As Vespas voltam à cena no dia 21 deste mês de Novembro (uma sexta-feira), pelas 21h30, no Teatro de Sobral, em Ceira (Coimbra), pelo grupo de teatro clássico Thíasos, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Falo com o seu director, Carlos de Jesus, estudante de doutoramento desta Universidade em Literatura Grega que, no âmbito do trabalho de Mestrado, traduziu do grego e anotou esta peça de Aristófanes. Também é, para além de actor, o seu encenador.
P: Carlos, quer fazer o favor de nos apresentar Aristófanes?
R: Posso não ser a pessoa ideal para o fazer – e não serei por certo. Ainda assim, diga-se que foi um dos maiores poetas cómicos da Antiguidade, que viveu e exerceu a sua actividade entre a segunda metade do século V e o primeiro quartel do século IV a.C. Dizemos “um dos maiores” pois, de facto, sabemos da existência e dos prémios atribuídos a outros comediógrafos seus contemporâneos – de quem não conservamos mais do que breves fragmentos – que, inclusivamente, levaram a melhor sobre Aristófanes em concurso. Permitiu-nos a sorte conservar na íntegra onze das muitas comédias que terá composto. Artista talentoso, crítico de arte (sobretudo a tragédia, que muito admirava), despertou paixões e ódios entre os do seu tempo. Em especial os políticos, que atacava com uma dureza e energia sem paralelo, ter-lhe-ão criado diversos problemas, judiciais mesmo. A comédia política – à letra, que se centra no que vai mal (sobretudo) na pólis – foi, de facto, o seu género predilecto, aquele que o lançaria para as vertiginosas estradas da memória e o impediria de cair no esquecimento.
P: Sei que um dos seus pólos de interesse é a comédia aristofânica. O que tem ela de especial para lhe ter dirigido um olhar especial?
R: Quando se elege um tema de mestrado, muitas vezes não se tem, à partida, uma noção clara do que se vai encontrar. Claro que tinha já lido Aristófanes e assistido a representações de peças suas, o que muito me havia cativado. Mas confesso que os factores que condicionaram a minha escolha não foram, de facto, os que se esperariam numa entrevista deste género. É que, a única certeza que tinha ao cabo de um ano de seminários era que queria traduzir grego, traduzir grego a sério e em extensão. Ora, estando esta comédia disponível para tradução, no âmbito da tradução completa do teatro clássico a saír na Imprensa Nacional (INCM), não resisti ao desafio. Depressa me apaixonei pela comédia: a cor, o movimento, as intenções satíricas e os gracejos tão actuais... Daí à sua adaptação para o palco, foi um passo breve. Parecia reunir, de facto, os ingredientes necessários para funcionar. Mas isso, que o diga quem a ela assistiu.
P: Centremo-nos n’As Vespas. Para quem não conheça, pode desvendar um pouco o enredo da peça?
R: Vamos a isso. Num contexto como o da democracia ateniense em que as decisões políticas e judiciais cabiam directamente aos cidadãos – mesmo assim uma minoria da sociedade –, e posto que a participação dos juizes nos tribunais tinha passado a ser remunerada (ainda que miseravelmente), a comédia reproduz uma cena familiar em que Bdelícleon (o filho previdente) tenta a todo o custo curar o vício dos julgamentos que domina o seu pai, Filócleon. Para isso, e posto que os argumentos falham, reproduz-se à porta de casa uma sessão de tribunal em que arguido e acusador são, imagine-se, dois cães. O primeiro, Labes (ou Lambes, na nossa adaptação) é acusado de ter roubado um queijo da Sicília, ao passo que o segundo o vem acusar mais por não ter partilhado com ele o objecto roubado do que do furto em si. Instala-se a confusão, as tentativas de suborno são mais que frequentes. No final, tentanto o filho instruír o velho pai nos meandros da nova sociedade – mais dada a copos que a grandes valores – este termina a peça completamente bêbado, a dançar e a parodiar os coros trágicos. Acrescente-se a tudo isto um coro de velhos juizes caracterizados como vespas (que dá o título à comédia), símbolo de uma sociedade viciada em julgamentos e, mais do que isso, na condenação. Muitas danças, figurinos coloridos e alguns gracejos modernizados condimentam a peça, algo que mais não consegue do que reproduzir, a um nível mínimo, o cuidado espectáculo musical e coreográfico que teria sido a apresentação original.
P: É uma peça com um grande sentido político. Diria que esse sentido pode ser encontrado na actualidade?
R: Sem dúvida. Basta pensarmos na sempre noticiada corrupção nos nossos tribunais para a identificação ser óbvia. Mesmo em termos dramatúrgicos, defendi já numa comunicação que há tempos proferi os paralelos possíveis com o nosso teatro de revista: desde logo pelas intenções políticas tão centrais em ambos os registos, o aristofânico e o contemporâneo, mas também pela música, pela dança e pela exuberância dos figurinos que temperam ambos os estilos. Servindo-se os dois de cómico da caricatura e da alegoria, fazem subir ao palco, mais ou menos disfarçados, os protagonistas da vida política nacional, apresentando a quem se senta a assistir à comédia, em directo, a falta de carácter e a corrupção. Igualmente, num tempo como no outro, se tentou silenciar estas vozes, consideradas perigosas. Mas afinal, num tempo como no outro, que mérito maior do que este, o do desconforto, poderia alguém reconhecer ao dramaturgo politicamente empenhado?
P: Suponho que foi George Steiner que disse que à medida que o tempo passa mais notas de rodapé se introduzem nas traduções dos clássicos, sinal de que os leitores estão cada vez menos preparados para os compreender sem apoio de um intermediário, que é o tradutor. Reparei que a sua tradução da peça de que falamos é precedida duma introdução, não muito extensa, que localiza o leitor na obra do escritor, no contexto em que a trama emergiu e no seu conteúdo, mas não inseriu notas no texto de Aristófanes. Steiner está errado ou a escrita de Aristófanes é continua compreensível?
R: Tudo depende do grau de compreensão que se espera que o leitor dito comum (expressão que não gosto) atinja. Além disso, também a natureza dos textos clássicos em causa implica compreensões mais ou menos imediatas. Quero com isto dizer, por exemplo, que a anotação de um texto filosófico ou fragmentário tem necessariamente que ser mais extensa e explicativa. Depois, outro factor determinante é o público-alvo de determinado livro (outra expressão que, em si, não faz grande sentido, como se o autor/tradutor tivesse o direito de dizer quem deve ou não ler o seu livro!). As coisas não são no entanto assim no que toca à comédia e, em certa medida, também à tragédia. As situações hilariantes de uma e os dramas humanos da outra continuam, estou em crer, perfeitamente actuais e compreensíveis – desde que, claro está, o tradutor esteja disposto a fazer algumas cedências em relação a uma concepção mais erudita de tradução – que tanto mal nos fez, ao envolver-nos numa capa de poeira e mofo. Claro que se perdem algumas notações de circunstância, que há que explicar em nota. Mas essas, no que ao teatro diz respeito, julgo não serem determinantes para a compreensão e identificação com a mensagem dos textos. Dito de outro modo, traduzir os clássicos exige um esforço claro de adaptação. Dou-lhe um exemplo, da comédia precisamente. Se determinada personagem, em jeito de desabafo, se expressa em grego com a fórmula ma ton Dia (à letra "Não, por Zeus!”), não pode o tradutor de comédia – como de resto insistem alguns – ser literal na tradução; de facto, algo como “Não, caramba!” faz muito mais sentido em Português e não trai, de forma nenhuma, o espírito do original (onde, diga-se em abono da verdade, não havia já implícita qualquer referência ao pai dos deuses, como para nós dizer “Ai meu Deus!” não resulta, claramente, numa manifestação de fé ou de blasfémia!). Mas este equilíbrio entre erudição e adaptação, como imagina, é polémico e difícil de ter uma solução única. Cada caso vale por si. Ou seja, George Steiner está parcialmente errado. Os textos, se traduzidos com seriedade, mantêm grande parte das valências significativas do original. Mas as notas têm um valor muito específico. O que não pode acontecer é elas tornarem-se uma forma de exibicionismo do tradutor, mais do que um esforço de explicação necessário. No caso de Vespas, de resto, as notas na versão da tese sujeita a arguição são bastante mais extensas no que na versão publicada. Outras questões de ordem mais filológica tiveram aí que ser ponderadas, mas não mais faziam sentido para o leitor da comédia.
P: O Carlos tem vinte e cinco anos de idade, além das suas responsabilidades no teatro, fez seis traduções de autores gregos, publicadas em forma de livro, escreveu vários artigos e capítulos de livros… Numa altura em que as Clássicas têm uma expressão reduzidíssima no currículo escolar e em que se tende a desvalorizar a sua importância, não posso deixar de lhe perguntar porque é que um jovem se entrega de alma e coração a elas?
R: Essa talvez seja a pergunta mais complexa que me colocou, porquanto eu próprio, em diversas ocasiões, a coloco a mim próprio. Num cenário em que ambas as carreiras docentes, a do secundário e a universitária, estão fechadas a novos candidatos – por erros graves do passado e outros factores demasiado complexos para aqui discutir – a vertente da investigação é o que resta aos “apaixonados”. Cedo despertou em mim o interesse pela literatura, e claro que a ideia de trabalhar com línguas menos comuns como o Latim e o Grego também foi aliciante ao tempo em que tive que tomar uma decisão. Depois, já no curso, a leitura dos textos cimentou o gosto. Claro que a experiência de teatro foi determinante. Inicialmente como técnico, depois como actor, encenador e, agora, tradutor. A estreia de d’As Vespas foi, para mim, o culminar de algo importante, o concretizar de um percurso teórico que aí sim, no palco, estava finalmente completo.
Contrariamente à opinião de muitos, para quem traduzir mais não é do que um mal necessário, eu olho para a tradução dos clássicos, pela pouca experiência que tenho, como uma necessidade positiva e urgente, como uma verdadeira missão que se nos impõe, a nós classicistas, se queremos divulgar os nossos autores e o nosso trabalho. Claro que essa tradução tem que ser séria (entenda-se, directamente da língua original). O que não falta são traduções de autores gregos e latinos a sair quase todos os meses, mas em muitos casos elas mais não são do que a tradução da versão francesa ou inglesa de determinada obra. E isso é, no mínimo, um mau uso dos recursos. Felizmente, há nos dias que correm uma série de projectos de tradução sérios em curso – relembro o do teatro clássico completo, das obras de Aristóteles e, mais recentemente, das de Plutarco –, estando eu próprio envolvido em dois deles. O problema é que não podemos competir, em termos de tempo, com essas outras traduções, que demoram, necessariamente, bastante menos a ser publicadas. Mas não é uma concorrência desleal; as coisas valem o que valem, e isso acabará por ser reconhecido. Finalmente, deixe-me que lhe confesse que este trabalho, financeiramente instável porquanto vive de bolsas e parece afugentar verdadeiros contratos de trabalho, é para mim uma delícia a cada dia. Penso que a sensação de ser um arqueólogo dos textos pode expressar bem o que sinto – e sentirão outros – ao trabalhar nesta área.
P: Disse-me que o seu interesse pela literatura despertou cedo, posso perguntar-lhe como é que despertou?
R: O ambiente em que cresci, com todas as vantagens salutares da vida rural, era de todo alheio (e até adverso) a livros. Assim que o interesse pela literatura, de facto, despertou de uma forma pouco habitual – numa aula de matemática, imagine-se. Porque de uma turma um pouco insurrecta se tratava – já há quinze anos as havia – o nosso professor de então teve a ideia peregrina de ler para nós, ao longo do ano lectivo, um romance, com que nos ia entretendo nos últimos dez minutos de cada aula. Lembro-me perfeitamente de como ficava deliciado a ouvi-lo ler as páginas da Voz dos Deuses de João Aguiar, livro que anos mais tarde, como exercício nostálgico, havia de reler. Provavelmente, aí terá também nascido o fascínio pela cultura clássica, levado nas peripécias de Viriato. Seguiram-se outras leituras, a aventura da escrita e um ou outro concurso de poesia de escola ganho. Mas, antes que pergunte, posso já adiantar que não dei continuidade a essa vertente criativa. O que escrevia e eventualmente ainda escrevo não passam de rabiscos sem qualidade literária.
Obrigada, Carlos, pelo seu trabalho, pelo seu entusiasmo.
Livro referido:
Aristófanes. As vespas. Tradução do Grego, Introdução e Notas de Carlos Martins de Jesus (2008). Coimbra: Festea/Tema Clássico (Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra)
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