terça-feira, 26 de junho de 2007

O PRINCÍPIO DA INCERTEZA


Uma vez que permanecem algumas confusões sobre a mecânica quântica em geral e sobre o princípio da incerteza de Heisenberg (na foto) em particular, deixo aqui um esclarecimento:

"O Princípio da Incerteza" é o título da trilogia de livros da escritora portuense Agustina Bessa-Luís, cujo primeiro volume se intitula "A Jóia da Família". O cineasta também portuense Manuel de Oliveira deu, também, o título de "O Princípio da Incerteza" a um dos seus filmes, baseado no romance de Agustina.

O título comum ao livro e ao filme não é original. Já antes o escritor fancês Michel Rio tinha dado esse título a um romance seu, que de resto se encontra traduzido em português. E todos esses autores inspiraram-se num teorema do físico alemão Werner Heisenberg, formulado em 1925, a que foi dado o nome que está nesses títulos (por vezes também se chama princípio da indeterminação). A peça de teatro "Copenhaga" de Michael Frayn trata um importante episódio da biografia de Heisenberg, o seu encontro com o físico dinamarquês Niels Bohr, em Copenhaga, por altura da Segunda Guerra Mundial. Os dois estão de posse de segredos atómicos, mas um irá exilar-se enquanto o outro irá ficar do lado alemão. A peça glosa o princípio da incerteza quando, com evidente liberdade artística, é aplicado às intenções e acções humanas. É incerto, para o próprio Heisenberg, o que pretende com esse encontro. A física, está visto, também pode inspirar tanto a literatura como o teatro...

E o que diz o tal princípio da incerteza? O físico e filósofo argentino (mas residente no Canadá) Mario Bunge explica-o numa dúzia de linhas de uma forma extremamente clara no seu "Dicionário de Filosofia". A ficha encontra-se em "teorema de Heisenberg" e não em "princípio de incerteza", uma vez que (Bunge tem absoluta razão!) é de um teorema que se trata e não de um princípio: quer dizer, é uma afirmação que se prova matematicamente a partir dos postulados ou princípios gerais da mecânica quântica, a doutrina criada por Bohr, Heisenberg e outros no primeiro quartel do século passado e que tão bem explica o funcionamento do mundo microscópico. Vale a pena transcrever a definição e o comentário de Bunge, até porque ele diz tudo sem escrever nenhuma fórmula:

"TEOREMA DE HEISENBERG": Fórmula da mecânica quântica segundo a qual a variância (dispersão em torno da média) da posição de um electrão, ou de qualquer outra partícula quântica, é inversamente proporcional à variância da velocidade. Corolário: se a dispersão na posição diminui, a dispersão na velocidade aumenta e ao contrário. A fórmula é rigorosa e deriva de alguns dos axiomas da teoria, sem nenhuma referência a processos de medidas. Deve portanto ser válida universalmente sem nenhuma referência a condições de laboratório. Contudo, tem sido muitas vezes mal interpretada falando de perturbações causadas pelo aparelho de medida ou mesmo pelo observador. Também tem sido mal interpretada falando da incerteza do experimentador a respeito da posição exacta e da velocidade exacta da coisa medida – daí o nome popular de "princípio da incerteza". Esta interpretação é incorrecta por duas razões. Em primeiro lugar, a física não trata de estados mentais como a incerteza. Segundo, a referida interpretação pressupõe que os electrões ou os seus análogos têm sempre uma posição e uma velocidade exactas, como se fossem massas pontuais clássicas, com a diferença que não as podemos conhecer com precisão. Mas a teoria não faz essa suposição: não postula que os electrões e análogos são pontuais e que as suas propriedades têm valores precisos. Em mecânica quântica fala-se de partículas (ou ondas) de uma maneira analógica que é, por isso, enganadora. Uma vez que essas confusões estejam clarificadas, o teorema de Heisenberg perde qualquer interesse para a epistemologia, excepto como um exemplo das distorções de factos científicos que uma filosofia falsa pode originar. Retém , porém, interesse para o ontologia, lembrando-nos que os tijolos constituintes do universo não têm forma definida e são por isso indescritíveis de uma maneira geométrica".


Não há mal nenhum em que Agustina Bessa-Luís ou Michel Rio ou outros usem nas suas obras literárias referências e mesmo termos que são do âmbito da ciência. Pelo contrário, o facto de usarem referências científicas só significa um maior cruzamento entre as ciências e as artes e portanto um alargamento da cultura científica sem, pelos vistos, haver prejuízo da cultura literária. Aliás, como já alguém disse, cultura há só uma e as "duas culturas" estarão para a única cultura como as imagens de "partícula" ou "onda" estão para os objectos quânticos reais (esta analogia não tem nada de científico; como diz Bunge, falar de maneira analógica é sempre enganador). Mas já temos um problema se alguém pretender usar os termos, os conceitos e as afirmações da física ou de qualquer outra ciência fora do respectivo quadro, de uma maneira que não seja simplesmente analógica, mas sim pretensamente rigorosa. Não é essa, com certeza, a intenção de Bessa Luís ou Rio (um autor de um romance não tem intenções de fazer ciência!), mas é a intenção de alguns epistemólogos ou sociólogos da ciência que leram à pressa a ciência sobre a qual pretendem filosofar, ou de alguns literatos que muitas vezes nem sequer leram as obras de que falam (chamemos-lhe literatos, em geral, de uma maneira analógica, sem reclamar nenhum rigor científico para essa designação). Esses autores querem simplesmente transladar para o domínio das ciências humanas o que se sabe no domínio das ciências naturais, isto é, o que se pode provar a partir de postulados gerais que até agora encontraram sempre confirmação experimental. Buscam uma legitimação que eventualmente lhes falta. A palavra transladação aqui é adequada porque, antes de mudarem o que lhes convém mudar, começam, em geral, por matar a verdade apurada pela matemática e pela experimentação, de modo a que o cadáver se preste melhor às suas lamentáveis dissecações.

Bem, poder-se-á argumentar que "arrumar" o assunto com uma citação de Bunge é algo de anti-científico. Trata-se apenas de um só autor. E Bunge, ao fim e ao cabo, embora tenha formação científica sólida (o seu mestre foi, curiosamente, Guido Beck, um professor judeu que fugiu de Portugal no tempo da Segunda Guerra Mundial), é apenas um filósofo entre muitos. A resposta a estas objecções é que a generalidade dos físicos diz essencialmente o mesmo que Bunge pelo que este está bem informado (para uma sua excelente introdução à mecânica quântica leia-se o seu artigo "Vinte e cinco séculos de teoria quântica", publicado na "Gazeta de Física", revista da Sociedade Portuguesa de Física, vol. 25, fasc. 3, Julho 2002). Assim, para saber mais, abra-se um manual técnico de Física Quântica, por exemplo o "Understanding Quantum Mechanics" de Michael Morrison, professor de Física na Universidade de Oklahoma nos Estados Unidos. Segundo essa obra, o princípo da incerteza de Heisenberg diz que:

"Não podemos especificar sem ambiguidade os valores das observáveis posição e momento linear para uma partícula microscópica (...) Posição e momento linear são observáveis incompatíveis a um nível fundamental, uma vez que o conhecimento preciso do valor de um impede-nos de conhecer qualquer coisa sobre o valor do outro."

"[Esta limitação] está implícita na Natureza. Não tem nada a ver com nenhum aparelho ou com técnicas experimentais."

O Universo, a um nível profundo, é incerto e há muito que os físicos se habituaram a esse facto. Morrison acrescenta, em tom filosófico, que podemos pensar na relação de incerteza como "um meio da Natureza limitar as nossas ambições", mas a questão, se é que há alguma, é nossa e das nossas ambições e não da Natureza. Mas a incerteza da Natureza não impede a mecânica quântica de ser determinista e de fazer afirmações (de carácter probabilístico) que têm sido repetidamente comprovadas pela experiência. De facto, a teoria quântica é talvez a teoria científica que foi até agora verificada com maior precisão. Foram efectuadas, a todos os níveis, inúmeras tentativas para lhe encontrar falhas até agora sem qualquer sucesso. Não quer isso dizer que seja certa e eterna. Mas até que venha uma teoria melhor convém conhecê-la bem e evitar interpretações abusivas.

LIVROS PARA SABER MAIS

- Agustina Bessa-Luís, "O Princípio da Incerteza. Jóia da família", Guimarães Editores, 2001.
- Michel Rio, "O Princípio da Incerteza", Editorial Teorema, 1997.
- Mario Bunge, "Dictionary of Philosophy", Prometheus Books, 1999.
- Michael Morrison, "Understanding Quantum Mechanics. A user’s manual", Prentice-Hall, 1990

10 comentários:

Azul Neblina disse...

Sempre preferi a designação de "Relações de Incerteza de Heinseberg" ao "Princípio de Incerteza", pela simples razão que não é um princípio a partir do qual se deriva algo. Em relação à lamentável corja de uma certa auto-intitulada pós-modernidade e aos impropérios que têm sido veiculados por parte desta relativamente a alguns conceitos da Matemática e das ciências naturais, tenho a dizer-lhe que concordo na íntegra com que afirma.

Anónimo disse...

Ahahaha!
Muito bom! Excelente! E quantos se tem visto por aqui a argumentar grosso modo: "a ciencia e incerta, vejam o exemplo do Heisenberg" para defender um disparate qualquer...
Mesmo muito bom! E deixar os papagaios falar e enfiar os (patinhas) na argola. Ahahaha!

Pedro Brandão disse...

Parabéns.
Cá está um esclarecedor texto acerca de um dos tópicos mais amplamente distorcidos pelo relativismo pós-moderno.
Costumo dizer que as duas designações mais infelizes da Física o "Princípio da Incerteza" e a "Teoria da Relatividade".
O princípio da incerteza está aqui muito bem explicado, a teoria da relatividade vai sofrendo com o peso da "relatividade" no nome, mesmo sendo a sua aplicação absolutamente determinista...

Anónimo disse...

Gosto de argumentos de autoridade e da ideia de que os teoremas matemáticos explicam os "tijolos" e a natureza da realidade. E o que é que explica os teoremas matemáticos e os argumentos de autoridade. E o que é que explica a explicação. E depois dizem que não é mental. É o quê? Joelhal?

ahahaaha... crédulos e tansos!

ou bai ou racha

Anónimo disse...

De acordo com a definição de Mario Bunge, que Fiolhais assume, a fórmula do “teorema de Heisenberg” “deve ser válida universalmente sem nenhuma referência a condições de laboratório” e é mal interpretada quando a ligam a “perturbações causadas pelo aparelho de medida ou mesmo pelo observador”. Até porque, acrescenta Bunge, “a física não trata de estados mentais como a incerteza”.
Primeiro comentário nosso: talvez a metafísica não careça de laboratórios, de medidas, de observações com ou sem instrumentos – mas parece que a ciência física carece e usa tudo isso. A ciência não se limita a postular isto ou aquilo, avança para a tentativa de confrontar as suas ideias com a experiência – senão Fiolhais não poderia escrever que “a teoria quântica é talvez a teoria científica que foi até agora verificada com maior precisão”. Não foi com laboratórios e experiências que a física quântica foi testada? Acho que foi. Portanto, para nós humanos que (felizmente) não somos deuses, a questão daquilo “que é” tem uma relação profunda com a questão “o que podemos saber”. Logo, aquilo que podemos cientificamente dizer acerca da “realidade quântica” não é separável daquilo que podemos experimentar (laboratórios, medidas, observações). Portanto, o que podemos saber acerca de “o que é” é afectado pelas condições e limites das experiências. E, portanto, dizer que a “incerteza” na observação é um problema de “estados mentais” é confundir física com metafísica (porque esta pode dispensar a observação, mas a física não pode).
Segundo comentário nosso: o que dizemos acima é perfeitamente conforme com a citação que Fiolhais faz de Michael Morrison (em Understanding Quantum Mechanics), falando de posição e momento linear de uma partícula microscópica: “o conhecimento preciso do valor de um impede-nos de conhecer qualquer coisa sobre o valor do outro”. Parece haver, pois, uma questão que só se suscita em termos de “conhecimento”. A realidade não depende da nossa observação, mas certas diligências nossas para observarmos (para tentarmos conhecer) têm certas limitações porque têm certos efeitos sobre a própria realidade observada.

Anónimo disse...

Apenas três notas:

1) As relações de Heisenberg saem, com toda a naturalidade, do próprio formalismo matemático da mecânica quântica. Análise de Fourier aplicado à óptica. É, portanto, um mero teorema.

2) "Contudo, tem sido muitas vezes mal interpretada falando de perturbações causadas pelo aparelho de medida ou mesmo pelo observador. Também tem sido mal interpretada falando da incerteza do experimentador a respeito da posição exacta e da velocidade exacta da coisa medida – daí o nome popular de "princípio da incerteza". Esta interpretação é incorrecta por duas razões. Em primeiro lugar, a física não trata de estados mentais como a incerteza. Segundo, a referida interpretação pressupõe que os electrões ou os seus análogos têm sempre uma posição e uma velocidade exactas, como se fossem massas pontuais clássicas, com a diferença que não as podemos conhecer com precisão."

Esta é posição de Bunge. Contudo não é, por exemplo, a posição de Bohr, Einstein, Popper ou Pauli. É preciso perceber que para Bunge o princípio de complementariedade não tem qualquer tipo de interesse.

3)"Foram efectuadas, a todos os níveis, inúmeras tentativas para lhe encontrar falhas até agora sem qualquer sucesso"

Isto não está, em rigor, correcto. Há medições fora do espaço de Heisenberg, e como tal, há falência da teoria quântica. Embora não seja, verdadeiramente, um erro. Pois, são medições para além da mecânica quântica ortodoxa.

Já agora: A teoria mais testada será, certamente, a mecânica de Newton.

Anónimo disse...

Carlos acrescenta: "Esta é posição de Bunge. Contudo não é, por exemplo, a posição de Bohr, Einstein, Popper ou Pauli." Falando de física fica sempre bem, quando se apresenta uma posição como sendo a da "generalidade dos físicos", esclarecer que há físicos "importantes" que não dizem exactamente a mesma coisa. Também fica bem esclarecer quando, falando de filósofos, os que citamos não são universalmente seguidos (por isso é simpático lembrar Popper, que em muitas coisas acharia talvez Bunge aberrante).
Em suma, é útil que este comentário se tenha vindo juntar à "posta" original. É que em ciência também há "interpretações", não há apenas "dados".

Azul Neblina disse...

Uma nota ao Carlos: a teoria mais testada pode bem ser a Mecânica Newtoniana, mas como é certo e sabido, esta falha no mundo quântico e no mundo relativista. E a Relatividade falha, por exemplo, à medida que nos aproximamos do centro do buraco negro. São teorias e, portanto, modelos da realidade (ou de uma parte desta) e como tal têm a sua validade. O que o Carlos Fiolhais afirmava (e bem) é que a Mecânica Quântica é das teorias mais bem sucedidas (ou mesmo a mais bem sucedida) ao nível da confrontação com a experiência.

Anónimo disse...

Caro Azul:

Afirmei simplesmente que a física quântica ortodoxa falha quando se "trabalha" para além do dominio do espaço de Heisenberg. Quanto a saber qual é teoria física com mais sucesso, parece-me ser uma questão tão irrelevante, como disparatada.

HCM disse...

Uma analogia: Tudo se passa como se os electrões tivessem individualidade. A física quântica seria a psicologia das partículas e a newtoniana, a sociologia.
As ciências "exactas" só o seriam dentro de certos limites (tal como a velocidade da luz), fora dos quais seriam da mesma natureza das ciências biológicas, psico e sociais. Será?

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