Minha recensão no jornal I de quinta-feira:
No dia 22 de Setembro de
2015 assisti no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, a uma conferência
intitulada “Os números por outras palavras” pelo médico sueco Hans Rosling
(1948-2017), professor de Saúde Internacional no Instituto Karolinska, em
Estocolmo. O conferencista era, na altura, já muito conhecido como um “mágico”
da estatística pelas apresentações que tinha feito e estavam disponíveis na
Internet sobre a evolução de vários indicadores relativos ao estado do mundo em
TED Talks e outros encontros. Encantou-me não só pelo conteúdo da exposição mas
também pelos seus dotes oratórios, falando em português, com um sotaque do
norte de Moçambique onde tinha trabalhado durante dois anos. A ocasião era a
celebração dos cinco anos da PORDATA, a base de dados de Portugal contemporâneo
da Fundação Francisco Manuel dos Santos, e a anfitriã era a directora dessa
base de dados na altura, Maria João Valente Rosa. Rosling não sabia que daí a
um ano e poucos meses iria morrer com um fulminante cancro do pâncreas.
Antes de morrer preparou
dois livros que, tendo ficado embrionários, foram completados por familiares e colaboradores
e publicados postumamente. O primeiro saiu em 2018 no Reino Unido: Factfulness,
com um subtítulo que traduzido fica “Dez razões pelas quais
estamos errados acerca do mundo e porque as coisas estão melhores do que
pensamos.” Comprei-o no aeroporto
de Hong-Kong e deu para que o tempo passasse despercebido na viagem até Lisboa
via Dubai. Aprendi a compreender melhor o mundo, com base em vários números e
gráficos, completando o que tinha aprendido na conferência de Lisboa. São co-autores
o seu filho Ola e a sua nora Anna, cofundadores com Hans da Gapminder, uma fundação
independente que visa combater, à escala global, concepções erradas. A tradução
em português desse livro saiu na Temas e Debates logo em 2019, uma obra que,
dada a enorme procura, foi reeditada cinco vezes.
Acaba de sair entre nós na
mesma editora a tradução do segundo e derradeiro livro de Rosling: Como Aprendi
a Compreender o Mundo (o original inglês, saído em 2019, foi traduzido do sueco).
É co-autora e autora do posfácio a jornalista sueca Fanny Härgestam, assinando o
prefácio a viúva, Agneta, com quem o autor viveu perto de 50 anos e de quem
teve três filhos (de facto, teve quatro, mas o quarto foi nado-morto). Em contraste
com Factfulness, trata-se de um livro de memórias, em que quase não há números,
mas apenas palavras. São histórias ora divertidas ora trágicas, muitas vezes
comoventes, de uma vida cheia. Rosling conta como aprendeu a colocar os factos
antes de tudo o resto. Dois dos capítulos descrevem a sua estada entre 1979 e
1981 em Nacala, uma cidade portuária no norte de Moçambique, como médico voluntário
pouco depois de ter completado a sua formação na Universidade de Uppsala, a sua
terra natal.
Qual é o ponto principal de Rosling? Os factos podem ser descritos por números
e há que saber ler os números. Como Rosling mostrou em Lisboa, a nossa cabeça
está cheia de preconceitos: pensamos que o número de crianças no mundo vai continuar
a aumentar, quando vai estagnar; julgamos que as taxas de vacinação de bebés são
altas, quando são cerca de 80%; que as mulheres estão muito menos escolarizadas
que os homens quando estão só um pouco menos, etc. Contrariando os profetas da
desgraça, Rosling diz que o mundo melhorou indiscutivelmente nas últimas décadas.
Escreve: “Quando trabalhei em Moçambique estimava-se que a
mortalidade infantil se situasse à volta de 26% e hoje, 35 anos mais tarde,
desceu para 8%. Na Suécia foram precisos 60 anos, de 1860 a 1920, para reduzir
a mortalidade infantil de 26% para 8%.” Quando Rosling regressou a Nacala 31 anos depois mal reconheceu o
hospital onde tinha trabalhado.
Rosling começa, no novo livro, por referir que o seu pai cheirava a café
pois trabalhava numa fábrica de café, como torrefactor. Eram classe média
baixa. A mãe foi dona de casa, depois de ter sido em rapariga ajudante numa
mercearia. Dou a palavra ao autor: “Para chegar dos quatro anos de escolaridade
básica da minha avó até à minha cátedra foram precisos apenas três gerações. Para
dar um exemplo de uma mudança ainda mais drástica, há quatro gerações, a minha
bisavó era analfabeta.” Pensei que com a minha família se passou algo
semelhante, com a agravante de ser a avó e não a bisavó a analfabeta. Mas, no pós-guerra,
verificaram-se progressos: os pais de Rosling conseguiram comprar primeiro uma
mota, depois um carro e, mais tarde, uma casa de praia.
Querendo conhecer o mundo, o jovem Hans foi aos 16 anos passear de
bicicleta pelo Reino Unido, aos 18 à boleia até ao Sul da Europa, aos 20 anos
com a namorada, futura mulher (de profissão enfermeira), até à Turquia de
comboio, e aos 24, fazer um tour de seis meses, ainda com Agneta, pela Ásia.
Passados 42 anos voltariam ao Nepal e, tendo procurado uma casa que os tinha acolhido,
encontraram um nepalês que tinham visto em bebé. Ofereceram-lhe uma fotografia dele
nos braços da mãe, de quem ele não possuía qualquer retrato!
Hans foi o primeiro membro da família ir para a universidade. Era
estudante de medicina em 1967 quando se encontrou com o moçambicano Eduardo
Mondlane, líder da FRELIMO, a quem prometeu que, depois de formado, iria trabalhar
para Moçambique como médico. Em 1969 Mondlane seria assassinado na Tanzânia com
uma encomenda armadilhada.
Portugal, país colonizador de Moçambique, entra na história porque a filha
Anna nasceu em Abril de 1974 e em Novembro de 1975 nascia o segundo filho, Ola.
Entre uma data e outra, em Junho de 1975, Moçambique tornava-se independente. Em
1979, Rosling, a mulher e os dois filhotes partiam para Moçambique. Muitos anos
mais tarde, num jantar em Nova Iorque, Rosling surpreenderia Graça Machel, que
foi mulher de Samora Machel e ministra da Educação, e mais tarde mulher de
Nelson Mandela, com um caderno escolar do filho, em português.
Os capítulos sobre Moçambique são o ponto alto do livro, por revelarem o
que é fazer medicina num sitio onde não havia praticamente nada. Numa área com 300
mil pessoas, só havia um hospital com 50 camas. O pessoal e o material
escasseavam. Os enfermeiros eram analfabetos. Escreve o médico: “Estava
muito abaixo de nível de expectativas de que a minha formação médica na Suécia
me incutira, uma necessidade cem vezes maior do que na Suécia tinha de ser
satisfeita usando 1% dos recursos, isso significava dez mil vezes menos
recursos por doente.”
Há vários episódios dramáticos. Um condutor sem carta de condução havia
de ter um acidente num jipe onde iam Rosling (a quem os nativos chamavam “doutor
Comprido”) e uma sua colega moçambicana, que ficou com sequelas físicas perenes.
Quando o médico regressa, ferido, a casa e abraça a sua mulher, dizendo entre
lágrimas que por pouco não tinha morrido, irrompe uma inspecção da FRELIMO que
passa tudo a pente fino à procura de mercadorias do mercado negro. Um dos momentos
de maior intensidade ocorreu quando Rosling foi a uma aldeia do interior e recebeu agradecimentos por ter feito um parto difícil. Inicialmente não percebeu, pois
tanto a mãe como o filho tinham morrido. Mas o povo tinha as suas razões: o
médico não só tinha apresentado condolências aos familiares como tinha mandado
uma ambulância com os corpos de volta a casa (num meio de pobreza extrema, a
família não tinha dinheiro para os trazer). Mais tarde um outro momento de
tensão ocorreu longe dali, no Congo, quando estudava uma epidemia: foi quase
linchado porque a população achava que ele vinha roubar-lhes o sangue.
Quando Rosling teve, em Nacala, de enfrentar uma epidemia de cólera, uma
colega sua dizia-lhe “Graças a Deus pela cólera”, significando: “Cada caso individual
que é curado aumenta a confiança nos médicos e nos enfermeiros, tornando assim
mais aceitável todo o tipo de medidas de saúde pública.” Rosling combateu uma outra
epidemia, esta mais intrigante: o konzo, uma paralisia dos membros
inferiores. O médico investigou-a, tendo percebido que as pessoas com fome
comiam mandioca que não estava bem seca, contendo produtos tóxicos. Outro
episódio caricato ocorreu nessa altura: tendo pedido motas ao governo para ter
meios de acesso aos doentes, as autoridades apreenderam dezenas de motos aos habitantes.
Perante a revolta, o médico devolveu-as aos donos, conseguindo que eles
fizessem os transportes em troca de óleo para as motas.
Regressado à Suécia, Rosling defendeu em 1986 uma tese doutoral sobre o konzo.
Tornou-se professor na Universidade de Uppsala. Quando ocorreu em Cuba uma epidemia
semelhante ao konzo o governo cubano pediu a Rosling que lá fosse. Ele
foi, tendo falado pessoalmente com Fidel Castro. A desnutrição estava também na
base deste surto. O sueco haveria de tornar-se, em 1996, professor no Instituto
Karolinska, após ter surpreendido o júri com uma original apresentação de dados.
A partir daí Rosling avançou com um novo projecto que justificaria a sua
fama global. O seu filho Ola e a sua nora, os dois com 23 anos, ajudaram-no a informatizar
a referida apresentação de dados. Foi o início da Gapminder, que haveria de o
levar a conhecer Larry Page (fundador da Google), Bill e Melinda Gates, e a
participar no Fórum Mundial de Davos. Já célebre, Hans foi em 2014 à Libéria
lutar contra o ébola. Mas, infelizmente, já não pôde ajudar na luta contra a
COVID-19. Com a sua esplêndida cabeça, teria dado, com certeza, uma grande
ajuda.
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