Recebi há dias pelo correio um verdadeiro tijolo criacionista. Um livro com 10 Kg, 746 páginas de papel couché, profusamente ilustrado, como fotos de animais, plantas e muitos fósseis, da autoria de um Sr. Turco que dá pelo nome de Harum Yahya. Depois das páginas muito ilustradas, lá vem a tralha ideológica cheia de verdades estabelecidas, ainda que apenas pelo sr. Yahya, uns minutos atrás. Claro estão lá todos os estereótipos do criacionismo: que não que não há evolução; que sim que os cientistas estão errados, e alguns até admitem terem dúvidas (eu que julgava que todos tinham dúvidas!); que não há provas de que os organismos tenham evoluído; que as aves sempre foram aves – nunca ninguém uma galinha nascer de um ovo de dinossauro.
Interroguei-me sobre porque estaria a receber tal presente de remetente desconhecido. Mas, a dúvida desvaneceu-se rápido: vários colegas do meu departamento também receberam o mesmo tijolo. E, como eu, estavam perplexos. Principalmente com a quantidade de dinheiro gasto numa campanha destas, em que se envia uma obra cara a muitas pessoas desconhecidas. Soube mais tarde que esta campanha do tijolo criacionista atingiu muitos professores franceses de vários graus de ensino. E os belgas também estão a receber agora o mesmíssimo livro.
Como é possível deitar tanto dinheiro à rua numa campanha destas? Não vou duvidar mais: há uma campanha criacionista na Europa e que gasta muitos recursos para tentar endoutrinar alguns espíritos. Aliás o sr. Yahya anuncia uma profusão de livros, todos da sua autoria. Este turco sabe o que está a fazer, num país de estado laico, mas com uma maioria e um governo muçulmanos.
E o que nos diz o Sr. Yahya? Com uns riscos vermelhos em cima das imagens que ilustram, por exemplo, a evolução dos antepassados humanos, afirma: falso! Assim, para o tijolo criacionista todos os autraloantropídeos, Ardipithecus e outros dos nossos antepassados são macacos. Não têm nada a ver com os humanos. Pelo contrário, para minha surpresa, já considera o Homo erectus antepassado humano, embora não esclareça que idade lhe atribui – não sei se é do grupo mais ortodoxo que defende uma Terra com 6 mil anos, ou não tão ortodoxo. E porque é que o H. erectus já é aceite como antepassado humano? Porque a sua capacidade craniana já se encontra dentro do intervalo de variação da capacidade craniana humana – portanto não há problema. Ou há?
Em primeiro lugar, não se encontra dentro da capacidade craniana média da nossa espécie, que é de 1492 cm3 para os homens e de 1319 para as mulheres. Sendo que o conjunto de achados de H. erectus apresentam capacidades cranianas inferiores a 1000 cm3 (entre 800 e 900). Na nossa espécie há certamente gente mais e menos cabeçuda. Se quisermos considerar a distribuição actual, podemos dizer que 95% dos crânios masculinos actuais se situam entre 1347 cm3 e 1637 cm3. É claro que há casos de microcefalia patológica, mas que têm outras deformações acompanhadas.
Além disso o crânio de um H. erectus difere muito do de um crânio humano actual.
Para tirar as dúvidas desloquei-me ao Museu de História Natural de Leiden, onde se encontra o exemplar encontrado pelo médico e paleontólogo holandês Engéne Dubois. Numa enorme sala dedicada à vida passada, cheia de fósseis de animais e plantas primitivas, encontra-se uma caixa de acrílico com parte de um crânio – a sua calote – um dente e um fémur. Este pequeno conjunto de restos fósseis de um indivíduo tem uma enorme importância, por ter sido o primeiro a ser encontrado, pertencente à linhagem dos nossos antepassados. Dubois encontrou o seu fóssil, a que chamou Pithecantropus (Homem parecido com macaco), no ano de 1891, na ilha de Java. Dubois que era médico da armada holandesa, tinha decidido ir para o sudoeste asiático influenciado pelos escritos de Wallace, que sugeria ser aquela região, em que trabalhou, a mais provável para se virem a encontrar os restos dos nossos antepassados. A descoberta de Dubois não foi imediatamente reconhecida. Tratava-se do primeiro fóssil de hominídeo a ser encontrado – sem grandes termos de comparação. Esses foram surgindo ao longo dos anos aumentando cada vez mais a resolução do quadro evolutivo da nossa espécie.
Sem entrar em grandes pormenores, a curvatura da calote craniana de H. erectus é muito menor do que a que encontramos nos crânios actuais e corresponde a uma posição intermédia relativamente aos fósseis com mais de 2 milhões de anos, dos autraloantropídeos que se encontraram em África muitos anos depois. Possui ainda um tórus supra-orbital bem marcado que está completamente ausente no H. sapiens arcaico.
A mistificação do Sr. Yahya é, como não podiamos deixar de esperar, a típica do movimento criacionista, que distorce os factos para lançar a dúvida ou carrear os seus argumentos, sem lógica e sem sustentação factual.
Ao olhar para aquele fóssil não pude deixar de ter uma certa comoção ao contemplar um antepassado evolutivo, com 1,8 milhões de anos, um traço marcante da evolução desta nossa espécie, ao longo da qual adquiriu consciência de si e capacidade para se interrogar sobre o mundo em que vive, através do mais singular e sofisticado órgão que evoluiu na Terra: o cérebro.
18 comentários:
"Ardiphitechus"??
Mais calhaus criacionistas!
E ainda há os que continuam a dizer que falar nos criacionistas, umas santas criaturas que não fazem mal a ninguém, faz parte de uma campanha de perseguição aos cristãos.
Pois, está-se a ver! Só gostava de saber quem financia os milhões que são precisos para este mailing de peso. Em França mandaram o calhau aos professores do secundário, na Turquia idem, agora em Portugal e na Bélgica...
estes gajos são uns melgas. vê-se logo que é uma gralha e é Ardipithecus.
Rita:
Fica-lhe bem tanta devoção e atenção na defesa da(s) sua(s) damas mas não era necessária tanta energia.
Apenas foi uma chamada de atenção aos "mestres".
Correcção, meus caros, correcção, porque caso contrário eles,os melgas, apanham tudo.
Rita, pense e não bajule tanto; apenas uma sugestão...
Que é que este descendente turco do australopiteco tem que ver com os cristãos? Já não bastava ser tomada a parte pelo todo, quando aqui se fala do criacionismo "extremista", para ainda se confundir as ideias de um senhor turco com as de todos os cristãos?
Tenham dó. Apesar de tudo, estamos de pé, não é, velha avó Lucy?
Já não nos bastavam os católicos!
guida martins
Ele mandou livros para os crânios todos?
O meu deve ter-se perdido no correio... está para chegar amanhã concerteza, ou então não cabia na caixa do correio e alguém levou para calçar uma mesa, ou assim. Pois! De certeza que foi isso!
*anónimo assobia e olha para o chão, enquanto recua, disfarçando, até sair da caixa de comentários*
Que é que este descendente turco do australopiteco tem que ver com os cristãos?
The economist, Apr 19th 2007
"In February several luminaries of the anti-evolution movement in the United States went to Istanbul for a grand conference where Darwin's ideas were roundly denounced. The organiser of the gathering was a Turkish Muslim author and columnist, Mustafa Akyol, who forged strong American connections during a fellowship at the Discovery Institute."
"THE “Atlas of Creation” runs to 770 pages and is lavishly illustrated with photographs of fossils and living animals, interlaced with quotations from the Koran. Its author claims to prove not only the falsehood of Charles Darwin's theory of evolution by natural selection, but the links between “Darwinism” and such diverse evils as communism, fascism and terrorism. In recent weeks the “Atlas de la Création” has been arriving unsolicited and free of charge at schools and universities across French-speaking Europe."
The mass distribution of a French version of the “Atlas” (already published in English and Turkish) typifies the style of an Istanbul publishing house whose sole business is the dissemination, in many languages, of scores of works by a single author, a charismatic but controversial Turkish preacher who writes as Harun Yahya but is really called Adnan Oktar. According to a Turkish scientist who now lives in America, the movement founded by Mr Oktar is “powerful, global and very well financed”. Translations of Mr Oktar's work into tongues like Arabic, Urdu and Bahasa Indonesia have ensured a large following in Muslim countries.
"To the dismay of some Americans and the delight of others, Mr Akyol was invited to give evidence (against Darwin's ideas) at hearings held by the Kansas school board in 2005 on how science should be taught."
A Nature publicou um artigo que explica a ligação dos criacionistas islâmicos ao Discovery Institute.
Mais:
"Who is Mustafa Akyol, the supreme ‘proof’ of Fareed Zakaria’s pertinent approach? Well, no more no less, this is a smart religious extremist, 35, who confined himself within the limits of Moral Philosophy and Cultural Anthropology, finding them good enough for him to base thereupon an extremist Islamist theology that confusingly enough he markets as ‘moderate’! Risen to prominence thanks to financial support granted by the notorious Discovery Institute, he helps them infiltrate to the new Turkish bogus-Islamic market and find therein many victims for the various ramifications of the intelligent design concept. In so doing, he also helps as a link between the Erdogan and Gul gang and parts of the American establishment that, although they offer support to Turkey’s Islamists, fail to avert the deeds of the Armenian and the Greek lobbies!"
Mais sobre Mustafa Akyol;
mais sobre as ligações dos fanáticos cristãos aos fanáticos muçulmanos:
"Leading US creationists held several anti-evolution conferences in Turkey in the early 1990s."
Para além das ligações com o DIscovery Institute o tal Mustafa tb foi influenciado pelo ICR.
No site do tal Mustafa
Islamic creationists in Turkey have borrowed/plagiarized much of their material from the Institute for Creation Research in the U.S.
E um artigo de Akyol a dizer que o terrorismo religioso acabava se o mundo se transformasse num conjunto de teocracias. Os fundamentalistas dão-se todos bem duma ponta á outra do espectro de religiões:
"That's why something called the Wedge Document — although horrifying to America's secularist intelligentsia — offers a message of hope for Muslims. The Wedge Document is a 1999 memorandum of the Discovery Institute (DI), the Seattle-based think tank that acts as the main proponent of ID. In this document, the Institute explains that its long-term goal is "to defeat scientific materialism and its destructive moral, cultural, and political legacies." Much of the fuss made about the Document by its opponents is absurd; it does not propose the transformation of the U.S. into a theocracy. But, as official DI documents point out, there is nothing wrong in expecting cultural impact from a scientific theory; Darwinians, after all, revel in the cultural impact of their own doctrines."
O DI concorda:
Oddly, Christians who are badly discriminated against in Turkey (they cannot even build a church or operate a seminary) might do better with a nominally Islamic government than a nominally “secular” regime that oppresses all religious groups.
E para acabar:
"Born in 1972, Akyol has a master's degree in history and writes a column for a newspaper in Istanbul. He also has identified himself as a spokesman for the murky Bilim Arastirma Vakfi, a group with an innocuous-sounding name -- it means "Science Research Foundation" -- but a nasty reputation.
Said to have started as a religious cult that preyed on wealthy members of Turkish society, the Bilim Arastirma Vakfi has appeared in lurid media tales about sex rings, a blackmail prosecution and speculation about its charismatic leader, a man named Adnan Oktar. (...)
But beginning in 1998, BAV spearheaded an effort to attack Turkish academics who taught Darwinian theory. Professors there say they were harassed and threatened, and some of them were slandered in fliers that labeled them "Maoists" for teaching evolution.(...)
The books are slick, but BAV has had plenty of help. Sayin says that creationism in Turkey got key support in the 1980s and 1990s from American creationist organizations, and Edis points out that BAV's Yahya books resemble the same sorts of works put out by California's Institute for Creation Research. Except in Yahya's books, it's Allah that's doing the creating.
In 2001, Science magazine called BAV "one of the world's strongest anti-evolution movements outside of North America," and Edis tells the Pitch that Yahya books are gaining popularity in other parts of the world, including London (which is increasingly becoming a global center for Islamic publishing) and Indonesia.
While its Turkish counterpart thrived, however, American creationism suffered repeated defeats in the 1980s and 1990s, and even some of its most ardent supporters have put their hopes in a newer movement, one that calls itself "intelligent design."
Tanto é esta uma campanha para mostrar o lado criacionista, como é a ainda maior campanha para mostrar o lado evolucionista. E no entanto, esta campanha está mais do lado evolucionista que do criacionista pois acredita em milhoes de anos nos fósseis por exemplo. Se uma pessoa se realmente caisse em si e visse o que são por exemplo 50 milhoes de anos, talvez pensasse que a campanha é realmente muito forte (assim como a crença) e que só quem não se questiona é que pode continuar a acreditar que estamos a caminhar para descobrir as grandes questões da vida. E nem sequer é necessário grandes "tijolos" para nos explicar. Tanta gente existe com tão pequenas (grandes) dúvidas existenciais e que chega a morrer sem que estas sejam respondidas porque há quem não esteja interessado em que uma pessoa tenha esses entendimentos, mas que se junte à luta pela sobrevivência onde necessariamente uns terão de desaparecer em favor dos mais favorecidos. Negar estas questões básicas é andar sempre às voltas como que num círculo vicioso à procura de respostas, ou seja, sempre à procura de auto-justificar-se sem que isso necessariamente o faça libertar desse vício.
Pois se até há quem, na vetusta Faculdade de Direito da não menos vetusta universidade de Coimbra, do alto da cátedra doutoral, esgrima argumentos criacionistas nas páginas de um jornal com o autor deste post, como se surpreende agora que na bárbara Turquia haja quem se disponha a distribuir tijolos destes?
Ó Professor Paulo Gama Mota, se me permite, deixe lá isso que é só mais uma manifestação das estratégias de auscultação próprias do mercado de transferências de fim de época.
E não temos que nos preocupar que os nossos "craques" que se possam passar para o adversário serão sempre os que menos falta fazem ao nosso plantel. Não sejam é parvos (os desertores) e que se façam pagar inflacionadamente.
Relativamente aos tijolos tenho sempre a sensação que o dinheiro de papalvos gasto neste tipo de tácticas é sempre pouco. Além do mais estaremos perante uma injustiça porque os tijolos, no mínimo, deviam ser distribuídos com a lista telefónica.
Os tijolo dão jeito para calçar a mesa, com diz um comentador anterior, e para muito mais, pois anda sempre aí tanta gente pequenina em bicos de pés para se fazer ver, que um tijolo rapidamente se poderia tornar um objecto de uso pessoal imprescindível.
Artur Figueiredo
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