Artigo que nos foi graciosamente enviado pelo botânico Jorge Paiva, e que muito agradecemos. A data de publicação é 3 de Março deste ano e o título é o mesmo que aqui usamos: Covid-19, plantas medicinais e realidades.
Hipericão-do-gerês ou Hypericum androsaemum é uma planta
protegida que não se pode colher Foto: Jorge Paiva |
A espécie humana, quando não encontra explicação real para determinados fenómenos, procurou sempre sossegar as suas dúvidas ou inquietações com fundamentações mitológicas. Por isso, inicialmente, a maioria das civilizações foram regidas por normas mitológicas.
Com o aumento do conhecimento, principalmente através da investigação científica, muitos dos mitos vão tendo explicação, embora, muitas vezes, inicialmente se duvide, por conveniência, dos resultados científicos. Como aconteceu, por exemplo, com Nicolau Copérnico (1473-1543) quando anunciou, que afinal a Terra não era o centro do Universo (geocentrismo); com Galileu (1564-1642) quando, através de cálculos matemáticos, comprovou a teoria do heliocentrismo de Copérnico e com Charles Darwin (1809-1882) quando publicou (24.XI.1859) os princípios básicos da evolução e “A Descendência do Homem e a Seleção Sexual” (1871), acabando com o mito fixista. O mesmo aconteceu com Garcia de Orta (1501-1568), o fitoterapeuta quinhentista que mais contribuiu para o conhecimento das especiarias e plantas medicinais, algumas desconhecidas na Europa e que estudou e investigou experimentalmente muitas dessas plantas, tendo esclarecido muitas confusões no uso de plantas medicinais conhecidas desde a Antiguidade Grega e divulgadas durante cerca de dezasseis séculos através da obra “De Materia Medica” (60-70) de Dioscórides (c. 40-90).
Apesar desta obra ser tida como uma “Bíblia” da fitoterapia, Garcia de Orta desmitificou muitos atributos miraculosos atribuídos a algumas plantas, como, por exemplo, do Aloe vera. Não lhe perdoaram a afronta e, após a sua morte, exumaram os ossos e incendiaram-nos, assim como todos os volumes existentes em Goa da sua extraordinária obra “Colóquios dos Simples e Drogas he Cousas Medicinais da Índia” (Abril de 1563).
Infelizmente, mitos e fabulações com plantas medicinais continuam, como aconteceu na década de 90 com a panaceia do Aloe vera, quando o frade franciscano Romano Zago, um brasileiro de São Francisco de Assis (Rio Grande do Sul, Brasil), na altura professor de Filosofia e de Latim no Convento de San Salvatore, em Jerusalém, deu a sua primeira grande entrevista à revista argentina “Florecillas de Tierra Santa”, por ter “curado” a leucemia de Geraldito, uma criança argentina, o cancro de Linda, irmã de uma amiga da freira Silvana, da Comunidade de Aida (Israel) e o cancro de frei Rafael Caputo, diretor de uma Escola eclesiástica na Terra Santa.
No ano passado (2020), também uma vidente em Madagáscar anunciou ter recebido uma mensagem para a cura da Covid-19, com uma planta (Artemisia annua), que até não é nativa daquele país e de onde se extrai um produto químico (artemisinina), que é o medicamento mais recente para a malária. Foi o suficiente para que, em S. Tomé e Príncipe, onde existe uma planta que designam por “atlimija”, o presidente da Associação de Medicina Tradicional anunciasse um xarope (“Covid”), dizendo que tinha suco da Artemisia de Madagáscar.
Acontece que, em S. Tomé e Príncipe, não ocorre a Artemisia annua e que a planta da qual ele fabricou o dito xarope milagroso para a cura da Covid-19, a “atlimija”, não é uma Artemisia, mas sim a Pluchea sagitalis, uma planta da mesma família, nativa da América Tropical, mas introduzida nestas ilhas.
E tal como aconteceu em Portugal com os “milagres” do Aloe vera, o xarope “Covid” e seus atributos foram notícia na televisão santomense. Felizmente, uma farmacêutica esclareceu publicamente o logro, tendo o referido fitoterapeuta reclamado que ela lhe estragara o negócio.
No entanto, a fabulação da Artemisia espalhou-se por alguns países da África Ocidental. Julgo que ainda não chegou ao nosso país. Aqui, foi anunciado, por alguns dos nossos órgãos da Comunicação Social, um tratamento para a Covid-19 descoberto por cientistas da Universidade de Nottingham (Grã-Bretanha), com um produto (thapsigargina) extraído de uma planta (Thapsia garganica). Houve logo uma série de entusiastas para ver se a planta, que é da família da cenoura, existia em Portugal. Ora, os referidos cientistas publicaram um artigo sobre os efeitos antivirais da thapsigargina, com resultados promissores, mas ainda muito preliminares e apenas em ratos.
Há vários cientistas a pesquisar compostos químicos de plantas com atividade anti-SARS-Cov2, como os publicados (2020) por cientistas da Universidade de S. Petersburgo (Rússia). Mas, até se conseguir um medicamento, há um amplo trabalho experimental e de pesquisa científica.
Por exemplo, até se iniciar a comercialização do primeiro medicamento oncológico obtido a partir das taxanas do teixo-do-pacífico (Taxus brevifolia), foram necessários cerca de 30 anos. Claro que, tal como aconteceu com outras curas milagrosas, não certificadas cientificamente, como as do aloé, da morinda, do mangustão, já há xaropes, notícias e livros sobre plantas que curam a Covid-19.
Basta ir à “Wikipedia”. Tenho verificado que o Brasil é um local de origem destas fabulações com plantas medicinais. O interessante é que utilizam sempre plantas, cujos atributos medicinais são conhecidos desde a Antiguidade Grega e da medicina ayurvédica oriental.
Infelizmente, a comercialização de plantas medicinais em Portugal, não está legislada. Tem de ter as mesmas normas que a comercialização dos medicamentos. Há medicamentos que só se vendem com receita médica e outros são tão tóxicos que não se vendem nas farmácias e são administrados por um médico ou um enfermeiro, como acontece com alguns medicamentos oncológicos.
No ano passado, apareceu-me no gabinete, uma senhora idosa que trazia uma embalagem com pedaços de uma planta seca, que tinha comprado num “herbanário”, mas que não lhe parecia ser a que ela costumava utilizar. Consegui identificar a planta e fui ao único livro de confiança que tenho sobre plantas medicinais e traduzi-lhe (o livro é estrangeiro) uma frase que referia extrema precaução com a concentração das infusões, pois podiam ser letais. Quando disse à senhora que letal significava mortal, ela ficou muito assustada. Eu sosseguei-a e disse-lhe que a melhor solução era não utilizar a planta daquela embalagem, pois não valia a pena queixar-se do vendedor, por não haver normas legais para o incriminar.
Neste país, ainda medieval na comercialização de plantas medicinais, é muito comum vender-se “gato por lebre” e qualquer pessoa pode vender. Basta ir ao Gerês, onde na rua se vende como hipericão-do-gerês (Hypericum androsaemum), uma planta que é um hipericão (Hypericum perforatum) que não é o do Gerês nem tem as mesmas propriedades, pois o do Gerês (Hypericum androsaemum) é uma planta protegida, que não se pode colher, nem vender. Além disso, ainda temos feiras de plantas medicinais, tipicamente de cariz medieval, plenas de folclore, mitificações e fabulações.
Não sou contra o uso de plantas medicinais. O que não tolero são negociantes sem escrúpulos, pseudo-especialistas em plantas medicinais, e a libertinagem na comercialização dessas plantas, algumas altamente tóxicas.
Autor: Jorge Paiva é um botânico com obra de mérito reconhecida internacionalmente. Descobriu diversas espécies de plantas novas para a ciência. Algumas receberam o seu nome. É investigador do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra. Foi galardoado com o Grande Prémio Ciência Viva Montepio 2014.
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