sábado, 12 de setembro de 2009

REFLEXÕES PARA O CENTENÁRIO DA 1ª REPÚBLICA - PORQUE CAIU A REPÚBLICA


Novo post do historiador António Mota de Aguiar, desta vez não sobre a queda da monarquia mas sobre a queda da 1.ª República (na imagem Afonso Costa em caricatura de 1910):

“…é preciso escolher, pôr o acento, interpretar”
(…) “…a historiografia não é unicamente uma descrição, é também um julgamento
”. Hooykaas [1]

Muitas foram as reformas introduzidas em 1911 pelo Governo Provisório. Mencionamos as mais relevantes: restabelecimento da ordem liberal posta em causa pela ditadura franquista, e com ela a amnistia de crimes políticos; reorganização do Exército; criação das Universidades de Lisboa e do Porto, do Instituto Superior Técnico de Lisboa, e da Faculdade de Letras de Coimbra. Foram também introduzidas reformas no ensino infantil, primário e normal. O sistema de inquilinato recebeu nova legislação. Foi igualmente criada legislação laboral, onde eram acautelados os direitos dos trabalhadores, como o direito à greve, apesar de os trabalhadores a terem recebido como estando aquém daquilo que tinham reivindicado, e os patrões também não ficarem satisfeitos, pois viam nessas leis uma ameaça aos seus direitos e interesses.

A separação do Estado e da Igreja foi um dos pontos quentes da vida da República. A laicização levada a cabo pelos republicanos trouxe-lhes enormes sobressaltos, nomeadamente devido à política anti-clero que levaram a cabo: os jesuítas foram expulsos e muitos conventos encerrados. Para retirar o peso do clero na vida portuguesa foi anulado o juramento religioso nos tribunais e noutros actos oficiais. Os registos, como os actos relativos à família: o nascimento, o casamento, o divórcio e o óbito, até aqui efectuados na paróquia, passaram para o Registo Civil. Muitos padres, desobedientes a estas prerrogativas republicanas, foram presos, o que resultou na deterioração das relações entre o Vaticano e o Estado português, e entre o clero português e o governo republicano. Legislou-se sobre o divórcio e a família e o regime de protecção aos filhos “ilegítimos” e respectivas mães; foram criados serviços de assistência pública além da Tutoria da Infância.

Alguns historiadores, consideram a obra legislativa da 1ª República monumental, outros dizem que ficou aquém das expectativas, ao passo que há historiadores que a criticam pelos excessos cometidos. Pensamos que, tivesse a República nos seus primeiros três anos tido uma vida “normal”, ter-se-ia porventura, no decorrer desse tempo, limado as arestas do que foi excessivo e acrescentado o que faltava, mas o regime teve uma vida atribulada e curta [2].

O governo republicano foi logo no início da sua existência contrariado por graves acontecimentos: manifestações de fome, assalto a armazéns de bens alimentares e revoltas; as greves constituíram também um dos pontos do enfraquecimento e queda da 1ª República (“Nos dois últimos meses desse ano [1910], e em 1911, foram 247 as greves registadas no País".[3])

A agitação social continuou com violência no ano seguinte: em Janeiro de 1912 eclodiu a primeira greve geral. O movimento operário, no qual o anarquismo e o anarco-sindicalismo tiveram grande relevância, fizeram sentir a sua presença através de lutas contra o governo e atentados à bomba. O 1º ministério de Afonso Costa reprimiu a agitação, perseguiu os seus chefes prendendo muitos. Nasceu aqui a primeira grande fenda do regime: o sucesso da revolução republicana ficou a dever-se ao apoio recebido no dia 5 de Outubro pelas massas operárias e urbanas, pois o golpe teria falhado se os operários da capital e da periferia industrial de Lisboa não tivessem descido à rua para apoiar “a sua República”. Os republicanos falharam aqui, ao reprimir as massas laborais e os seus chefes perderam a confiança do operariado e das massas urbanas socialmente desfavorecidas. Continuou a haver mais greves e intentonas sempre reprimidas pelos governos republicanos:

“Certos radicais que não haviam ingressado no partido democrático, como o grupo de Machado Santos, [que dirigia um jornal seu, O Intransigente], aliados com elementos sindicalistas, (…) fizeram estalar um movimento a 27 de Abril (1913), que foi prontamente sufocado. Aumentou o número de presos políticos…”[4]

Machado Santos foi um conspirador inveterado, com um papel importante no enfraquecimento da 1ª República. A sua acção conspirativa já vinha da monarquia, sobretudo da revolta de 28 de Janeiro de 1908. Na República participou nas seguintes intentonas e revoltas: Abril de 1913, Janeiro 1914, Movimento das Espadas de 1915, revolta-se contra a Ditadura de Pimenta de Castro em 1915, revolta de Tomar de 1916, e ainda em 1917 no golpe sidonista.

Em Outubro de 1910 é o herói da Rotunda, sendo considerado o fundador da 1ª República. Mais tarde, em 1919, volta a salvar a República, contribuindo para a derrota dos revoltosos monárquicos acampados na Serra de Monsanto. Mas Machado Santos tinha a sua própria visão do mundo. Em 1910, ficou fora do governo provisório, dentro, talvez tivesse sido uma força integradora do regime republicano. Numa crítica ao governo provisório, Machado Santos deixou-nos este texto que nos dá uma ideia da sua personalidade:

“Não era a LIBERDADE o que o povo reclama em 1910, porque ela ia até ás raias da licença nos paços régios, nos salões da aristocracia, nas casas da plebe, na igreja, na rua, na imprensa e no comício. Não era a EGUALDADE, também, o que exigia, porque tirando o privilegio d’uma família que era obrigada a ter uma existência áparte, pelas necessidades do Estado, a egualdade perante a Lei já a tinha consignada nos seus códigos. Não era a FRATERNIDADE, tão pouco, o que pedia, porque essa até do púlpito lh’a pregavam os seus padres, como a haviam pregado os seus avós muitos séculos antes de se dar o 89 em França. O que o povo queria era justiça” [5].

Se por um lado este homem é o herói da República em 1910 e a salvou em 1919, ele foi, por outro lado e infelizmente, um factor de instabilidade até à sua trágica e aviltante morte em 1921.

Uma outra importante ameaça durante a República foram as numerosas insurreições monárquicas. Elas desviaram enormes quantidades de recursos, necessários noutras áreas sociais.

Outra figura relevante da agitação política destes tempos foi Brito Camacho (ver: “A 1ª Guerra e a ditadura de Sidónio Pais”).

O tempo que mediou entre Agosto 1911 e o golpe sidonista de Dezembro de 1917 foram os anos decisivos que determinaram a morte da 1ª República. A meu ver, todos os sujeitos foram responsáveis. Afonso Costa foi certamente um deles: muito auto-convencido, não esteve à altura do momento histórico. Podia ter feito alianças no governo com outras forças políticas (ver “Reflexões para o 1º Centenário da 1ª República) e, a meu ver, poderia ter entrado de outra forma na 1ª Guerra, uma forma mais consentânea com as nossas possibilidades, além de ter mantido com os movimentos operário e sindical uma outra relação, de forma a não os ter como inimigos, como de facto aconteceu. É fácil, a 100 anos de distância dizer isto, mas é também verdade que a sua chefia falhou. Quando Afonso Costa saiu da prisão de Elvas, em 1918, João Chagas diz sobre ele o seguinte:

“(…) A verdade é que este Affonso Costa nada diz porque nada sabe dizer. Este homem é um instrumento sem cordas e portanto sem sonoridade. É de pau. Nada nelle vibra, ou tem vibração. Falta-lhe a eloquência. Em toda a sua vida política não encontrou quer falando, quer escrevendo, uma expressão feliz e que ficasse. Fora do domínio da sua estreita educação jurídica, estes fructos seccos da nossa cultura não dão nada” [6].

No desfecho trágico da 1ª República, tenho para mim esta citação de Raul Brandão:

“Quem fez mal à República? Foram os actos do governo Provisório? Nem esses, nem mesmo os do Afonso Costa, que o País tinha acabado de aceitar se o país se mantém integro. Foram os de alguns políticos que, acima da República, puseram os seus interesses e as suas ambições”[7].

Talvez esta mensagem permaneça actual...

NOTAS:

[1] Citado na tese doutoral de Isabel Maria Malaquias: “A obra de João Jacinto de Magalhães no contexto da ciência do séc. XVIII”, p. 5, Departamento de Física da Universidade de Aveiro, 1994.
[2] Para compreender a História da 1ª República, aconselhamos a leitura de: “A Primeira República Portuguesa – Entre o Liberalismo e o Autoritarismo”. Coordenação de Nuno Severiano Teixeira e António Costa Pinto, Edições Colibri. Instituto de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Outra obra importante é a de Vasco Pulido Valente, “O Poder e o Povo: A Revolução de 1910”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1976. Discordamos, contudo, do autor, quando considera a 1ª República uma feroz ditadura.
[3] H. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, vol. II, p.211
[4] Ângelo Ribeiro, História de Portugal, vol. VII, coordenação de Damião Peres, pp. 489-490, Portucalense Editora, Barcelos, 1935.
[5] Machado Santos, A Ordem Publica e O 14 de Maio, p. 11, Tip. Liberty, Lisboa, 1916
[6] João Chagas, Diário de João Chagas, vol. IV, p. 66, Livraria Editora, Lisboa, 1930
[7] Citado in Joel Serrão, História de Portugal, vol. XI, pp. 23-24, Ed. Verbo, Lisboa, 1989.

António Mota de Aguiar

1 comentário:

Fernando Martins disse...

"restabelecimento da ordem liberal posta em causa pela ditadura franquista"

A "ditadura" franquista, que durou menos que a ditadura entre o 5 de Outubro e as primeiras eleições quase-democráticas da República, já tinha acabado há mais de dois anos e meio - este argumento carece de uma série de problemas....

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