Meu artigo no I de ontem:
O
conceito de tolerância, um dos esteios da democracia liberal, pressupõe que
aceitemos o que o outro possa dizer – e, em geral, também fazer. Mas vivemos
num tempo de intolerância. Por todo o lado vemos quem tente impor os seus
pontos de vista, não mostrando capacidade para ouvir os alheios.
Qual
é a origem da tolerância? No mundo ocidental, ela começou por surgir no campo
religioso. Depois da Reforma que dividiu a Europa no século XVI, com cruéis guerras religiosas, a tolerância despontou a certa altura como
condição de convivência pacífica. Pelo
Édito de Nantes, de 1598, o rei francês Henrique IV concedeu aos huguenotes
(protestantes franceses, na maior parte calvinistas) uma certa tolerância após
décadas de perseguições (só na noite de São Bartolomeu, em 1572, foram
assassinadas dezenas de milhares de pessoas em Paris). Esse Édito permitiu
liberdade de culto aos protestantes num estado que permanecia oficialmente
católico. Mas foi sol de pouca dura, tendo sido revogado em 1685.
Pouco
depois, em 1689, era impresso, na cidade de Gouda (a terra do famoso queijo),
nos Países Baixos, um pequeno texto em latim, de autor anónimo, intitulado Carta sobre a Tolerância, onde se
aduziam razões em favor da complacência religiosa. O destinatário e responsável
pela publicação da carta era Phillipp
van Limborch, um teólogo holandês do grupo dos Remonstrantes, um movimento
dentro da igreja reformada holandesa que não se revia no calvinismo. O texto
vinha da pena do filósofo e médico inglês John
Locke (1632-1704), que se encontrava exilado em Amesterdão, buscando
refúgio das perseguições de que tinha sido vítima na sua terra natal, no quadro
da contenda entre os liberais (whigs)
e os conservadores (tories). Uma
tentativa de atentado em 1683 ao rei Carlos II (anglicano, consorte da nossa
Catarina de Bragança, um casamento inter-religioso que não correu bem) por
alguns protestantes abriu um período tumultuoso, no qual o monarca reprimiu
severamente os whigs. Locke, do lado
liberal, fugiu para os Países Baixos. Dois anos depois, Carlos II morria
inopinadamente, sendo sucedido pelo seu irmão, Jaime II, católico. A situação
agravou-se então para Locke, que chegou a viver na clandestinidade com o receio
de ser apanhado pelos esbirros do novo rei inglês. Foi nesse ambiente de
profunda intolerância que Locke advogou a tolerância. O príncipe holandês
Guilherme de Orange, casado com uma filha de Jaime II, haveria em 1689 de
invadir a Inglaterra ocupando o trono, sob o nome de Guilherme III, e obrigando
o sogro ao exílio. Foi a chamada “Revolução Gloriosa”, ocasião em que Locke
regressou a Londres, no séquito da nova rainha.
O
ano de 1689 ficou marcado pela publicação, em Londres, de dois outros
livros de Locke, estes de maior fôlego: Dois Tratados do Governo (sem nome do
autor, pois Jaime II poderia voltar) e Ensaio
sobre o Entendimento Humano (os dois indicam na capa a data de 1690, devido
às convenções livreiras da época). Se o primeiro expunha novas bases da ciência
política, o segundo discutia a origem e natureza do conhecimento, numa visão
que ficou conhecida por empirismo. No mesmo ano, Locke revolucionava não só a
filosofia moral como a filosofia política e a filosofia do conhecimento!
Dois
anos antes tinha havido uma revolução na Física. Com efeito, em 1687 saíram,
ainda em Londres, os Princípios
Matemáticos de Filosofia Natural, de Isaac Newton, que Locke leu em
Amesterdão. Após o seu regresso, o filósofo conheceu o físico pessoalmente,
tendo-se tornado amigos. Os dois, de origens modestas, foram fellows da Royal Society, a sociedade
científica fundada em Londres em 1660 e à qual Carlos II outorgou carta real. E
os dois alimentavam simpatias, embora silenciosas, pelo socianismo, uma crença
num Deus único fundada na razão.
Saiu
há poucos meses em português uma nova edição, de capa dura, da Carta sobre a Tolerância de Locke. A
chancela é das Edições 70, do grupo Almedina, que a integraram numa colecção
comemorativa dos 50 anos da editora que inclui também textos fundamentais de
Descartes, Kant, Stuart Mill e Nietzsche. O design é da FBA de João Bicker. De
1970 a 1974, as Edições 70 tiveram grandes problemas com a censura. Depois do
25 de Abril, iniciaram várias colecções emblemáticas de ciências sociais e
humanas, como a “Biblioteca Básica de
Filosofia” e os “Textos Filosóficos”. O texto agora reeditado veio a lume pela
primeira vez em 1987, com tradução de João da Silva Gama, revista por Artur
Morão. As Edições 70 são credoras de enorme respeito e estima pelo formidável
trabalho ao longo de meio século.
Das
155 páginas do livro só 48 são ocupadas pela Carta propriamente dita. Acresce
um prefácio de Raymond Klibansky, historiador de filosofia canadiano; uma
introdução sobre a origem da tolerância de Raymond Polin, filósofo francês; e
o curto prefácio de Wiliam
Popple, mercador inglês amigo de Locke, à primeira tradução do livro em inglês,
logo em 1689. Popple escreveu: “É da liberdade absoluta, da justa e verdadeira
liberdade, da liberdade igual e imparcial, que temos necessidade”.
Ao contrário
do filósofo e matemático inglês Thomas
Hobbes, autor do Leviatã (1651),
Locke defende a separação da Igreja e do Estado. Escreve na carta: “Julgo que é
preciso, antes de mais nada, distinguir entre os assuntos da cidade e os da
religião e definir os limites exactos entre a Igreja e o Estado.” Os crentes de
uma certa igreja poderiam acreditar no que quisessem, desde que não recorressem
à violência para converter os outros. E os juízes civis não poderiam decidir
qual era a verdadeira religião. A tolerância tinha, porém, limites: não se estendia
aos ateus (pessoas a quem faltava qualquer base moral) nem, pelo menos na mesma
extensão, aos católicos, porque eles obedeciam a um chefe estrangeiro (eram os
“papistas”). Os argumentos lockianos são racionais, sentindo-se a influência de
Descartes, autor do Discurso do Método
(1637), e de Espinosa, o judeu herético de ascendência portuguesa, autor do Tratado Teológico-Político (1670). É
curioso que tanto Descartes como Locke tenham lido os Conimbricenses (1592-1606), os livros de filosofia aristotélica dos
jesuítas de Coimbra.
Vale
a pena dar um ar do estilo de Locke na Carta
sobre a Tolerância: “Para que a coisa se torne mais clara com um exemplo,
suponhamos que há em Constantinopla duas igrejas, a dos Remonstrantes e a dos
Anti-Remonstrantes. Dir-se-á que uma das duas possui o direito de punir os
membros da igreja dissidente – porque têm diferentes dogmas e ritos –, de os despojar da sua liberdade e bens (o
que vemos fazer noutros locais), ou de
os castigar com o exílio ou com a pena capital? Entretanto, o turco mantém-se calado e trocista, enquanto
os cristãos perseguem e torturam, cruelmente os cristãos. Se uma destas igrejas
tem verdadeiramente o poder de perseguir a outra, pergunto então: qual das
duas. e com que direito? Sem dúvida alguma responder-nos-ão: a ortodoxa em
relação à que se engana ou à herética. Eis o uso de grandes e especiosas palavras que nada dizem.
Qualquer igreja é ortodoxa para si própria, errada ou herética para as outras;
cada qual julga que aquilo em que acredita é verdadeiro e condena como erro o
que dela difere. É por isso que, quando se trata da verdade dos dogmas ou da
norma do seu culto, a disputa é igual de parte a parte e nenhuma sentença pode
ser emitida por algum juiz, nem em Constantinopla nem em toda a terra. A
decisão sobre tal questão pertence unicamente ao juiz supremo de todos os
homens, e só a ele compete castigar os que erram.”
Com
uma religião hegemónica, bastante ligada ao Estado, Portugal nunca foi um país
muito tolerante. A Inquisição tomou conta de todos, enquanto existiu durante
quase três séculos, de 1536 a 1821 (assinalam-se agora, em 5 de Abril, os 200
anos que foi extinta, na sequência da Revolução Liberal). E, por isso, as
ideias de Locke sobre a tolerância, o liberalismo e o empirismo, encontraram
entre nós muitos escolhos. As doutrinas de Locke estiveram interditas tal como
as de Newton: afinal os dois eram indesejáveis protestantes num país onde houve
Contra-Reforma sem ter havido Reforma.
A
meio do século XVIII, com décadas de atraso, ocorreu a disputa, entre nós, entre
“modernos” e os “antigos”. Dois receptores nacionais de Locke foram os
“modernos” Manuel de Azevedo Fortes, autor da
Lógica Racional, Geométrica e
Analítica (1744), e Luís António Verney,
autor do Verdadeiro Método de
Estudar (1746). Verney, apesar de seguir Locke
em certos passos, incluiu-o, juntamente com Maquiavel, Espinosa e Hobbes, num
grupo de pensadores perigosos: “Estes autores têm muita coisa boa e também
muita má, onde não servem, senão para homens feitos e bem fundados nos
princípios da religião católica, que os podem ler sem perigo e deles tirar o
que é útil.” O Segundo Tratado do Governo
só surgiu em língua portuguesa numa edição de 1833, em Londres. No Iluminismo
português, o Ensaio
sobre o Entendimento Humano permaneceu proibido: O resumo censurado
só foi publicado pela Coimbra Editora em 1950, pela mão de Joaquim de Carvalho,
professor da Universidade de Coimbra. Hoje, do prelo da Fundação Gulbenkian, há
boas edições desses dois clássicos (respectivamente de 1999 e 2007), felizmente
on-line. Tal como a Carta sobre a Tolerância, vale a pena lê-los, para verificar como
hoje somos descendentes de Locke.
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