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Reagindo a um
artigo meu, um leitor
põe em causa a ideia muito difundida de que seja o chamado “eduquês” a causa dos males do nosso ensino, sugerindo duas coisas. Primeiro, que os professores não adoptam na sua maior parte os princípios do “eduquês” nas suas aulas; segundo, que estes princípios estão correctos e que a sua aplicação seria vantajosa.
Vale a pena discutir estas ideias. Não tenho quaisquer estudos empíricos que me indiquem quantos professores adoptam ou não adoptam os princípios do “eduquês” nas suas aulas. Mas tenho um conhecimento por observação directa — assistemático, pois, e incientífico — do que se passa no caso do ensino da filosofia no secundário, conhecimento que adquiri ao longo de anos, como formador de professores de filosofia, em visitas às escolas e contactos com professores, lendo os manuais que os meus colegas escrevem (eu próprio sou também autor de manuais), e trocando ideias com os professores em fóruns online.
Reflectindo na realidade que conheço, não me parece que se possa dizer que foi o “eduquês” que causou a falta de qualidade do ensino da filosofia que detecto. E reflectindo no ensino que recebi quando era estudante, vejo que a falta de qualidade era já nessa altura gritante — e nessa altura (sim, já não sou um jovenzinho, daí a minha gloriosa careca) ainda o “eduquês” não tinha tido tempo de fazer estragos. Portanto, não me parece avisado pensar, sem mais estudos, que o “eduquês” seja responsável pela falta de qualidade do ensino da filosofia, em particular. Talvez o ensino da matemática fosse glorioso noutros tempos, mas duvido muito, nomeadamente reflectindo sobre a minha experiência como estudante: tive professores tolos que liam os manuais na aula, ou mandavam os alunos lê-los, e tive professores excelentes, que ensinavam muito e bem, com entusiasmo e eficazmente.
A ideia dos que atacam o “eduquês”, contudo, não é a de que o conjunto algo assistemático que caracteriza esta ideologia é a causa da falta de qualidade do ensino, mas antes 1) que estas ideias estão pura e simplesmente erradas; e 2) que não permitem melhorar um ensino que já era mau.
Estas ideias parecem-me plausíveis, dado o conhecimento que tenho do caso da filosofia. Tomemos o exemplo dos programas de filosofia. Estes sempre foram maus, de tal modo maus que qualquer semelhança entre o que se dava nas aulas e a filosofia propriamente dita era mera coincidência. Ao longo dos anos, os programas oscilaram entre a história da filosofia e programas temáticos. Quando os programas eram de história da filosofia, não só as ideias dos filósofos apareciam distorcidas, como eram agrupadas e sistematizadas de maneiras absurdas, como se se tratasse de uma longa corrida em direcção a um dado fim — os autores desses programas eram pura e simplesmente incapazes de compreender que a história da filosofia não é como a história da biologia, que é uma história de sucessos acumulados em direcção a teorias mais perfeitas, mas antes uma história de tentativas de resolver problemas reais que ainda hoje ninguém sabe resolver. Quando os problemas eram temáticos, como o actual, nenhuma filosofia praticamente incluíam nas suas páginas. Hoje em dia é perfeitamente possível um professor de filosofia não leccionar um só conteúdo filosófico e cumprir integralmente o programa, pois este não exige a leccionação de um só problema, teoria ou argumento filosóficos; mas tem muita conversa fiada sobre o mundo contemporâneo e a cidadania.
O que é interessante é reflectir sobre a razão de ser desta falta de qualidade, pois é isso que nos permitirá compreender o que se passa com o chamado “eduquês”. Numa só palavra, a razão de ser desta falta de qualidade é a falta de domínio da área em causa — neste caso, a filosofia. Se um professor tiver uma formação sólida em filosofia, ou história ou matemática, nenhum método, por mais errado que esteja, poderá ter grandes efeitos negativos na qualidade do seu ensino, porque esse professor não irá esquecer os conteúdos e competências da sua área, e tudo fará para os transmitir aos estudantes. Mas se o professor não tem essa formação — porque não lhe foi dada nas universidades — então qualquer tolice será absorvida acriticamente como uma ideia educativa salvadora da pátria.
Vejamos um exemplo simples, uma vez mais da área da filosofia, pois é a que conheço. Em quase todos os manuais do passado, e em alguns actuais, há uma cantiga tola sobre a maior e menor extensão e intensão (com “s”) dos termos gerais, no capítulo de lógica aristotélica. Muitos professores, mesmo que o manual que hoje adoptaram não tenha essa cantiga, sentem falta dela e leccionam-na à mesma. Esta cantiga está errada, e nem sei qual é a sua origem. A ideia seria a seguinte: um termo geral qualquer, como “portugueses” tem uma dada extensão, que neste caso é as pessoas portuguesas. E tem uma dada intensão (com “s”) ou “compreensão”, que é a propriedade ou propriedades que determinam a extensão: neste caso, a propriedade de ser português. Por alguma razão, inventou-se a tolice de que, dado um qualquer termo, a uma maior intensão corresponderia uma menor extensão e vice-versa. Isto é obviamente falso porque a extensão de “portugueses” é muitíssimo mais pequena do que a extensão de “brasileiros”, mas seja qual for a intensão dos dois termos, não será com certeza tal que a intensão de um seja maior do que a de outro. (Além disso, não faz sentido logicamente medir o tamanho das intensões, mas não vale a pena explicar isso agora.)
Ora bem, o que faz um professor mal formado, que interiorizou esta tolice sem pensar muito bem (pois se pensasse, veria que é uma tolice), é inventar exercícios criativos sem se dar conta de que nem sequer está a avaliar nem a leccionar qualquer conteúdo lógico ou filosófico. Esse professor dá ao aluno listas de palavras (do género: “portugueses”, “europeus”, “seres humanos”), pedindo que o aluno as ordene em termos da maior ou menor intensão ou extensão. Mas o que está realmente a ser avaliado, a competência que está a ser invocada, é puramente geográfica: nada tem a ver com a lógica nem com a filosofia. Isto seria óbvio se o professor tivesse duas coisas centrais que infelizmente não adquiriu na universidade: 1) formação sólida na sua área de actuação, neste caso a filosofia, e 2) uma atitude crítica relativamente ao que vê escrito algures. Estes são os dois factores que explicam o disparate. E que explicam também o desinteresse do aluno, evidentemente, pelas aulas de filosofia. Não sei até que ponto este exemplo é ilustrativo do que acontece noutras disciplinas, no ensino secundário, mas é pelo menos plausível que o seja.
Se a falta de conhecimentos e competências fundamentais que detecto nos colegas da filosofia for transversal — se existe também nos colegas da matemática, português, etc. —, então as próprias ideias das ciências da educação serão deturpadas, vilipendiadas, aplicadas às cegas e transformadas em mais um conjunto de tolices sem sentido. Poderão não ser elas a causa da falta de qualidade do ensino — mas reforçam essa falta de qualidade porque não colocam a ênfase onde ela deve ser colocada: na formação intelectual do professor, que é muitíssimo deficiente.
A formação intelectual integral dos nossos professores é o problema mais grave do ensino e que está na origem dos problemas que temos, na minha opinião. Por “formação intelectual integral” entendo 1) um domínio sólido das matérias (filosofia, matemática, etc.), 2) autonomia intelectual e 3) sensibilidade didáctica e social. Quando o professor foi deformado nas universidades, decorando tolices e perdendo o sentido crítico normal que qualquer ser humano tem, quando o professor não adquiriu uma sensibilidade didáctica e social que lhe permita por si mesmo conceber estratégias de ensino que cativem os alunos mais carenciados, está nas mãos de toda a tolice emanada do Ministério da Educação — que, por sua vez, é constituído por pessoas que padecem exactamente da mesma falta de formação intelectual integral.
O que se pode então fazer?
Em primeiro lugar, cooperar. Parar de fazer guerras e compreender que temos de estudar, aprender, ler, discutir matérias, conteúdos e métodos. Temos de ter uma atitude cooperativa, cabendo aos que tiveram a sorte de ter uma formação melhor, saindo do circuito bolorento da universidade nacional, ajudar os outros. Cabendo a quem pode ler livros directamente noutras línguas disponibilizar esses conhecimentos e metodologias aos outros. Cabendo a quem tem um maior conhecimento das coisas partilhar isso com os outros.
Em segundo lugar, parar de encarar o conhecimento como um instrumento de opressão. É esta mentalidade que provoca guerras e animosidades. Se eu disser a um colega de filosofia que escreveu um manual com erros científicos elementares, ele fica zangado comigo porque pensa que o meu objectivo é vilipendiá-lo e não apenas melhorar o ensino no meu país (que é cada vez menos meu, claro, dado que agora tenho a obrigação de melhorar a realidade brasileira, que tem os seus problemas próprios, que ainda não conheço bem). Se eu lhe mostrar bibliografias actualizadas, de qualidade óbvia e de profunda sensibilidade didáctica, ele vai procurar esconder a sua ignorância dizendo que é “anglo-saxónico”, como se a matemática, a filosofia, as artes — os seres humanos, enfim — pudessem ser adequadamente classificados como insectos, preferindo-se então uns insectos a outros.
Procurar activamente as bibliografias com as exposições mais claras e didacticamente adequadas dos conteúdos das disciplinas só pode ocorrer quando admitirmos que fomos mal formados pelas universidades. A cooperação só pode ocorrer quando pararmos de prostituir o conhecimento, encarando a partilha como uma coisa perfeitamente normal. E sem essas duas condições, nada do que se fizer no ensino poderá ter grandes efeitos causais na direcção desejada da excelência.