segunda-feira, 15 de março de 2021

O TRATAMENTO POR DR.

“Às vezes, é preciso saber renunciar, não ouvir nem contemporizar, sair pela porta da frente, sem a fechar, pedir silêncio, paz e sossego, sem dor, sem tristeza, e sem medo de seguir em busca da vitória” (Marrilina Baccarat de Almeida Leão).

Em precedência ao meu “post”, aqui ontem publicado com o título “Professor, para que te quero?, em 1972, publicava eu Lourenço Marques um livro deveras polémico intitulado: “Sem contemporizar”. Após um trabalho de investigação, num tempo em que não havia Internet, apenas exaustivas consultas bibliotecárias, abordei o tema escaldante do tratamento abreviado por doutor, que muita tinta de discórdia fez correr.

Assim, com o título “A legalidade do tratamento por doutor, transcrevo na íntegra, uma carta vinda a lume na revista “TEMPO” de Lourenço Marques, que me impeliu a ventilar um assunto que apresentava o seu quê de tabu. Assim, li e segui, com muita atenção essa “carta do leitor” sobre a reportagem do caso do falso médico da vila de João Belo, ocorrendo-me lembrar que outras reportagens de igual interesse poderiam surgir nessa revista abordando o problema de falsos títulos em que que “dar o tratamento de ‘doutor’ a quem, como defendia a revista, não tem qualquer licenciatura e, por vezes, até se ignora onde concluiu estudos liceais é grave, arrastando consigo consequências graves para aqueles que se enfeitam com penas de pavão e deixam dar tal tratamento a quem dele não tem direito gostaria que a vossa pena não ficasse silenciosa” (Revista “Tempo”).

E lia-se, ainda nela, “para aqueles que se enfeitam com penas de pavão e deixam dar tal tratamento a quem a ele não têm direito, gostaria que a vossa pena não ficasse silenciosa”. Por princípio, respeito toda e qualquer opinião se devidamente fundamentada. Ora, parece-me, no caso presente, que ela constitui uma forma de ver o problema unilateralmente e dentro de um espírito discutivelmente lícito.

Para o efeito, reporto-me a uma outra opinião de peso, por parte de um professor da Universidade de Coimbra, figura grada no mundo das Letras, o Professor Sá Nogueira que afirma num livro por si publicado: 
“No cursos superiores há coisas curiosas: os formados pelas faculdades de Letras, Ciências e de Direito são licenciados; os médicos, e os veterinários são doutores. Em presença disto que fazem os licenciados? Para não desmerecerem o espírito nacional, fingem que não conhecem a lei e, como quem não quer a coisa, deixam-se chamar doutores, quando não se intitulam a si próprios”. 
Há duas ou três décadas, só eram tratadas por doutoras as licenciadas em Medicina e Direito. Gradualmente, foi-se estendendo esta forma de tratamento às possuidoras de outros cursos superiores. Felizmente para elas que ao tempo não existia o “Tempo”. Ao que julgo entender o Doutor Sá Nogueira referia-se a uma legislação que se reporta ao reinado de Dona Maria na qual era outorgado o tratamento por doutor aos médicos. Fácil será deduzir que os médicos veterinários tenham tornado extensiva a si esta medida. Falecem-me, no entanto, conhecimentos, para fundamentar este meu ponto de vista. “Ipso facto”, entendo haver o maior interesse em remeter este assunto para os juristas de Lourenço Marques, a fim de serem eliminadas duvidas, tornando as respectivas conclusões públicas.

Chegado a este ponto julgo defensável a atribuição deste tratamento ao uso e costume. A correspondência de licenciado a doutor sofre excepção na medida em que os licenciados em Engenharia são tratados por engenheiros. Acresce em defesa desta tese, o facto de aos médicos diplomados pela Escola Médica de Goa e da Madeira, esta de efémera existência (escolas superiores não universitárias) ser atribuído igual tratamento ao de indivíduos por escolas superiores universitárias. Para o respectivo estudo torna-se imperioso fazer uma retrospetiva do ensino superior nas últimas décadas. 

Assim, nos últimos tempos da Monarquia, em Portugal, havia uma só universidade em Coimbra e diversas escolas superiores espalhadas por Lisboa e Porto. Com o advento da República são criadas, em 1911, a Universidade de Lisboa e a Universidade do Porto, agregando escolas superiores que ministravam o ensino de várias áreas do sabe literário e científico. Em 1931, é criada a Universidade Técnica de Lisboa com os cursos de Ciências Económicas e Financeiras, Agronomia, Engenharia (IST)e Veterinária.

Em 1961 agrega-se-lhe o Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina por influência de um seu professor, Ministro do Ultramar, Adriano Moreira. Segundo o decreto n.º 36 507 / 47, de 17 de Setembro, existem em Portugal os seguintes cursos superiores universitários: Filologia Clássica, Filologia Românica ,Filologia Germânica, Ciências Geográficas, Ciência Histórico-Filosóficas, posteriormente desdobradas em Ciências Históricas e Ciências Filosóficas, Direito, Medicina, Ciências Matemáticas, Físico-Químicas, Geofísicas, Geológicas, Biológicas, Curso de Engenheiro Geógrafo das Faculdades de Ciências, Faculdade de Engenharia, Instituto Superior Técnico, Agronomia, Veterinária, Faculdade de Farmácia, Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras e ISEU (integrados na Universidade Técnica em 1961), com a designação de Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. 

Cursos superiores não integrados na universidade: INEF, Arquitectura, Academia Militar e Escola Naval. Esta polémica, qual caixa de Pandora, corria o risco de se eternizar com respostas de cá para lá e de lá para cá só tendo terminado tempos depois com a publicação do meu livro “Sem Contemporizar”, de um centena de páginas,1.000 exemplares, esgotado numa semana. Entro aqui, um tanto pela rama, para não me desviar da finalidade deste artigo, em considerações sobre a diferença entre universidade e escola superior, reportando-me ao que aqui escrevi sobre este assunto: 
”Temos, assim, que o ensino superior estatal português se processa dentro da universidade – que mais não é do que uma escola superior em que são ministrado diversos cursos superiores – e da escola superior não universitária habilitando exclusivamente um de terminado curso superior”. 
Há dias, vejo esta minha tese reforçada pelo professor universitário Seda Nunes que afirma a propósito:
“As universidades são formadas por mero somatório de faculdades, entre as quais não se encontra instituída nem se verifica qualquer colaboração relevante para fins de ensino ou de pesquisa. Em Lisboa e no Porto a dispersão espacial dos edifícios universitários consagra e consolida materialmente esta separação”. 
E acrescentava eu: 
“O que vem demonstrar o seguinte: “O que consigna o uso ou costume do tratamento por dr. não é, através da tradição escolar portuguesa a obtenção de uma carta de curso universitária mas, “lato sensu”, a de um curso superior universitário ou não”.
Quase me atrevo a dizer “tout va bien quand finit bien”, com desfecho honroso a nosso favor como aconteceu com o emudecimento da revista "Tempo", após a publicação do meu livro “Sem contemporizar” (1972).

4 comentários:

Anónimo disse...

A Revolução dos Cravos, despoletada em 25 de abril de 1974, um dia há de explodir em doutoramentos para todos os operários fabris portugueses.
As Novas Oportunidades, dos doutores Sócrates de Sousa e Maria de Lurdes Rodrigues, aumentaram muito as habilitações literárias do operariado, mas, se quisermos realmente vencer a batalha da produção, não basta estender o grau de "doutor" aos enfermeiros, educadores de infância, professores primários, assistentes sociais, jornalistas e contabilistas; enquanto pastores, trolhas, picheleiros, jornaleiros, jardineiros, carpinteiros, empregados de mesa, lavadores, assistentes operacionais, artesãos, barbeiros, chapeleiros, gravadores de carimbos, instaladores de antenas de televisão, motoristas de táxi, padeiros, poceiros, relojoeiros, tecelãos, vidraceiros, marnotos... e tantos outros profissionais igualmente dignos e necessários, não tiverem todos, por conclusão de provas de doutoramento, ou por "equivalência", à Sócrates e Relvas, o grau de doutor, "Abril" continuará por cumprir!

Rui Baptista disse...

Apreciei a sua jocosidade: Relvas e Sócrates doutores. Upa, upa já que foram ministros e deputados de uma República reinadia ainda que sem reis mas muitos pajens do PS e PSD, os chamados "boys"!

Luís Fernandes disse...

Por aqui, ouço muita gentinha a gabar-se, alto ebom som, que na sua profissão também é doutora!

(Um, justamente indignado com uma situação iníqua num Hospital, quando uma médica o intimou a tratá-la por «doutora», retorquiu sonoramente que ele, na sua profissão (empresário e mecânico-automóvel), também era doutor!).

Luís Fernandes

Rui Baptista disse...

Obrigado pelo seu comentário.

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A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...