sábado, 27 de março de 2021

"Os meus mestres já lá estavam"


"É irrepetível e absolutamente efémero. Isso é que é fantástico, é o mistério do teatro. 
Não fica nada, só a memória do público, que entretanto também vai morrendo. 
As pessoas vão ao teatro para verem os atores nascerem e morrerem todas as noites. 
Mário Viegas, Entrevista de Cristina Peres, 1993, 193. 

Álvaro José Ferreira, com quem troquei breves "mails", mas que não conheço pessoalmente, envia-me, de vez em quando, textos do seu blogue - A nossa rádio - que serão do meu interesse. Hoje, Dia Mundial do Teatro, recebi dele uma mensagem do dramaturgo Carlos Celdrán (ver aqui). 

É um belíssimo e sincero elogio aos mestres, àqueles que vão passando o saber aos que chegam de novo ao teatro, apagando-se, progressivamente, na memória colectiva, mas preservando e ampliando o legado, que é próprio da arte. Mário Viegas disse-o mais ou menos pelas mesmas palavras, referindo-se aos actores que a mantêm viva (talvez Carlos Celdrán tivesse lido Mário Viegas).

São, no meu entender, palavras que descrevem na perfeição o que é ser professor e o mistério que acontece numa aula onde o conhecimento deve fluir. Num momento em que a palavra ensino é quase proibida, em que se quer o professor longe do alunos, em que se dissolvem os espaços e os tempos de "encontro com o outro" entre os que sabem e os que estão a aprender (e não me refiro às contingências provocadas pela Covid-19) as palavras que, de seguida reproduzo, ganham um especial sentido, ainda que não tragam esperança. Mas isso não é, evidentemente, culpa de quem o escreveu.
Antes do meu despertar no teatro, os meus mestres já lá estavam. Tinham construído as suas casas e as suas poéticas sobre os restos das suas próprias vidas. Muitos deles não são conhecidos ou sequer lembrados: trabalharam a partir do silêncio, a partir da humildade das suas salas de ensaio e das suas salas cheias de espectadores e, lentamente, após anos de trabalho e conquistas extraordinários, foram deixando o seu sítio e desapareceram. 
Quando percebi que o meu ofício e o meu destino pessoal seria seguir os seus passos, percebi também que herdava deles essa tradição apaixonada e única de viver o presente sem outra expectativa que a de alcançar a transparência de um momento irrepetível. 
Um momento de encontro com o outro no escuro de um teatro, sem mais protecção do que a verdade de um gesto, de uma palavra reveladora. O meu país teatral são esses momentos de encontro com os espectadores que cada noite chegam à nossa sala, vindos dos mais variados recantos da minha cidade, para nos acompanhar e partilhar umas horas, uns minutos. Com esses momentos únicos construo a minha vida, deixo de ser eu, de sofrer por mim mesmo e renasço e percebo o significado do ofício de fazer teatro: viver instantes de pura verdade efémera, onde sabemos que o que dizemos e fazemos, ali, sob a luz da cena, é verdade e reflecte o mais profundo e o mais pessoal de nós. 
O meu país teatral, o meu e o dos meus actores, é um país tecido por estes momentos em que deixamos para trás as máscaras, a retórica, o medo de ser quem somos, e damos as mãos no escuro. 
A tradição do teatro é horizontal. Não há quem possa afirmar que o teatro está nalgum centro do mundo, nalguma cidade ou edifício privilegiado. O teatro, como eu o recebi, estende-se por uma geografia invisível que mistura as vidas de quem o faz e o ofício teatral num mesmo gesto unificador. 
Todos os mestres de teatro morrem com os seus momentos de lucidez e de beleza irrepetíveis, todos desaparecem do mesmo modo sem deixar outra transcendência que os ampare e os torne ilustres. Os mestres de teatro sabem-no, não vale nenhum reconhecimento perante esta certeza que é a raiz do nosso trabalho: criar momentos de verdade, de ambiguidade, de força, de liberdade na maior das precariedades. 
Deles não sobreviverão senão dados ou registos dos seus trabalhos em vídeos e fotos que apenas recolherão uma pálida ideia daquilo que fizeram. Mas sempre faltará nesses registos a resposta silenciosa do público que percebe num instante que o que ali se passa não pode ser traduzido nem encontrado fora, que a verdade que ali se partilha é uma experiência de vida, por segundos mais diáfana que a própria vida. 
Quando percebi que o teatro é um país em si mesmo, um grande território onde cabe o mundo inteiro, nasceu em mim uma decisão que é também uma liberdade: não tens de afastar-te nem sair do lugar onde estás, não tens de correr nem deslocares-te. Aí onde existes está o público. 
Aí estão os companheiros de que precisas a teu lado. Ali, fora da tua casa, tens toda a realidade diária, opaca e impenetrável. Trabalhas então a partir da imobilidade aparente para construir a maior das viagens, para repetir a Odisseia, a viagem dos argonautas: és um viajante imóvel que não pára de acelerar a densidade e a rigidez do teu mundo real. A tua viagem é um instante, rumo ao momento, em direcção ao encontro irrepetível perante os teus semelhantes. A tua viagem é até eles, até ao seu coração, até à sua subjectividade. Viajas por dentro deles, das suas emoções, das suas recordações que despertas e agitas. A tua viagem é vertiginosa e ninguém pode medir ou contar isso. Também ninguém o poderá reconhecer na sua justa medida, é uma viagem através do imaginário da tua gente, uma semente que germina na mais remota das terras: a consciência cívica, ética e humana dos teus espectadores (...).
Carlos Celdrán (trad. Tiago Fernandes / Teatro do Noroeste - Centro Dramático de Viana)

3 comentários:

Anónimo disse...

O teatro para medrar precisa de público e de liberdade.
Os professores do secundário e do básico, de um modo geral, juntamente com os educadores de infância, particularmente em Portugal, não têm liberdade para ensinar. Elas e eles estão manietados por uma tal parafernália de grelhas físicas e virtuais e rígidos regulamentos burocráticos que, na prática, se demitem de ensinar, permitindo que, no papel, triunfe a escola da estupidez, apresentada nos documentos oficiais como a escola onde, ao nível dos conhecimentos, somos todos iguais!

Dulce Silva disse...



Senhor anónimo
Infelizmente, a escola da estupidez já está a triunfar para além do papel.
Por outro lado, nas escolas portuguesas, ao nível da realidade são mais "sabedores" os que denotam subserviência e capacidade de vassalagem. Esses sim, não levantam problemas. Num sistema em que grassa a ignorância e o totalitarismo, não saber pensar é uma mais-valia!

Carlos Ricardo Soares disse...

Mais do que o teatro, propriamente dito, em que o actor representa um papel previamente escrito e ensaiado e que poderá ser reproduzido e recriado e gravado, o mais desconcertante para qualquer pessoa é pensar que o seu teatro e os seus papéis, as suas falas e movimentos, gestos e pensamentos, dores e alegrias, sonhos e fantasias, amores e ódios, são tão efémeros e privados que é como se não existissem. Se fizeres um mapa da localização do inferno já vais ficar na história, por uma boa razão. Se fizeres uma viagem ao paraíso, se não caíres do avião e se fores simplesmente feliz com as tuas memórias, mesmo que o alzheimer te poupe, tu passas e as pedras ficam. Mas as tuas memórias (conhecimentos, etc.) eram a tua realidade, a realidade daquilo que tu és: nada.
A realidade humana, ainda assim, dá sentido a toda a realidade e nenhuma outra realidade dá sentido à realidade humana.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...