revolucionário — e como tal foi vista pelos seus contemporâneos — a ideia de que nenhuma escola se fecha entre as quatro paredes da aula (…).
Não será necessário grande esforço de imaginação para ver o efeito destas palavras numa assistência tão fechada à mudança. Quem assistiu diz que enquanto uns, medrosos e mudos, se precipitavam para a saída, outros lançavam palavras desrespeitosas contra Bernardino Machado (…). A agitação atingiu tais dimensões, como não havia memória na solene Sala dos Actos Grandes da Universidade que, em 8 de Dezembro seguinte, foi organizada em Coimbra uma sessão de desagravo a Bernardino Machado. Eram já os sinais inequívocos do descontentamento generalizado contra o sistema de ensino, que iria rebentar na grande académica nacional em Março de 1907.”
Obra referida: Tengarrinha, J. (1998). Educação: memórias e testemunhos. Lisboa: Conselho Nacional de Educação/Gradiva, ps. 40-46.
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2 comentários:
Cara Helena Damião,
Desculpe mais esta reflexão provocatoria, em sintonia alias com o ultimo comentario que deixei por baixo do recente post de Rui Baptista.
Estou completamente de acordo consigo, mas re-encontrar (?) a função essencial do ensino universitario, não passara, paradoxalmente, por acabar com a sua função actual, mais ou menos assumida, de instância de selecção para o ingresso em determinadas profissões ? Para poder assumir verdadeiramente uma função social propria, a universidade não deveria voltar-se antes para a sua missão primaria de ensino geral, em vez de se procurar transformar numa instituição onde se aprendem oficios ?
E' que se a universidade passar a ser um centro de aprendizagem profissional, vai acabar por deixar de fazer qualquer sentido como instituição independente dos profissionais...
A questão tem a ver, afinal, com a propria natureza do ensino "universitario"...
Meus Caros "blogistas", afinal como evoluimos tão pouco, para ainda andarmos a dizer o que outros há tantos anos (séculos?!-Didáctica Magana) já disseram!... Pergunto eu em tom provocatório-não será tudo isto, afinal, resultado dum ensino que em vez de andar à frente do tempo teima em resguardar-se em velhos claustros e bolorentos preconceitos?
Eu por exemplo em 1982/3 tive de estudar sebentas - sebentas, mesmo! - de professores datadas algumas de 1969! É claro que - honra lhe seja feita - também tive outros professores que apesar da sua tese de doutoramento ser de 1973, creio, ainda só hoje se começam a vislumbrar os primeiros passos da sua axiomologia.
Ninguém é competente sem Conhecimento, mas este por si só de nada vale se não vier a resultar na aquisição e desenvolvimento de competências e de valores que tanto nos têm faltado em muitos domínios... excepto no da retórica! (Salvo honrosas execepções) E de retórica está este país farto.
Não vejo mal nenhum que a universidade se aproxime mais das questões da realidade social e económica e esta dos centros de investigação daquela. Agora, o que é preciso é não embandeirar em arco, como é nosso timbre quando alguém descobre uma pseudo-solução para os problemas. é preciso muita contenção com a adesão aos modismos, muito rigor e muita avsliação dos procedimentos, pois será no equilíbrio das decisões que a evolução se fará com os menores custos.E é aí que afinal se verá o estado das nossas competências pessoais e profissionais - no equilibrio entre o positivo do estado actual e a inovação das mudanças que se querem introduzir.
Aprendamos com os nossos clássicos, afinal tão contemporâneos eles já eram...
ze do mundo
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