O Jorge desenhou em traços gerais um princípio de explicação evolutiva do pensamento religioso. O tema está na ordem do dia. Note-se que a explicação evolutiva da religião não implica que todas as religiões são ilusões; afinal, também há explicações biológicas da matemática e da ética, mas daí não se segue que o teorema de Pitágoras é uma fantasia ou que é eticamente correcto matar crianças por prazer. Duas boas leituras nesta área são os livros de David Sloan Wilson, Darwin's Cathedral, e de Dennett, Breaking the Spell (para subscritores). Uma leitura relacionada muito esclarecedora (pelas ideias, a escrita em si é algo seca) é o livro de Lewis-Williams, The Mind in the Cave (para subscritores).
Curiosamente, o tipo de explicação avançada pelo Jorge não é explorado em nenhum destes livros, mas parece-me uma das mais plausíveis. Há uma cena no final do filme Castaway na qual o protagonista explica como um dia o acaso lhe trouxe a possibilidade de sair da miserável ilha onde estava naufragado há anos. Quando vi esta cena, fiquei a considerar muito plausível o tipo de explicação que o Jorge favorece. A ideia é a seguinte: um agente cognitivo complexo está continuamente a receber impressões sensíveis díspares do seu meio ambiente, e tem uma capacidade acrescida para dar atenção e interpretar muitas mais coisas do que os animais menos complexos. Levanta-se um problema: como estar alerta de maneira a interpretar o mundo de acordo com os nossos interesses? Como filtrar tanta informação, distinguindo aquela que é potencialmente útil para a sobrevivência da que o não é? Eis um atalho útil: atribuir intencionalidade à natureza (animismo) ou a espíritos e deuses que controlam a natureza (politeísmo e teísmo). O desenvolvimento do cérebro foi concomitante com o desenvolvimento das capacidades para interpretar intencionalmente os outros (leia-se o superlativo e infelizmente não traduzido The Prehistory of the Mind, de Mithen -- ligação para subscritores). De modo que já tínhamos o material mesmo ali à mão: módulos no cérebro muitíssimo desenvolvidos para descobrir e interpretar as intenções das outras pessoas. Usar essa capacidade para interpretar a natureza em termos intencionais é um passo óbvio. Ora, se andarmos a olhar para o mundo pensando que os deuses ou os espíritos fazem acontecer as coisas em função dos nossos interesses, ou para nos dar lições, faz-nos andar com os olhos abertos para "sinais" -- sinais que podem ser muito rebuscados, mas que por vezes podem fazer a diferença entre a sobrevivência e o extermínio.
Enfim, aí estão os meus "two cents" sobre isto. Deixemos os biólogos bater-nos à vontade, agora que entrámos sem pedir licença nos seus domínios.
segunda-feira, 19 de março de 2007
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4 comentários:
Desidério:
Vai levar com a beatada toda em cima.
Agora que não podem argumentar com a patetada do costume, que o Desidério não pesca nada de filosofia, estou curiosa para ver qual a k-7 que vão arranjar.
Pelo comentário do multinicks aposto que agora é ao contrário: o Desidério não pesca nada de biologia.
O problema é o Parente não percebe raspas nem de filosofia nem de biologia. O comentário, igual à k-7 filosofia, mostra bem isso...
Caro António
Do facto de se poder usar mal as explicações evolucionistas não significa que não as devamos usar bem. Significa apenas que temos de usar padrões rigorosos de análise das provas e da argumentação. As análises racistas baseadas na biologia falham perante qualquer análise cuidada e imparcial, tal como o criacionismo. A realidade e a verdade não se vergam perante a ideologia.
Note que eu comecei por afirmar, precisamente, que as explicações evolucionistas nada de especial provam com respeito à existência ou não de deuses. Filósofos religiosos, como Plantinga, defendem que temos um sensus divinitates, que em algumas pessoas é mais desenvolvido (e por isso têm experiências religiosas) do que noutras. Esta explicação não significa de modo algum que as experiências religiosas sejam alucinações.
Não me interessa muito o debate algo empolgado entre ateus e religiosos. Interessa-me as verdades e acho que só se conseguem descobrir algumas quando se procura analisar as provas e a argumentação diligentemente e de forma imparcial e cuidada. Quando a discussão aquece, arrefece-me o interesse porque desaparece o rigor. Sou um ateu tranquilo porque acho que não há boas razões para acreditar em Deus e há boas razões para não acreditar, mas estou pronto a mudar de ideias se houver razões para isso.
Caro António
Os seus comentários são bem-vindos neste blog, nomeadamente porque têm sido educados e relevantes. Gostaria que a divergência de opiniões fosse respeitada neste blog e que a civilidade fosse uma constante nos comentários. Podemos discordar das ideias das pessoas sem as ofender.
Caro Desidério, tenho lido com atenção e interesse os seus escritos desde há alguns anos. Este seu texto encoraja-me a fazer-lhe uma pergunta: que género de razão ou de argumento o levaria a acreditar em Deus, uma vez que está disposto a deixar de ser ateu se houver alguma boa razão para acreditar em Deus? Numa troca de mensagens que tive com Christoph Koch, disse-me ele que se fosse Deus faria algo que não deixasse a ninguém margem para dúvidas acerca da sua existência. Mas Koch não me deu nenhum exemplo do que poderia ser considerado uma 'prova radical' da existência de Deus. Parece-te que isso não será possível? Com efeito, uma vez que os argumentos da filosofia e da ciência se referem aos acontecimentos do universo, qualquer facto ou acontecimento que Deus produzisse nele de modo extraordinário (mas o que seria um facto extraordinário?), seria sempre um facto científico e não um facto religioso. A ciência, como a filosofia, não dá nenhuma chance a Deus. Porque qualquer que seja o acontecimento que pareça verificar-se no universo, das duas uma: ou é algo que a ciência poderá observar e explicar ou, caso contrário, não passará de uma ilusão.
Depois destas considerações, volto à minha questão inicial: o que poderia ser uma boa razão para acreditarmos em Deus?
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