domingo, 11 de março de 2007

MAGALHÃES, UM ESTRANGEIRADO

A Sociedade Filosófica Americana, com sede em Filadélfia, foi fundada em 1743 pelo físico e diplomata Benjamin Franklin. Um dos prémios científicos mais antigos que ainda hoje é atribuído nos Estados Unidos foi estabelecido em 1786 com 200 guinéus doados pelo português João Jacinto Magalhães. A medalha de ouro tem, por isso, o justo nome de “Magellanic Premium”. Destina-se a recompensar o “autor da melhor descoberta ou mais útil invenção relacionada com a navegação, a astronomia ou a filosofia natural (excepto a história natural)”. Esse prémio já tem sido comparado ao Nobel. Por vezes, compensa as falhas do Nobel: foi, por exemplo, atribuído, em 1975, aos dois grandes teóricos do “Big Bang” Robert Herman e Ralph Alpher e, em 2000, à descobridora dos pulsares, Jocelyn Bell.

Mas quem foi João Jacinto Magalhães? Natural de Aveiro, esse descendente do navegador português Fernão de Magalhães, estudou no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Mas deixou Portugal em 1756, pouco depois do grande terramoto de Lisboa, tendo vivido algum tempo em França antes de fixar residência em Londres em 1764. Essa foi de resto uma época, marcada pelo Marquês de Pombal, em que vários intelectuais portugueses, por perseguições pessoais, políticas e religiosas, se viram obrigados ao exílio (ficaram conhecidos por “estrangeirados”). Em Inglaterra e também no continente europeu Magalhães colaborou e manteve correspondência com os nomes europeus mais notáveis da ciência das luzes: Priestley, Watt, Black, Lavoisier, Volta, para além de Franklin. Promoveu em todo o continente europeu instrumentos científicos feitos em Inglaterra, alguns deles do seu próprio desenho. Foi, além de cientista e técnico, um agente difusor de novas ideias. Chegou mesmo a ser considerado um “espião industrial”.

A química do inglês John Priestley (um dos descobridores do oxigénio) ou a termodinâmica dos escoceses James Watt e Joseph Black (respectivamente o inventor da máquina a vapor e o descobridor do dióxido de carbono, os dois, tal como Priestley, membros da famosa “Lunar Society”, que no século XVIII se estabeleceu em Birmingham) chegaram a França graças à obra de Magalhães, que usava o nome de John Magellan.

Uma das obras mais notáveis de Magalhães foi “Essai sur la Nouvelle Théorie du Fewu Elementaire, et de la Chaleur des Corps”, um trabalho escrito em francês mas saído originalmente em Londres em 1780 e só no ano seguinte em Paris. Watt tinha sido o primeiro a medir capacidades caloríficas, um conceito já avançado por Black (diferentes materiais absorviam o calor de maneiras diferentes). Mas o português, no referido livro, publicou a primeira tabela de capacidades caloríficas, ou, como lhes preferiu chamar e hoje é universalmente aceite, “calores específicos”. Esse trabalho viria a influenciar três anos depois a obra “Mémoire sur la chaleur” para cuja autoria se juntaram dois dos “monstros sagrados” da ciência da época: Lavoisier e Laplace. A pouco e pouco, a partir da distinção essencial entre calor e temperatura, a ciência termodinâmica nascia…

Não admira por tudo isso que o prestígio científico de Magalhães se tenha espalhado desde Lisboa a São Petersburgo, tendo chegado aos Estados Unidos. Magalhães foi membro ou sócio correspondente de várias sociedades científicas: a Academia das Ciências de Lisboa, a Académie Royal des Sciences de Bruxelas, a Académie des Sciences de Paris, a Academia Imperial de Ciências de São Petersburgo, a Akademie der Wissenschaften em Berlim e a Royal Society de Londres, para além da já referida sociedade americana. Criou ele próprio uma pequena sociedade filosófica em Londres: “Chapter Coffee House Society”. Apesar de jamais ter voltado a Portugal, colaborou com a coroa portuguesa, expedindo instrumentos de astronomia, física, náutica, etc., cuja construção supervisionava. Para Coimbra Magalhães enviou alguns belos instrumentos, contendo melhorias técnicas da sua autoria, que hoje podem ser vistos no Gabinete de Física da Universidade de Coimbra.

É notável que um monge formado num mosteiro de tradição medieval tenha saído para o mundo e alcançado um nível de cosmopolitismo científico que poucos portugueses tiveram!

10 comentários:

Anónimo disse...

Olá Carlos,
Não sabia deste facto histórico. Obrigado por este pedaço de informação tão preciosa. Aproveito para lhe dizer que a nova física divertida é um brinde para alunos do secundário e para mim que não sou formado em física. Obrigado pelo texto e pelos livros que publica.
Abraço
Rolando Almeida

Anónimo disse...

Um muito obrigado por fazerem o que toda gente devia fazer do conhecimento, a sua troca. :)

Anónimo disse...

Gostaria que se discuti-se esta nova descoberta, que podem ver aqui neste site (http://www.cbc.ca/health/story/2000/07/20/speedlight000720.html#skip300x250). Ou seja, que mudará nas nossas vidas, depois de se tirarem mais conclusões desta descoberta?

lino disse...

É notável, pela positiva, a sua posta. E é notável, mas pela negativa, o desconhecimento que existe cá no burgo sobre os seus cientistas e não só. O "De Rerum Natura" já fazia falta há muito tempo. Bem hajam pelo serviço público que começaram a prestar.

Anónimo disse...

O Jacinto não deixou só a falta de liberdade em Portugal.. Parece que também deixou o hábito de monge, bem com a fé em deus...

Só é pena conspuscarem-lhe o nome com fundações e outras coisas, controladas por aventais e obras dedeus.

As comissões de bolsas são uma coisa muito bonita.

Carlos Fiolhais disse...

Caros Rolando, Rodrigo e Lino:
Muito obrigado pelos vossos comentários!
Sobre o anúncio não recente da velocidade superluminal (Rodrigo), tanto quanto sei as notícias de velocidades superiores à da luz
são francamente exageradas.
Einstein, pelo menos por enquanto, ainda tem razão... E é muito difícil, senão mesmo impossível, prever que aplicações surgirão quando ele não tiver.
CF

touaki disse...

Apenas uma correcção histórica: a afirmação abaixo
"Essa foi de resto uma época, marcada pelo Marquês de Pombal, em que vários intelectuais portugueses, por perseguições pessoais, políticas e religiosas, se viram obrigados ao exílio (ficaram conhecidos por “estrangeirados”)."
não se encontra correcta. Estrangeirados sempre os houve desde 1650 (isto para não falar nos qu fugiram por motivos políticos dos Filipes) e não foi Pombal quem os criou. Muitos desses "estrangeirados" regressaram com Pombal, e novos "estrangeirados" surgiram. Mesmo após Pombal continuaram a existir hordas de "estrangeirados". Atribuir a Pombal tamanha "responsabilidade é não só historicamente incorrecto como redutor de uma realidade.

Carlos Fiolhais disse...

Caro fm
A minha afirmação sobre estrangerados está correcta. Várias exilados na época do Marquês ficaram conhecidos por "estrangeirados".
O próprio Marquês foi um estrangeirado. Nunca disse que
foi Pombal quem os criou! Há alguns anteriores (século XVII).
O leitor parece simpatizar com o Marquês, mas olhe que não é o único...

Anónimo disse...

Carlos e Rodrigo... a Luz é que eu sigo! :)

Bem, já ontem tinha deixado aqui um longo comentário sobre este tema apaixonante, mas o IE fez-me o subido "favor" de bloquear na hora... e pôs-me a língua de fora!!! :o)

Mas o assunto é mesmo demasiado importante para eu o deixar em branco e assim andei por aqui minuciosamente à caça do tema... perserverar é o meu lema! Ou sou talvez apenas um "spooky" abantesma... outro quântico seresma! ;)

A questão da "velocidade superluminal" traz, para já, e antes de quaisquer possíveis aplicações práticas, um problema metafísico muito importante.

Ou seja, qual a natureza do espaço e do tempo?! Afinal, ultrapassar a velocidade da luz significa, em termos práticos, recuar no tempo, o que é uma ideia interessante!

Ignorando mesmo a questão se o postulado da Relatividade de Einstein pode ou não vir a ser posto em causa, caso haja alguma transferência de informação nessa "velocidade superluminal" - and there is! (experiência de Aspect sobre as desigualdades de Bell, PLUS the present one!) - há, contudo, perguntas muitíssimo importantes a ser colocadas neste contexto.

Uma delas diz respeito, obviamente, ao problema da causalidade. Creio que já vi aqui uma referência a isto, em algum tema anterior, mas a física quântica põe, no mínimo, em dúvida a noção clássica de causa vs. efeito, ou seja, a da precedência temporal, afinal.

E a este respeito, talvez nem estejamos assim muito longe das surpreendentes especulações metafísicas dos Upanishads hindus, que parece não fazerem grande distinção entre causa e efeito, pelo menos naquilo que se refere à origem do universo material, ao considerarem que este é apenas a manifestação visível de uma invisível causa primordial.

Bem, já falei disto noutras ocasiões e até com citações originais desses textos. Só que...

Ora bem, voltando à física quântica, a questão dos sinais superluminosos é uma provável explicação para os intrigantes fenómenos de "não-localidade", mas não é a única!

Goswami postula a "não-localidade" como uma característica da consciência - fora do espaço e do tempo - o que implica uma metafísica do tipo idealismo monista... algo antiquado, não?! ;)

Pois sim, mas ainda esta semana se enterrou mais um prego no caixão do "realismo materialista", com um grupo de cientistas austríacos a demonstrarem a ineficiência da "desigualdade de Leggett", a qual foi já um remendo para segurar a tese do realismo físico, uma vez que quanto à não-localidade estamos conversados!

Ora bem, isto não vai indo nada mal para a turma do ideal... monos do (trans)racional!!! :D

So, could it be true that reality does not exist when we're not observing it? I guess so, I guess so... same as Berkeley long ago!!! :)

Oh well, we shall see...

Rui leprechaun

(...what comes out of this mystery! :))


PS: Os interessados e curiosos nestas "esquisitices" algo chatas para o realismo naturalista em que afinal (sobre)vivemos, podem ler no penúltimo nº da "Nature" o artigo relatando a experiência da equipa da Universidade de Viena.

http://www.nature.com/nature/journal/v446/n7138/
abs/nature05677.html

Anónimo disse...

A propósito, e já que trouxe o Bispo Berkeley cá prà missa, ;) deixo aqui um pequeno poema de Ronald Knox, um teólogo do séc. XX, que traduz o pensamento idealista ("idealismo subjectivo" ou "imaterialismo") do filósofo irlandês do séc. XVIII.


There was a young man who said "God
Must think it exceedingly odd
If he finds that this tree
Continues to be

When there's no one about in the Quad."

"Dear Sir, your astonishment's odd;
I am always about in the Quad
And that's why this tree
Will continue to be

Since observed by Yours faithfully, God."



A propósito, o termo "Quad" é aqui uma abreviatura de "quadrangle", um conceito arquitectónico que designa um pátio quadrangular ou rectangular no meio de uma construção, um pouco como o "claustro" de um convento, e que é especialmente comum em "campus" universitários.

E quem diria?! Vedas, Platão e Berkeley... a velha Filosofia!... p'ra explicar à luz do dia a quântica arrelia que o realismo não podia!!! :)

Pois, é a grande roda do Tempo...

Rui leprechan

(...que quantum gira a destempo! :))

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