sábado, 13 de março de 2021

UM PALITO NOS DENTES

 

Magnífica crónica de Manuel Fonseca, o editor da Guerra & Paz, sobre a sua recente e dolorosa experiência com a COVID-19, publicada no Jornal de Negócios e no seu blogue, que, cedida pelo autor, tenho o gosto e a honra de transcrever aqui: 

Quem sou eu para me atrever a não querer morrer? Venham comigo ao camarote do escritor Sherwood Anderson. Torce-se de dores. E no Santa Luzia, o barco de cruzeiro em que viaja com a mulher, já não têm paliativos que lhe valham. Desembarcam-no no Panamá e morre. A autópsia é humilhante: um palito dos dentes, que engoliu sem querer, deu na peritonite que o matou. 

Eis a pungente contradição: as short-stories de Anderson, o seu romance Many Marriages, influenciaram Faulkner, Fitzgerald, mesmo o não-influenciável Hemingway, mas bastou um ridículo e impertinente palito dos dentes para o matar. 

Eu mesmo tenho agora o palito dos dentes entre os lábios. Chegou-me, na forma de covid-19, em Dezembro, antes de se saber que Janeiro seria o mais feroz e desumano dos meses. 

Lembro Ésquilo, pai do teatro trágico: diz Plínio que o dramaturgo passeava a sua brilhante calvície pela desconfinada natureza. Mas vejam, uma águia cruza os céus, nas garras a tartaruga que quer almoçar. Vê a luzidia careca de Ésquilo, que toma por uma pedra alva, e dispara contra ela a tartaruga que precisa de esmigalhar. A águia regalar-se-á, mas quem tomba, fulminado, é o guerreiro e herói da Maratona, o autor de As Suplicantes, peça que há uns meses uma demente e woke Sorbonne proibiu.

Na covid-19, a águia aparece em voo picado e rouba-nos a respiração. Em menos de 48 horas, peregrino de ambulância em ambulância, da minha cama passei à cama dos cuidados intensivos, não sem deambular em passo de corrida pelo cadeirão das urgências em tumulto do São José e por uma breve cama de enfermaria.

Emile Zola morreu assim, há 120 anos, na cama do seu quarto, sem se aperceber que só respirava a doçura mortal do monóxido de carbono que a má chaminé não extraía da lareira acesa.

E ora vejam, aí estou eu numa cama dos cuidados intensivos do Curry Cabral, a cabeça tão calva como a de Ésquilo, os pulmões tão irrespiráveis e falidos como os de Émile Zola, na boca o palito dos dentes de Sherwood Anderson. Eu julgava já ter visto a morte em dois pesadelos.

Álvaro Cunhal disse um dia, e numa idade em que já só se diz a verdade, que lhe viera falar a morte e que a morte era uma senhora de branco. Nos meus sonhos de morte, o meu confessado e irredutível anti-cunhalismo trocou a senhora de branco por figuras goyescas, escuríssimas e assustadoras como um Adamastor. 

Mas, acordado, nunca tinha tido a morte em visita. Vista de olhos nos olhos, à luz branquíssima dos cinco dias e cinco noites do quarto de cuidados intensivos, a morte tem a mansidão e humildade que só se encontra em sábios ou monges. Nada há nela nada de arrogante, de impositivo. Assiste-lhe uma lógica irreprimível: nem é branca nem é negra, nem sequer tem rosto, ainda menos o esqueleto que Holbein lhe pintou. 

A morte é um sussurro, uma conversa. Se a morte nos apontasse um incorpóreo dedo, da ponta do dedo crescer-lhe-ia este conceito: a singela e inescapável interrupção do tempo. Nesse minuto ou hora de conversa, a morte dissipou todos os medos. Se só um imbecil não tem pavor da morte, fui por instantes esse indescritível imbecil.

Sozinho, sem telemóveis, incomunicável, mais isolado do que Crusoé na sua ilha, escutei-lhe o silêncio como quem se encanta com a primeira hipérbole. Atrás de mim, um fio de nostalgia pela minha vida vivida, uma vaga irritação pela indelicadeza de partir sem dizer adeus a ninguém. À minha frente, meio passo diante dos meus olhos, a certeza da eternidade, ou seja, a certeza de um nada indolor. 

Nada. The end, como num filme. Manuel Fonseca

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