segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Quintela, Nemésio e Torga

Já não é recente o livro Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia. Tive dele uma primeira edição que comprei em finais dos anos oitenta e que depois dum empréstimo não voltou às minhas mãos. Lembro-me disso, porque me ficou a fazer falta: a escrita de Cristóvão de Aguiar dava-me a conhecer melhor um mítico professor de Filologia Germânica da Universidade de Coimbra, que penso nunca ter visto mas de que muito me falavam na Faculdade de Letras – Paulo Quintela.

Comprada a segunda edição, reli-a de ponta a ponta, detendo-me em algumas passagens que me tinham ficado na memória durante mais de vinte anos. Partilho com os leitores uma dessas passagens em que se refere a longa e estreita e nem sempre pacifica amizade amizade entre três grandes nomes das Literatura: Vitorino Nemésio, Paulo Quintela e Miguel Torga.

“Nemésio estudava pouco. Não teria muito tempo! Antes das frequências chegava-se a Quintela para se informar da matéria que vinha para o exame. Ouvia o que dizia o colega, ia tomando notas num cartão-de-visita, e por fim entrava na sala. Perante o papel da prova, escrevia o que sabia e inventava o que não sabia. Numa frequência de História Medieval, da regência do Doutor Gonçalves Cerejeira, Nemésio, como de costume, chegou-se à beira do amigo e perguntou-lhe as linhas gerais da matéria. Durante a prova desunhou-se a escrever. Dias mais tarde, o professor apreciava e comentava na aula, as provas escritas uma por uma, tão poucos seriam os alunos. Ao chegar ao exercício de Nemésio, «Quanto ao exercício de frequência do senhor Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, tenho a dizer que mais me parece uma página de Anatole France…», tal era a sua capacidade de escrita.
Lá escrever bem, venha aí quem o negue, e como facilidade, o que já poderá ser um estorvo, mas segundo Paulo Quintela, Nemésio escrevia com a mesma naturalidade com que mijava. Anos mais tarde, leitor de Português em Bruxelas, Nemésio havia de surpreender Miguel Torga pela facilidade de escrita. O passo que a seguir se transcreve do tomo III de Criação do Mundo ilustra bem essa agilidade: «Ao cabo de algumas horas de comboio, fui encontrá-lo confortavelmente instalado num quarto burguês, a matraquear à máquina um ensaio sobre Valéry. Depois das primeiras efusões, com medo de o interromper, fiquei calado. – Vai dizendo, que isto tem de seguir hoje… – Acaba lá primeiro. – Ainda demora. Conta, conta… – Pasmado, assisti então ao fenómeno de o ver a conversar e escrever ao mesmo tempo»”

Imagem: Reprodução do quadro de Bárbara Borges. Nele se pode ver Cristóvão de Aguiar e Paulo Quintela com o seu inseparável cachimbo. Aguiar foi seu aluno e amigo e durante muitos anos encontravam-se com regularidade para conversar em tom de tertúlia.

Referência completa: Aguiar, C. (2005). Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia. No centenário do seu nascimento. Coimbra: Imprensa da Universidade, página 32.

4 comentários:

Anónimo disse...

Vocês já se deram ao trabalho de pensar se é possível uma pessoa (mesmo um génio) pensar em duas coisas ao mesmo tempo? Acham mesmo que é possível ler e escrever ao mesmo tempo, ou ouvir e escrever, ou ouvir e ler?
Não acham que este país tem demasiadas pessoas como o Marcelo Rebelo de Sousa, que é capaz de ditar duas cartas ao mesmo tempo?
Já pensaram que se calhar são tretas, que a nossa elite não é intelectualmente séria?
luis

Anónimo disse...

O Nemésio seria torrencial, genial, mas era concerteza um "bazote", que falava e escrevia sobre tudo, muitas vezes sem grande preparação. Acertava porque falava muito e génio, claro! Veja-se o que ele escreveu sobre o átomo. E quanto a não estudar, conheço histórias não publicadas de um colega de curso que estudava com ele. Estudava sim, mas gostaria talvez de parecer que não o fazia. E dava umas linguas de gato ao pobre (literal e figurado) companheiro de estudo enquanto depois se banqueteava sozinho com as iguarias que lhe enviava a família...

Obviamente não o conheci, mas julgo que ele tinha concerteza aquelas características que Melville definiu como necessárias para triunfar mesmo quando se é genial: uma certa maldade, egoísmo e vontade de se sobrepor aos outros.

Sérgio

Bárbara Alexandra Borges disse...

É com grande prazer que vejo uma obra minha ser utilizada com grande dignidade, pois o senhor Paulo Quintela merece muito mais, com todo o respeito pela companhia, Cristovão de Aguiar
obrigado
Barbara Borges

Bárbara Alexandra Borges disse...

Bom ano

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