domingo, 25 de março de 2007

Sexo e ciência: um tributo a Hamilton

No dia 7 de Março, o dia em que nos lançámos nesta experiência na blogosfera, fez sete anos que morreu o cientista que muitos consideram o pai da segunda revolução evolucionista: William Donald Hamilton.

Hamilton revolucionou a biologia com os artigos «The Genetical Evolution of Social Behaviour I e II», publicados no Journal of Theoretical Biology em 1964 e que explicam a base genética do altruismo. Estes artigos, considerados a maior contribuição à teoria da evolução depois de Darwin, foram enviados do Brasil, da UNESP Rio Claro, onde Hamilton mantinha uma colaboração.

Mas Hamilton forneceu igualmente a primeira resposta satisfatória à pergunta: para que serve o sexo? De facto, embora poucos discordem que sexo seja bom, o caso muda de figura quando a interrogação passa para o campo científico. Isto é, em termos biológicos o sexo é bom para quê?

Já em 1889 o biólogo alemão August Weismann tinha afirmado que a função do sexo não poderia ser apenas a de permitir a multiplicação dos organismos. Para a grande maioria das formas vivas, a reprodução assexuada, nas suas muitas variantes, assume-se como a forma predominante de reprodução. E não há indícios de que as bactérias se divirtam no processo, apesar do afinco com que se dedicam à reprodução.

A via sexuada é a forma de reprodução mais dispendiosa na perspectiva biológica, não só a nível fisiológico mas, quando os dois sexos correspondem a indivíduos distintos, também comportamental. Pensemos na energia investida em cantos, danças e outras exibições altamente elaboradas dos comportamentos de corte de muitas espécies, assim como no aparecimento e manutenção de características sexuais secundárias como as majestosas plumas dos pavões macho. Para não falar no desperdício de energia na produção de machos, criaturas quase inúteis do ponto de vista biológico, criadas e alimentadas com a função específica de doarem gâmetas para fertilizar as fêmeas.

Por outro lado, como apontou em 1971 o evolucionista inglês John Maynard Smith, na corrida evolutiva, na qual a passagem dos genes à geração seguinte é um grande objectivo, um indíviduo sexuado está em clara desvantagem em relação a outro que se reproduza assexuadamente já que o primeiro apenas passa à descendência metade do seu material genético. Esta desvantagem ficou conhecida por «o custo da meiose».

Em suma, a propagação genética sexuada é mais «cara» do que a assexuada; o sexo, em termos biológicos, é um «artigo de luxo»! Qual é então a razão para que se invistam tantos recursos neste artigo de luxo?

Maynard-Smith argumentou que o sexo só poderia ter evoluído se um benefício misterioso contrabalançasse o grande custo da meiose. A proposta revolucionária de Hamilton em 1980 para o aparente paradoxo é um corolário da teoria da evolução a que se chamou a hipótese da Rainha Vermelha, denominação inspirada no livro de Lewis Carrol, «Through the Looking Glass», no qual a Rainha Vermelha diz: «Now here, you see, it takes all the running you can do to keep in the same place».

Um meio ambiente em permanente mudança, especialmente no que diz respeito a parasitas (bactérias, vírus, etc., que se reproduzem assexuadamente), é a base desta hipótese de Hamilton sobre a origem e a manutenção do sexo. Os omnipresentes parasitas têm virulência específica, afectando apenas determinados genótipos dos hospedeiros. O tempo de vida dos parasitas é muito mais curto que o dos hospedeiros, ou seja, milhões de gerações dos primeiros sucedem-se durante a vida de um hospedeiro. As incontáveis gerações de parasitas, para os quais a principal fonte de variabilidade é a mutação, traduzem-se em taxas de evolução muito maiores, deixando como única saída para os hospedeiros mais longevos a reprodução sexuada e a produção de filhos diferenciados geneticamente e eventualmente resistentes aos parasitas.

Segundo Hamilton, uma «corrida às armas da adaptabilidade genética» entre hospedeiros e parasitas ocorre desde que a vida surgiu na Terra. Os parasitas estão sempre a furar as barreiras defensivas do genótipo dos hospedeiros, enquanto estes, com a ajuda do sexo, criam continuamente novas defesas. Na ausência do sexo, os hospedeiros permaneceriam geneticamente inalteráveis e seriam exterminados quando os parasitas conseguissem derrotar o sistema imunológico dos hospedeiros.

Hamilton desenvolveu uma visão parasítica do mundo que explica até a evolução de características sexuais secundárias como as cores brilhantes de alguns pássaros: propaganda genética. De facto, as fêmeas são muito exigentes na escolha dos machos com que acasalam e procuram garantias que o macho escolhido tenha «bons genes» contra parasitas. Para isso é necessário que os machos as convençam da excelência dos seus genes. Para evitar «gabarolices», isto é, publicidade enganosa, as provas da boa qualidade genética são muito dispendiosas em energia: apenas indivíduos com bons genes as conseguem exibir.

Os parasitas acompanharam Hamilton até ao fim da sua vida. Em 2000, numa expedição ao Congo, Hamilton contraiu malária tendo morrido pouco depois.

19 comentários:

António Parente disse...

Agora fiquei muito confuso:

1) Não faria mais sentido nós termos evoluido para uma forma assexuada de reprodução? Como hospedeiros, teríamos uma maior capacidade evolutiva e seríamos mais resistentes aos nossos inimigos bactérias, fungos, vírus e outros parasitas não identificados; somos um mero erro da Natureza?

2) Tendo o sexo uma função profilática, seria natural que o sexo fosse como a aspirina, isto é, em milhões de anos de evolução os nossos genes já teríam vencido o miserável vírus da constipação; será que as questões ambientais também não têm influência em questões genéticas?

3)Finalmente, sendo o sexo uma questão da biologia, como se justifica o prazer? Identificado o fim do sexo, não seria mais lógico e racional utilizá-lo apenas para fins procriativos?

4) Como se justifica o amor? É apenas uma questão química, biológica, uma tentativa de sedução da fémea em relação ao macho no sentido de escolher os melhores genes? Mas como é que eu sei que geneticamente aquela mulher é a mais interessante? E quando parecem filhos deficientes? O que falhou?

5) Serei eu geneticamente interessante já que tive 9 namoradas antes do casamento? Será por um indicador deste tipo que se identifica a eficiência genética?

6) Será que as mulheres e os homens, depois dos 40 anos, se tornam geneticamente desinteressantes?

7) Como se justifica que idosos com mais de 70 anos procurem viver juntos e insistam em ter uma vida sexual se em termos evolutivos isso não faz nenhum sentido?

8) E os homossexuais que não procriam, nem têm apetência para tal, serão geneticamente ineficientes e a sua não reprodução não os tornaria mais atreitos a constipações, bactérias, fungos e outros parasitas?

9) Mas, se assim fosse, nascer homossexual será uma deficiência genética, um problema químico?

10) E em termos evolutivos não teriam os homossexuais tendência para a extinção já que não são geneticamente eficientes?

11) E as mulheres e os homens estéreis? O que correu mal? Têm maus genes e a natureza "castigou-os" para que não se reproduzissem? Fará algum sentido a reprodução medicamente assistida? Não estaremos a fomentar o aparecimento de indíviduos geneticamente ineficientes?

12) E as companhias de seguros? Porque não nos fazem o mapeamento genético e assim determinam o prémio do seguro de saúde ou de vida?

13) Não será mais lógico, em termos políticos, favorecer apenas os indíviduos geneticamente eficientes, contribuindo, desse modo, para a redução acentuada das despesas de saúde?

Unknown disse...

António Parente:

É difícil responder às suas interrogações sem que saiba o B-A-BA da biologia. Respondendo a um pedido da Palmira para fazer tábua rasa do passado aqui vai:

1) Não faria sentido porque somos uma espécie longeva. Os nossos genes não se alteram ao longo da vida. Ao longo da vida de um humano os parasitas podem acumular milhões de mutações.

2)Não! Porque os parasitas evoluem.

3) Há espécies animais em que as fêmeas produzem anestésicos no acto sexual. O prazer humano é um acaso da evolução, uma forma biológica de recompensa génica. Há mais exemplos de mecanismos biológicos de recompensa quando fazemos coisas que fazem bem.

4)Há muitos factores biológicos no amor mas os homens são mais que meros animais.

5) Não há um contador biológico do número de namoradas. As características sexuais secundárias para os humanos são mais culturais que biológicas.

6) a 11) está a querer reduzir os humanos aos seus genes e esquecer o resto. Há uma base biológica para o resto mas os factores culturais são muito importantes. E está a confundir reprodução sexuada com sexo.

12 e 13 A ciência é amoral. Não venha com innuendos de que a ciência é má porque o conhecimento pode ser usado de formas imorais. Pode sair-lhe o tiro pela culatra...

Unknown disse...

Adorei o post! Agora falta um ou uns sobre o altruismo.

António Parente disse...

Rita

Viu como até se torna agradável quando é educada? Pode defender a Palmira à vontade sem ser desagradável para com as outras pessoas.

Vou usufruir deste belíssimo momento de paz e deixarei as perguntas (e os meus comentários)sobre as suas explicações para mais tarde...

Cristina Melo disse...

Não tenho muitas dúvidas, estou apenas a aprender. acho apenas os posts muito interessantes, sobretudo este.

António Parente disse...

Rita

Aqui estão as minhas questões /comentários:

1)Nada diz que a Natureza não pudesse evoluir de forma diferente: sermos uma espécie longeva e com capacidades de mutação genética que nos tornassem imunes aos parasitas, ou seja, a questão é porque não somos imortais e super-homens/mulheres?

2)Não entendo porque é que a nossa capacidade de adaptação ao meio ambiente e às suas agressões é mais lenta do que a dos parasitas, apesar de sermos longevos? Afinal não somos seres inteligentes e racionais, do ponto de vista biológico? Geneticamente somos incapazes de processar informação exterior?

3)Essa do prazer humano ser uma recompensa genética surpreende-me porque sendo assim só no acto da procriação é que devíamos ser recompensados; não faz sentido sermos permanentemente recompensados e os gatos, por exemplo, terem apenas um período anual de cio onde têm essa recompensa;

4)Surpreende-me que diga que os homens são mais do que meros animais; o que os diferencia dos animais em termos sexuais? não temos os mesmos instintos reprodutivos? Não há prazer no mundo animal (tudo o que vejo no National Geographic é mentira?)?

5) "As características sexuais secundárias para os humanos são mais culturais que biológicas": e essas características também não têm uma base biológica? Se sim, então é tudo biológico; se não, então temos aí uma dicotomoa corpo-mente que sai do campo do positivismo lógico (resquícios de uma educação judaico-cristã?);

6) a 11) Mesma questão anterior e gostava que me explicasse qual a diferença entre reprodução sexuada e sexo; se considera a homossexualidade uma questão cultural e não biológica, então justifica-se que questões culturais sejam objecto de análise social, certo?

12) e 13) Descontando a ameaça do "tiro sair pela culatra" (eu nunca ando armado e sou um gajo absolutamente pacífico que vive com a casa infestada de moscas, mosquitos e baratas porque se recusa a exterminar estes espécimes do reino animal), discordo de si. Por um motivo simples: a ciência enfrenta questões éticas. Peter Singer foi o primeiro a realçar essa questão quando focou o sofrimento dos animais em experiências científicas; o mesmo se aplica aos humanos: um laboratório que fabrique um medicamento, o coloque no mercado e descubra posteriormente que a médio prazo os clientes estão condenados à morte é responsável, moralmente, por avisar e retirar o medicamento do mercado; ensaios clínicos só podem ser realizados depois de aprovados por uma comissão de ética (constituída exclusivamente por médicos cientistas que entendam do assunto) e com o consentimento dos doentes; as coisas não são tão simples como as apresenta...

E pronto: estou adorando conversar consigo de uma maneira pacífica. Se largar a pistola, penso que entramos numa fase zen...

Unknown disse...

1) e 2) Eu sou ateia, não me ponho a inventar propósitos em acasos da evolução. Mas estas perguntas deviam mostrar que a haver design foi muito pouco inteligente.

3) Isso não funciona assim. Os mecanismos que entram em acção no acto sexual são independentes do propósito. Algumas espécies têm períodos de cio bem delimitados que dão maior hipótese de sobrevivência às crias que nascerão numa altura de abundância de recursos.

4) Eu disse algumas espécies, não disse todas. Nalguns macacos o sexo tem também uma função social.

5) Uma base biológica não quer dizer que os nossos comportamentos sejam regulados em exclusivo pela biologia. Não há dicotomia corpo-mente ou corpo-alma. A nossa mente é estritamente biológica mas a forma como se estabelecem sinapses e crescem neurónios é influenciada por padrões culturais/sociais. Pense nas crianças-lobo.

6a 11) Deixe os preconceitos católicos em relação ao sexo e ao sexo homossexual de lado para não contaminar a conversa.

7) Está a fugir ao tema. Tudo o que envolve a acção humana apresenta questões éticas. Eu acho que a religião é a construção humana que está mais a precisar de limites éticos, não a ciência. A ciência é aberta à discussão e a críticas e auto-regula-se, a religião é completamente fechada a tudo e está em total roda livre.

António Parente disse...

1) e 2) Não falei em design inteligente, pedi apenas uma explicação científica.

3) Bom, tenho muito que aprender sobre sexo.

4) Certo, tal como vi no National Geographic.

5) Hum, vou pensar no assunto.

6) a 11) Não tenho preconceitos católicos em relação ao sexo nem aos homossexuais; quem falou na questão cultural foi a Rita e eu limitei-me a manter o tema estritamente nesse campo;

7) Não fugi ao tema, a Rita é que está a fugir agora. A ciência não é totalmente aberta à discussão e não se auto-regula; esse grau de auto-suficiência não é real; sendo a ciência dependente do poder estatal e político é lógico que tenha de ser regulada; quanto á religião só se fechará de a tornar completamente privada; se a mantiver na roda pública evita que ande em total roda livre; é isso que um ateísta não consegue entender: meter a religião num beco fechado é o maior erro que se pode cometer.

E, pronto: penso que poderemos ficar por aqui antes que o diálogo "azede"... não abusemos da sorte...

Unknown disse...

A ciência é totalmente aberta à crítica e à discussão e totalmente sem fronteiras. Dentro da comunidade científica: não faz sentido discutir críticas de quem não percebe do que fala.

«quanto á religião só se fechará de a tornar completamente privada»

é, vê-se com o fundamentalismo islâmico. E viu-se na Idade Média com o fundamentalismo católico. Muita abertas: quem divergia uma vírgula das patetadas do Vaticano, fogueira com eles. Uma abertura como nunca se viu. As atrocidades em nome do catolicismo na Europa só pararam como se mandou a religião para o beco. Agora quer sair outra vez...

António Parente disse...

"Quem não percebe do que fala" financia a actividade científica através dos impostos. Não me interessa discutir o que a Rita faz em biologia, só quero saber se isso provoca danos colaterais em humanos, animais ou em termos ambientais. Se a Rita está a construir uma arma biológica de destruição maciça por indicação do poder político, isso é do interesse público, eu tenho direito a saber e a sociedade em geral pode decidir que a Rita não pode continuar com o seu projecto.

Agora se a Rita estuda o genoma das borboletas, posso achar que é um desperdício de dinheiros públicos, mas em princípio não farei campanha contra isso, até porque sei que a certo nível só se encontra emprego no sector público e todos temos direito a viver. E eu não me importo de financiar a investigação da Rita mesmo que isso venha a alterar a percepção do público em relação à forma como funciona o mundo e o Universo. Considero que isso é um serviço que a Rita presta à sociedade em geral e, por isso, a investigação científica, fundamental ou aplicada, deve ser incentivada e apoiada pelo Estado.

Eu sou economista. Imagine que nós economistas decidiamos que só nós, os inscritos na Ordem dos Economistas, é que podíamos falar de Economia. O Desidério decidia que só um filósofo podia filosofar e o Carlos Fiolhais que só um físico podia criticar a construção de uma máquina que fizesse implodir a Serra da Estrela e a colocasse na estratosfera. Então, só os sacerdotes e os teólogos falariam de religião e nem eu nem a Rita teríamos autoridade intelectual para opinar sobre a Inquisição ou sobre a existência de Deus, porque não éramos "especialistas" na temática.

A soberba intelectual, Rita, nunca fez bem a ninguém.

Quanto ao fundamentalismo islâmico e católico sugiro que leia mais antes de opinar...

Quanto às atrocidades na Europa elas continuaram por muito tempo em países em que a religião era proibida... E como explicou o Desidério num comentário a outro post há muitas ideias erradas (sobre as cruzadas por exemplo). E sobre a Inquisição, digo eu. Foi um crime que não se pode desvalorizar mas não é como a Rita diz... Procure informar-se, leia, não confie só no ateísmo pimba... Eu li o Richard Dawkins e o Sam Harris para os poder criticar com conhecimento de causa. Não fui à wikipédia ver quem era.

E termino: Aqui não é o local adequado para discutirmos religião, penso eu.

Unknown disse...

Meu caro:

E eu a pensar que estávamos a falar de ideias: a ciência é aberta à discussão de ideias; na religião a discussão de ideias é heresia.

Mas já que estamos a falar de dinheiros públicos e do direito que o António acha que tem para vetar investigação de que não gosta e que falar do dinheiro público que vai para a Igreja? E daquele dinheiro de impostos sobre actividades lucrativas que a Igreja não paga? Do IVA que a Igreja não paga?

Vai muito mais dinheiro para a Igreja do que para investigação em Portugal!

E não me parece que a Inquisição, a tortura, os churrascos de hereges e bruxas, tenha desculpa! Ou seja invenção de um ateísmo pimba, o que quer que isso seja!

António Parente disse...

Caríssima:

A discussão de ideias em religião não é heresia. O que se passa na religião católica é que quem diverge pode fazê-lo desde que diga que não fala oficialmente em nome da Igreja. Acontece isso com o teólogo Hans Küng e com outros. Até eu posso dizer o que me vier à cabeça desde que o faça em nome pessoal. Mas, a Rita reconhecê-lo-à, não faz sentido pertencer a uma comunidade se não se comungar com as ideias dessa comunidade. Isto é pacífico, seja dentro ou fora da religião.

Eu não quero vetar investigação científica, penso que é suficiente estabelecerem-se regras éticas e códigos de conduta como em qualquer actividade. Na empresa em que trabalho tenho de cumprir um código de conduta, a Ordem dos Economistas estabeleceu-me um código deontológico, sou obrigado a cumprir as leis do país. Isso que acontece comigo deve acontecer com todos os profissionais, trabalhem eles no sector privado ou público, desde que as suas actividades tenham implicação directa na vida das outras pessoas.

Agora o tipo de investigação que a Rita faz, como o faz e com quem faz, não é do meu interesse pessoal. A Rita pode ser avaliada pelos seus pares, pelo Estado, por comissões internacionais, não sou eu pessoalmente que vou fiscalizar o seu trabalho nem a Rita fiscaliza o meu. Mas ambos temos de cumprir regras: não podemos alegar que não podemos ser controlados por quem "não sabe" porque isso dá origem a corporações privadas, fechadas em si próprias e com isso não estou de acordo.

Quanto ao financiamento da Igreja pelo Estado, saiba que sou contra. A Igreja tem benefícios fiscais como as pessoas individuais, as empresas, as fundações, as entidades de utilidade pública ou as associações sem fins lucrativos as têm. A Rita se comprar um computador pode deduzir uma parte no IRS. Eu deduzo as despesas de educação dos meus filhos. A Igreja pode ter isenções de IVA, se isso for decidido pelo Estado. Pessoalmente, sou pela separação total da Igreja em relação ao Estado. O pior que pode acontecer à Igreja é misturar-se com o poder. Para que saiba, por mim nem existia o Estado do Vaticano. Não vejo necessidade da sua existência.

O que é preciso é transparência, seja em que actividade for. E sobre ir mais dinheiro para a Igreja do que para a actividade científica, não conheço estatísticas que confirmem isso. Mostre-mas, por favor. Penso que é elementar este pedido. Se tiver razão, dou-lha.

Eu nunca desculpei a Inquisição, nem a desvalorizei, e penso que não é honesto fazê-lo. Mas os seus conhecimentos de História parecem-me, vai-me desculpar com certeza, muito rudimentares. Aprofunde o assunto, e depois discutimos com seriedade. Foi o que eu fiz. Neste tipo de debate "agora diz tu, agora digo eu" não chegámos a lado nenhum.

Desidério Murcho disse...

Caro Parente

Meto aqui uma colherada, se me permite. Diz que "não faz sentido pertencer a uma comunidade se não se comungar com as ideias dessa comunidade", mas isto é parcialmente falso. Faz pleno sentido pertencer a uma comunidade e discutir ideias frontalmente com os nossos pares. Na verdade, raios, é isso que faço na minha vida profissional. E é isso que vê se ler revistas académicas de qualidade em qualquer área: x procura mostrar que y não tem razão sobre um dado assunto. Pertencem à mesma comunidade? Claro que sim. Só que pertencem a uma comunidade crítica, e não dogmática. As comunidades religiosas não são assim. E essa diferença é crucial.

António Parente disse...

Caro Desidério

Penso que está enganado sobre as comunidades religiosas. Não pertenço a nenhum movimento de leigos mas já participei em reuniões internas. O que lhe posso dizer é que existe uma abertura total para discutir todos os assuntos e temas. Nunca ninguém me impediu de falar ou de mostrar a minha discordância. Mas há um conjunto de princípios básicos com que as pessoas se identificam. E essas não colocam em causa: é a matriz que os identifica e diferencia.

Numa comunidade religiosa com mil milhões de pessoas é preciso existir alguma unidade. Se não existir é o seu fim. Por isso eu não discuto em público as eventuais divergências que tenha com a Igreja e com o Papa Bento XVI porque são irrelevantes para os meus pares. Só manifesto frontalmente a minha discordância se me deixar de identificar com a comunidade religiosa a que pertenço. Por exemplo, o regresso das fogueiras levar-me-ia, muito provavelmente, a servir de churrasco porque eu seria frontalmente contra.

A filosofia também tem os seus dogmas e regras que, provavelmente, espartilham mais o pensamento do que a religião. Só que não lhe chamam dogmas nem "Bíblia": chamam-lhe "falácias" e "Guia das Falácias". E também tem um catecismo: "Como fazer um ensaio filosófico".

Uma das coisas que mais me irritava no passado era eu defender uma determinada ideia e alguém me dizer "essa ideia não é válida porque é uma falácia xpto". Isto é a redução da filosofia ao grau zero. Por exemplo, se eu disser que a Inquisição foi um desvio ao cristianismo atiram-me com a falácia do "verdadeiro escocês" e matam a conversa. Se eu discutisse com o velho Sócrates ele não me atiraria com a falácia xpto mas dir-me-ia "Parente, o que é para ti o cristianismo verdadeiro?" e tentaria demosntrar-me que eu não tinha razão.

Até o Desidério, um filósofo profissional, já fez isso num comentário. Atirou ao seu oponente a falácia xyz e "matou" a conversa. Isso não é filosofia, é burocratizar o pensamento, espartilhá-lo, reduzi-lo a uma tarefa mecânica.

"Odeio" a falácia do verdadeiro escocês e um dia demosntrarei a sua falsidade.

A forma como se discute filosofia e se faz crítica mata a filosofia. Começa-se por "se a+b= c, então o Zé é careca" e faz-se um ensaio sobre isto. Usa-se uma linguagem técnica muito especializada tipo "p ou não p" e tiram-se conclusões pseudo-científicas quando a filosofia não é uma ciência mas sim a arte de pensar. E a arte tem de ser criativa, sem regras burocráticas.

Penso que lhe dei bons temas para "desancar" o Parente... :-)

Desidério Murcho disse...

Caro Parente

Eu compreendo que quem não tem formação em filosofia possa ficar algo irritado quanto um filósofo declara que há uma falácia num argumento. E concordo que se pode abusar da acusação de falácia. Na verdade, muitas pessoas não sabem o que é uma falácia, porque não sabem sequer o que é um argumento — e não sabem lógica. Mas não é possível hoje ser um bom filósofo sem dominar a lógica, pois seria como ser hoje um físico sem dominar a matemática, ou um músico erudito sem saber ler uma partitura. Há competências básicas sem as quais não se pode pura e simplesmente fazer filosofia hoje.

Mas não se pode abusar; isto é, se eu estou a falar com um leigo em filosofia não posso começar a usar conceitos que essa pessoa não domina. Mas se for mesmo necessário dominar tais conceitos para poder discutir as coisas com seriedade e a outra pessoa se recusa a ir estudar ou até a aprender com quem sabe, bom, então a conversa chegou claramente ao fim.

Em qualquer discussão de ideias há um conjunto de condições prévias sem as quais a discussão não faz sentido. Eu destacaria as seguintes: 1) confiança na boa-fé da outra pessoa; 2) boa-fé da nossa parte, o que implica estar disposto a mudar de ideias, analisar cuidadosamente os dados e os argumentos contrários e não usar conscientemente falsidades nem falácias na nossa argumentação; 3) predisposição para aprender com a outra pessoa sobre os domínios que a outra pessoa domina melhor — o que implica acreditar que a outra pessoa não vai usar o conhecimento maior que tem para deturpar as coisas.

No caso da filosofia acontece muito as pessoas que nada sabem do assunto, ou que têm da filosofia um conhecimento de leigo (como eu sei, por exemplo, de biologia), arvorarem-se em filósofos. Um pouco como se a filosofia fosse cultura geral, em que toda a gente é especialista. Isto é um erro. Sem um bom conhecimento da bibliografia fundamental e sem um domínio das competências filosóficas básicas as opiniões de um leigo são tão desinteressantes quanto as minhas opiniões sobre a física quântica — sei umas coisas vagas, por ler coisas de divulgação.

Desidério Murcho disse...

Caro Parente

Quanto aos outros aspectos do seu comentário. As diferenças são profundas, entre a filosofia e a religião. Pense no seguinte: Russell e Frege são dois dos filósofos mais importantes e respeitados do séc. XX. As suas ideias sobre filosofia da linguagem, metafísica e epistemologia deram origem a inúmeros estudos e desenvolvimentos na filosofia contemporânea. Contudo, Kripke ficou famoso precisamente por refutar (ou pelo menos procurar refutar) uma das teses centrais destes filósofos. Ninguém o excomungou, não teve de fundar uma nova “escola” ou igreja, não houve gritos de “Blasfémia!” nem sugestões de que devia ficar calado ou ser afastado. Não. A comunidade filosófica, como a científica ou qualquer comunidade academicamente séria, acolheu as ideias de Kripke — porque baseadas em argumentos poderosos e teorias bem fundamentadas. E, claro, hoje há quem as conteste. Isto é saudável.

Mas isto não acontece na religião, como você reconhece. Se você desatar a escrever por aí que discorda das ideias do seu bispo, está tramado. E de nada serve dizer que pode haver crítica, mas “lá dentro” — diacho, António, isso era o que os comunistas diziam relativamente à União Soviética: que toda a gente podia criticar o regime, mas “lá dentro”. Mas a gente não quer a crítica só “lá dentro”. Queremos a crítica pública, “cá fora”. E não é verdade que para termos uma comunidade temos de ter este conceito de comunidade. Os cientistas e filósofos, os académicos em geral, constituem comunidades, mas não impedem que se conteste as ideias dos colegas “cá fora”. O mesmo se pode dizer de uma comunidade democrática; eu não sou menos português se contestar o presidente da república ou o primeiro-ministro. Raios, dado quem eles são, até me parece que sou mais português... 

Agora repare uma coisa: significa isto que não se pode ser religioso sendo-se cientista ou filósofo? Claro que não. Alguns dos grandes cientistas foram e são religiosos. O mesmo se pode dizer dos filósofos. Kripke, tanto quanto sei, por exemplo, é religioso. Putnam é. E poderia dar-lhe dezenas de nomes.

Quanto a doutrinações (catecismo) no ensino da filosofia, só se for mau ensino. Se for bom, tem por principal missão dar aos estudantes os instrumentos para que possam contestar as ideias dos filósofos, assim como apresentar e defender rigorosamente as suas ideias. O Guia das Falácias do Downes não é doutrinação. Dizer tal coisa seria como dizer que ensinar a tabuada é doutrinação.

Mas há um fenómeno bizarro que já observei com as pessoas religiosas em Portugal — e até algumas com formação, obviamente deficiente, em filosofia. Por algum motivo que desconheço sentem-se desconfortáveis com a lógica contemporânea, mas confortáveis com a de Aristóteles. Isto é bizarro, dado que alguns dos mais importantes filósofos da religião contemporâneos, cristãos, são igualmente proficientes em lógica contemporânea — como o caso de Plantinga e Swinburne. A lógica é neutra, Parente. É como a matemática. Aceitar a lógica contemporânea (ou as lógicas, porque há várias) não nos compromete com o ateísmo — pensar isso só revela desconhecimento bibliográfico básico. O que não é nenhum problema — estamos aqui para aprender uns com os outros.

Desidério Murcho disse...

Parente, só mais uma coisa: não se pode demonstrar que uma falácia é falsa, porque só as afirmações são verdadeiras ou falsas e as falácias são argumentos. O que quer dizer é que um dia tentará mostrar que a falácia do verdadeiro escocês não é um argumento falacioso. Mas para fazer isso tem primeiro de saber a diferença entre afirmação ou proposição e argumento, tem de dominar o conceito de falácia e tem de distinguir falácias formais das informais. Coisa que quem o lixa com essa acusação também não sabe, com toda a certeza... Mas sempre se aprender qualquer coisa interessante pelo caminho.

António Parente disse...

Caro Desidério

Gostei do seu comentário. Nada mais tenho a dizer. Vou estudar.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

E, destes idos, colaborara na evolução, segundo William Donald Hamilton o cientista.

A panaceia da educação ou uma jornada em loop?

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