Helder Guégués tece amavelmente algumas considerações a propósito da minha referência a "mereologia" no meu post "Incompetência Linguística, Oportunismo e Mentira Política". Até parece que estou obcecado com a chatice desta palavrinha, porque dei por mais de uma vez este exemplo simples. De modo que vou explicar algumas coisas.
A merologia é um "tratado dos princípios elementares de uma ciência", segundo o Aurélio; Houaiss afirma que é um "estudo dos fundamentos de uma ciência ou arte"; o dicionário da Porto afirma que é um "tratado elementar de qualquer ciência ou arte" e o da Texto afirma que é um "tratado dos princípios elementares de qualquer ciência ou arte".
Há uma enorme diferença entre ser um tratado elementar de X e ser um tratado dos aspectos elementares de X, diferença que parece escapar aos autores da Porto. Por outro lado, o Houaiss nada diz sobre aspectos elementares, mas antes sobre fundamentos, e nem sempre os aspectos elementares de algo coincidem com os seus fundamentos. A conclusão é que ninguém sabe realmente o que é a merologia. O Houaiss afirma que o termo foi usado em 1873 num dicionário de língua portuguesa, mas isso não é grande ajuda.
A coisa muda de figura quando consultamos o Oxford English Dictionary (OED). A merologia é "um ramo da anatomia que lida com os tecidos e fluidos fundamentais do corpo". Poderá um colega médico confirmar se usam este termo neste sentido em Portugal ou no Brasil? Se usam, então os dicionários de português que consultei estão errados.
Quanto a "mereologia", o termo é correctamente registado pelo Aurélio: "A lógica da relação entre as partes e o todo", mas ignorado pelos outros dicionários de língua portuguesa referidos. É também grafado correctamente pelo OED: "O estudo formal das relações entre partes e todos". Também o Collins inglês grafa correctamente o termo: "o estudo formal das propriedades lógicas da relação entre parte e todo". O Collins refere que a origem da palavra é o grego, via o francês, mas pode estar errado, dado que o OED apresenta a sua origem directamente na língua polaca, referindo os escritos de Lesniewski de 1927, que poderá ter formado incorrectamente a palavra a partir do grego "meros-" e "-logos". A questão é que mesmo que esta formação esteja originalmente errada, faz parte já da terminologia filosófica básica, é usada comummente na bibliografia especializada e registada nos mais completos dicionários, tanto ingleses como de língua portuguesa, como é o caso do Aurélio.
Espero ter esclarecido os leitores. A mereologia é a ciência que estuda as relações entre as partes e o todo e nada tem a ver com a merologia, que a existir é um ramo da anatomia.
A pobreza linguística portuguesa é constrangedora, sempre que se tenta fazer qualquer coisa mais com a língua do que escrever disparates como eu escrevo em jornais diários ou em blogs. A língua portuguesa não é culta; é uma língua que serve para comprar batatas e para as pessoas se insultarem na Internet; serve também de arma de opressão social, para algumas pessoas exibirem a sua imaginada superioridade corrigindo a ortografia, o léxico ou a sintaxe dos outros, invocando autoridades pardas de um imaginado passado intelectual glorioso português que nunca existiu, ou argumentos circulares baseados em etimologias puristas. (O que deveria fazer essas mesmas pessoas defender o termo "cona" em vez de "vagina", que tem uma etimologia muitíssimo mais sensata, como se defende aqui.)
O problema, claro, não é a língua; a pobreza linguística limita-se a reflectir a pobreza científica e cultural. As línguas adaptam-se às nossas necessidades. E enquanto as nossas necessidades não passarem de pôr ou tirar mais uma ou menos uma consoante muda, continuará a faltar-nos a língua quando precisamos dela para fazer qualquer coisa mais sofisticada do que dizer asneiras na televisão. As aulas de ciências, economia e outras disciplinas, assim como muitas publicações académicas, são risíveis porque já é um linguarejar próprio, dificilmente identificável com o português, porque ninguém se dá ao trabalho de tentar alargar a língua na direcção da ciência e da cultura; a grande preocupação de alguns dicionaristas é incluir no dicionário qualquer disparate que qualquer pessoa diz em qualquer taberna, e que ao fim de dez anos já ninguém diz, ao mesmo tempo que considera irrelevante ler as publicações académicas para se manter a par do alargamento culto e científico da língua, colaborando ao mesmo tempo nesse alargamento para que seja sensatamente feito.
Gabriel García Márquez escreveu em Cem Anos de Solidão que "o mundo terá acabado de se foder no dia em que a literatura tiver de viajar no vagão de carga", e eu permito-me parafraseá-lo para dizer que o mundo de língua portuguesa se fodeu de vez no dia em que os dicionários se apressam a registar qualquer idiotice como "bué", ao mesmo tempo que insistem na inexistência de "mereologia" por razões de pureza etimológica.
A merologia é um "tratado dos princípios elementares de uma ciência", segundo o Aurélio; Houaiss afirma que é um "estudo dos fundamentos de uma ciência ou arte"; o dicionário da Porto afirma que é um "tratado elementar de qualquer ciência ou arte" e o da Texto afirma que é um "tratado dos princípios elementares de qualquer ciência ou arte".
Há uma enorme diferença entre ser um tratado elementar de X e ser um tratado dos aspectos elementares de X, diferença que parece escapar aos autores da Porto. Por outro lado, o Houaiss nada diz sobre aspectos elementares, mas antes sobre fundamentos, e nem sempre os aspectos elementares de algo coincidem com os seus fundamentos. A conclusão é que ninguém sabe realmente o que é a merologia. O Houaiss afirma que o termo foi usado em 1873 num dicionário de língua portuguesa, mas isso não é grande ajuda.
A coisa muda de figura quando consultamos o Oxford English Dictionary (OED). A merologia é "um ramo da anatomia que lida com os tecidos e fluidos fundamentais do corpo". Poderá um colega médico confirmar se usam este termo neste sentido em Portugal ou no Brasil? Se usam, então os dicionários de português que consultei estão errados.
Quanto a "mereologia", o termo é correctamente registado pelo Aurélio: "A lógica da relação entre as partes e o todo", mas ignorado pelos outros dicionários de língua portuguesa referidos. É também grafado correctamente pelo OED: "O estudo formal das relações entre partes e todos". Também o Collins inglês grafa correctamente o termo: "o estudo formal das propriedades lógicas da relação entre parte e todo". O Collins refere que a origem da palavra é o grego, via o francês, mas pode estar errado, dado que o OED apresenta a sua origem directamente na língua polaca, referindo os escritos de Lesniewski de 1927, que poderá ter formado incorrectamente a palavra a partir do grego "meros-" e "-logos". A questão é que mesmo que esta formação esteja originalmente errada, faz parte já da terminologia filosófica básica, é usada comummente na bibliografia especializada e registada nos mais completos dicionários, tanto ingleses como de língua portuguesa, como é o caso do Aurélio.
Espero ter esclarecido os leitores. A mereologia é a ciência que estuda as relações entre as partes e o todo e nada tem a ver com a merologia, que a existir é um ramo da anatomia.
A pobreza linguística portuguesa é constrangedora, sempre que se tenta fazer qualquer coisa mais com a língua do que escrever disparates como eu escrevo em jornais diários ou em blogs. A língua portuguesa não é culta; é uma língua que serve para comprar batatas e para as pessoas se insultarem na Internet; serve também de arma de opressão social, para algumas pessoas exibirem a sua imaginada superioridade corrigindo a ortografia, o léxico ou a sintaxe dos outros, invocando autoridades pardas de um imaginado passado intelectual glorioso português que nunca existiu, ou argumentos circulares baseados em etimologias puristas. (O que deveria fazer essas mesmas pessoas defender o termo "cona" em vez de "vagina", que tem uma etimologia muitíssimo mais sensata, como se defende aqui.)
O problema, claro, não é a língua; a pobreza linguística limita-se a reflectir a pobreza científica e cultural. As línguas adaptam-se às nossas necessidades. E enquanto as nossas necessidades não passarem de pôr ou tirar mais uma ou menos uma consoante muda, continuará a faltar-nos a língua quando precisamos dela para fazer qualquer coisa mais sofisticada do que dizer asneiras na televisão. As aulas de ciências, economia e outras disciplinas, assim como muitas publicações académicas, são risíveis porque já é um linguarejar próprio, dificilmente identificável com o português, porque ninguém se dá ao trabalho de tentar alargar a língua na direcção da ciência e da cultura; a grande preocupação de alguns dicionaristas é incluir no dicionário qualquer disparate que qualquer pessoa diz em qualquer taberna, e que ao fim de dez anos já ninguém diz, ao mesmo tempo que considera irrelevante ler as publicações académicas para se manter a par do alargamento culto e científico da língua, colaborando ao mesmo tempo nesse alargamento para que seja sensatamente feito.
Gabriel García Márquez escreveu em Cem Anos de Solidão que "o mundo terá acabado de se foder no dia em que a literatura tiver de viajar no vagão de carga", e eu permito-me parafraseá-lo para dizer que o mundo de língua portuguesa se fodeu de vez no dia em que os dicionários se apressam a registar qualquer idiotice como "bué", ao mesmo tempo que insistem na inexistência de "mereologia" por razões de pureza etimológica.
7 comentários:
Ó Desidério, eu não sei se o termo cona é mesmo mais sensato do que o termo vagina.
Acho bem avisar os leitores deste blogue, que irão visitar o link para o meu post, que o meu blogue é uma brincadeira para amigos onde eu me dou ao luxo de brincar como me apetecer, mentir, ser incoerente, etc.
Acho que isso é evidente, mas já agora!
O meu blogue é uma bandalheira que não merece a mínima consideração nem confiança.
Fiz aquela brincadeira com a cona e a vagina só para provocar. Sempre fui muito fraco aluno a português, sempre passei à rasca, e não sei nada de latim nem de etimologia.
Eu não tenho nada a certeza que antigamente o termo "normal" para vagina fosse cunnus (cona), se calhar já era considerado calão, ou havia outra palavra "melhor" que se perdeu.
Mas também é possível que a explicação que inventei, na brincadeira, esteja certa. Não tenho a certeza nem sou a pessoa indicada para a confirmar.
De resto, concordo com o post sobre os problemas da nossa língua.
Não vale a pena linkar o meu blogue porque aquilo é muito mau!
Boas postadas!
Concordo com a maior parte das coisas que disse o Desidério Murcho. Contudo, não posso concordar quando afirma que "A pobreza linguística portuguesa é constrangedora" e "(...) A língua portuguesa não é culta". Penso que este não é o local indicado para se discutir a "pobreza" ou "riqueza" da nossa língua, no entanto, existem provas dadas de poetas e escritores portugueses que demonstram exactamente o contrário. Para não falar dos estudos linguísticos de Alexandre Herculano e de Fernando Pessoa (penso que ainda não foram editados, mas tive o prazer de ouvir sobre este assunto a Prof. Luísa Medeiros do Instituto de Estudos Modernos da UN de Lisboa, no decurso de umas "jornadas pessoanas").
Realmente não existiu em Portugal um passado intelectual glorioso. Dos grandes filósofos só Suárez e Espinosa têm alguma afinidade com Portugal. Este apenas por ter pais portugueses, o primeiro por ter dado aulas em Coimbra.
Já quando afirma que "O problema, claro, não é a língua; a pobreza linguística limita-se a reflectir a pobreza científica e cultural", em termos gerais é isso que acontece, essa é uma das razões por que Portugal não marca a sua existência, segundo a tese de José Gil, que é bem verdade!
Caro LA: espero que tenha apreciado a brincadeira!
Gonçalo, os escritores de historietas e poeminhas não contam como produção cultural sofisticada. Sei que isto é uma opinião polémica porque as pessoas tendem a pensar que romances e poesia constituem o zénite da sofisticação intelectual, mas não concordo com esta ideia. A literatura não tem, nem de perto nem de longe, a sofisticação cognitiva da física ou da filosofia ou da matemática.
Desiderio:
Estiveste bem! (não te sintas insultado) :)
PS: So acho que este era um dos segredos mais bem guardados dos portugueses e agora olha...
"Por outro lado, o Houaiss nada diz sobre aspectos elementares, mas antes sobre fundamentos, e nem sempre os aspectos elementares de algo coincidem com os seus aspectos elementares."
"Espero ter esclarecido os leitores. A merologia é a ciência que estuda as relações entre as partes e o todo e nada tem a ver com a merologia, que a existir é um ramo da anatomia."
Estou esclarecido: nem sempre os aspectos elementares de algo coincidem com os seus aspectos elementares, pelo que a merologia não tem nada a ver com a merologia. E agora, com licença, que vou espreitar a hiperligação da cona.
Não espreite muito que pode ficar com os olhos em bico. Já corrigi o texto.
A questão é puramente etimológica, já que o radical grego méros (e não mereos) existe em inúmeras palavras portuguesas, como polímero, merozoário e dzenas de outras. O termo merologia nos chegou do grego pelo latim (S.T. Aquino), sem o 'e' espúrio introduzido pelos polacos e cegamente copiados por franceses e ingleses. Quando a ter significados diferentes é problema dos lexicógrafos, e não dos filósofos. Escatologia pode ser o estudo das fezes ou o estudo das profecias sobre o fim do mundo, e ningém parece bravo por isso. Tanto o VOLP da ABL quando o da ACL registram apenas merologia e ignoram o anglicismo "mereologia". Se fosse o uso o fiel da balança escreveríamos "reuso" e "multiuso" mas as formas corretam levam acento: reúso, multiúso. Não interessa que 90% das pessoas escrevem errado, as regras ortográficas são definidas pelo Acordo Ortográfico de 1990, aprovado pelos parlamentos de todos os países lusoparlantes, e ponto final. Não se pode escrever baseado nas preferências individuais. Não existe nenhum termo derivado do grego méros que tenha um 'e', e os tais autodenominados "mereologistas" falam de merônimos e meronímia e meromorfose, o que é completamente incoerente. Portanto: Merologia, merologistas. A língua inglesa não tem acordo ortográfico, cada país inventa uma regra: de um lado é centre, do outro é center. Em português não tem essa bagunça.
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