domingo, 7 de março de 2021

“Uma Mente Brilhante”


Meu comentário de Carlos Fiolhais ao filme de Ron Howard que proferi recentemente no quadro de um ciclo sobre "Saúde e Doença Mental" organizado pela asociação de Coimbra "Recriar Caminhos":

O filme “Uma Mente Brilhante” (de 2001), do realizador norte-americano Ron Howard, com o actor Russell Crowe no principal papel e  a actriz Jennifer Connelly num papel relevante, fez, com toda a pertinência, parte do 1.º Ciclo de Cinema e Saúde Mental organizado em Coimbra pela Associação ReCriar Caminhos. É, de facto, um dos melhores filmes sobre saúde mental. A sua qualidade foi reconhecida pela atribuição de quatro Óscares da Academia de Hollywood, para além de alguns Globos de Ouro: Ganhou os Óscares para o melhor filme, a melhor realização, o melhor argumento adaptado e a melhor actriz secundária. Quase duas décadas passadas, o filme não perdeu o seu interesse.  

A película parte de factos, embora não lhes seja inteiramente fiel. Baseia-se num livro que tem o mesmo título do filme e que ostenta o subtítulo de “Biografia de John Nash”. John Nash (1928 - 2015) é o brilhante matemático norte-americano que ganhou o prémio Nobel de Economia de 1994, juntamente com dois seus colegas, o norte-americano de origem húngara John Harsanyi e o alemão, Reinhard Selten. Trabalharam os três na “teoria dos jogos”, um ramo da matemática que lida com a resolução de certos dilemas: tal como no jogo de xadrez as jogadas de um dependem das jogadas do outro, quando vários jogadores num jogo em que todos participam podem tomar decisões alternativas, essas suas decisões dependem das decisões prévias dos outros, tendo cada um deles tem de pensar na melhor estratégia a adoptar.  Para além de outros trabalhos, Nash é autor de um quadro teórico famoso em teoria dos jogos que tem o nome dele, o “equilíbrio de Nash”. Nessa situação a melhor estratégia não pode ser modificada, nem para um nem para outro jogador, por haver um balanço. A existência desse quadro pode ser provado, rigorosamente, como aliás ele fez na sua tese de doutoramento, com apenas 28 páginas, que defendeu na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, uma das mais famosas do mundo.  O físico Albert Einstein foi lá professor nos últimos anos da sua vida. Nash foi também professor em Princeton, mas muitos anos depois do seu doutoramento.  A tese doutoral de Einstein, realizada na Escola Politécnica de Zurique, na Suíça, também tinha muito poucas páginas, mostrando que a revelação do génio não exige longos escritos … A tese de Nash tem, como mostrou mais tarde a atribuição do Nobel da Economia, aplicações nos mundos da economia e da política.

Pode dizer-se que John Nash é um génio, aliás, um dos maiores génios da ciência do século XX. Além do Nobel em 1994, ele ganhou, em 2015, um outro prémio importantíssimo,  na área da Matemática -  o prémio Abel. Niels Abel é o nome de um célebre matemático norueguês do início do século XIX (morreu com 27 anos), sendo o prémio com o seu nome é atribuído anualmente, desde 2003, pelo rei da Noruega a matemáticos de grande mérito. Não existe um Nobel para a matemática, mas há prémios, como a medalha Fields, restrita a menores de 40 anos,  ou o prémio Abel, sem limite de idade, que distinguem as melhores mentes matemáticas. Nash é a única pessoa que acumulou os prémios Nobel e o Abel. A história da atribuição do prémio Abel de Nash teve um final trágico pois, quando Nash, já com 87 anos, regressava acompanhado pela sua esposa da Noruega aos Estados Unidos, tomou um táxi para ir para casa, no aeroporto de Newark. O veículo despistou-se, bateu nos rails, e os dois, sem cinto de segurança apertado, foram projectados para fora do carro, tendo morrido simultânea e instantaneamente.

A vida de Nash contada no filme é extremamente curiosa por ser a história de um doente mental que acaba por vencer a doença. Ele sofreu ao longo de décadas de esquizofrenia paranoides. Tendo realizado a parte mais substancial do seu trabalho antes do aparecimento da doença, acabou por recuperar dela, ficando apto a viajar para receber tanto o Nobel como o Abel. Reapareceu como um homem novo, surgido dessa escuridão que tinha sio a doença mental.

O livro “Mente Brilhante”, publicado nos Estados Unidos em 1998 pela Simon & Schuster e em Portugal em 2002  pela Relógio d’Água,  é um dos dois únicos livros da autora  Sylvia Nasar, uma jornalista norte-americana nascida na Alemanha de mãe alemã e pai uzbeque (o outro é “Os Criadores da Economia Moderna”. Relógio d’Água, 2013). Ela estudou a biografia de Nash em grande profundidade, tendo dessa investigação resultado um volume com quase 600 páginas, muito bem documentado. O livro, que demorou anos a ser preparado, está extraordinariamente bem escrito, circunstância que lhe valeu o Prémio do National Book Critics Circle para a melhor biografia, no ano em que saiu. Não havendo razões para duvidar da veracidade do conteúdo da obra, existe, no entanto, a questão de não se tratar de uma biografia autorizada. Talvez esse não seja um problema, mas antes uma vantagem, uma vez que ficou assegurada uma maior objectividade. De facto, o autor não colaborou com a autora e até se distanciou da descrição de várias situações que surgem descritas no livro, como, por exemplo, os episódios de homossexualidade na sua juventude. O filme, que partiu do livro homónimo, não foi, por isso, uma obra em que Nash se tenha sentido bem retratado. Existe um documentário intitulado “Uma Loucura Brilhante” da PBS, a televisão pública norte-americana,  bastante mais fiel ao livro e, portanto, à realidade, do que o filme, que tomou algumas liberdades ficcionais. O realizador Ron Howard afirmou que quis contar uma história de acordo com os padrões de uma narrativa cinematográfica, na qual há uma linha principal assente nos factos, mas onde há também muitos desvios dessa linha, com personagens e situações largamente inventadas. Essa escolha não deixou de dar origem a alguma polémica. Apesar de todos esses desvios, a autora do livro reviu-se no essencial no filme que, com as necessárias adaptações, resultou do seu livro.

John Forbes Nash II foi baptizado com o mesmo nome do seu pai (daí o II), que era engenheiro electrotécnico. Fez estudos superiores no Carnegie Mellon Institute of Technology, em Pittsburgh, na Pensilvânia, que é hoje a Universidade de Carnegie-Mellon, famosa em área de engenharia. Começou por estudar engenharia química, depois química e depois fixou-se na matemática, que abraçou para a vida toda. Revelou-se imediatamente - não há que fugir à palavra – um génio, alguém que consegue ver mais que os outros. Foi depois, após ganhar uma bolsa de doutoramento, estudar para a Universidade de Princeton, onde fez a sua tese muito rapidamente (em 1950, com 22 anos), fazendo jus ao título do livro e do filme. Terminado o doutoramento, foi contratado por outra grande escola da costa leste, o Massachusetts Institute of Technology (MIT),  em Boston, onde haveria de ser nomeado professor de Matemática. Foi aí que ele, quando tinha 31 anos, teve os primeiros sintomas de esquizofrenia. De facto, esta doença costuma aparecer entre os 20 e os 30 anos. A esquizofrenia pode ser descrita como uma separação do mundo: a pessoa doente sofre de alucinações e tem pensamentos que têm pouco ou nada a ver com a realidade. A paranoia, por seu  lado, é o medo não justificado, irracional, por exemplo medo da perseguição: um paranoico pensa que os outros estão contra ele e que o perseguem para lhe fazer algum mal. Este tipo de doença está hoje catalogado no largo espectro de doenças mentais, sendo Nash o caso mais famoso. Se formos à Wikipédia e pesquisarmos “esquizofrenia”, aparece logo o rosto de Nash.

Para saber mais sobre essa doença mental, recomendo um livro muito interessante de José Luís Pio de Abreu, médico psiquiatra de Coimbra, “Como tornar-se doente mental” (Dom Quixote, 2006), um título irónico que convoca imediatamente o leitor. No capítulo 2, “Como tornar-se paranoico”, o autor explica o que é a “psicose paranoide”. E, depois, no capítulo 6, “Como tornar-se esquizofrénico”, explica o que é a esquizofrenia. A esquizofrenia é uma doença rara, mas não muito rara: 0,3 a 0,7 por cento das pessoas em todo o mundo são afectadas por esquizofrenia, nalguma altura da sua vida. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estimou que, em 2019, havia cerca de 20 milhões de pessoas a padecer dessa doença.

A origem da esquizofrenia é ainda um tema de investigação: não se sabe, embora se saiba que há uma componente genética e que há uma componente epigenética, quer dizer, há factores internos que influenciam o aparecimento da doença, mas a sua manifestação e desenvolvimento são propiciados pela interacção com o ambiente. A propósito dos factores genéticos, convém dizer que Nash teve dois filhos, um dos quais sofreu como ele de esquizofrenia. O primeiro, saudável, resultou de uma relação que teve com uma enfermeira, tendo ele terminado o namoro quando soube que ela estava grávida (mais tarde veio a perfilhar essa criança); o segundo, esquizofrénico, nasceu logo no início do seu casamento com uma estudante de Física do MIT natural de El Salvador, Alicia de Lardé, que haveria de ser, de certo modo, a mulher que o “salvou”.

Nash começou a ter sintomas de esquizofrenia quando a mulher, estava grávida:  era nítido a certa altura que ele ficava desligado da realidade. Por exemplo, numa conferência científica, ninguém consegui perceber o que ele dizia. Pensava que as pessoas com gravatas vermelhas eram agentes comunistas, que o perseguiam e que iam tomar conta do governo. Ouvia vozes, uma característica da doença mental em causa.  O processo foi bastante doloroso para Alicia, muito bem representada no filme por Jennifer Connelly, porque o seu marido recusava internamentos e medicação. Mas foi internado num hospital psiquiátrico e teve de tomar medicação. Não demorou a dar-se uma situação de ruptura: a relação dos dois como casal não podia continuar. O casamento não durou mais do que  seis anos: quando o divórcio ocorreu em 1953, ele continuava com crises, ficando internado no hospital durante alguns períodos. Mas a história é muito curiosa, porque, eles, mesmo não estando casados, continuaram a morar na mesma casa: o matemático era tratado pela ex-mulher. Ele foi melhorando, decerto em resultado do tratamento e do acompanhamento doméstico. No filme ele é mostrado a tomar novos fármacos voluntariamente, já que o realizador pretendia dar um exemplo para pessoas em casos semelhantes, passando a mensagem de que os medicamentos podem ser úteis em situações de doença mental. Na realidade, Nash resistiu o mais que pôde: faz parte da alteração mental a não assunção da doença.

Com a amenização da esquizofrenia, John e Alicia voltaram a casar em 2001, tendo  ficado juntos e felizes ao longo de mais 14 anos, até que a morte os separou no acidente de automóvel. A sua mulher, como se vê no filme, desempenhou um papel relevante na recuperação da vida normal. É isto mesmo que acontece em doentes deste género: o acompanhamento social, feito por pessoas de referência, é muito útil.  Para além do tratamento médico, é preciso um acompanhamento constante.  As pessoas à volta do doente devem estar muito atentas e interventivas, nunca perdendo a esperança, por mais difícil que seja a situação. Como o doente tem tendência para o isolamento social e apatia, são precisos os sentimentos contrários: é preciso proximidade, é precisa humanidade. O filme “Uma Mente Brilhante” mostra um exemplo de que é possível recuperar de uma doença mental grave. Não é fácil vencer a doença, mas, quando Nash morreu depois de ter ido receber o prémio Abel, podia-se dizer que estava praticamente recuperado.

Há uma série de cenas do filme que nunca aconteceram. Mas os espectadores vão para uma sala de cinema para se deixarem seduzir por um enredo… No filme Nash trabalha para o Pentágono, o que não corresponde à verdade, pois ele nunca trabalhou directamente para essa instituição de defesa, mas sim para uma empresa norte-americana, a RAND Corporation, que foi contratada para ajudar em questões de segurança nacional. O matemático perdeu as suas credenciais de segurança devido a episódios de homossexualidade em jovem que chegaram ao conhecimento público (estávamos muito longe da aceitação contemporânea da homossexualidade), mas esses episódios não são retratados no filme. A primeira criança de Nash não é referida no filme. O divórcio de Alicia também não. A cerimónia das canetas na Universidade de Princeton que aparece no ecrã é totalmente inventada. E, na recepção do Nobel da Economia, Nash não proferiu um discurso, tal como o filme mostra.

Há uma enorme lista de pessoas conhecidas, passadas e actuais, que sofreram de esquizofrenia. Adèle Hugo, filha do escritor francês Victor Hugo (existe aliás um filme realizado em 1975 por François Truffaut que conta a sua história, intitulado “A História de Adèle H.”). Camille Claudel, famosa escultora francesa do século XIX (irmã do poeta e diplomata Paul Claudel), e Antonin Artaud, o poeta, dramaturgo e actor francês do chamado “teatro da crueldade”, que viveu na primeira metade do século XX, também foram diagnosticados com a doença. O bailarino e coreógrafo russo Vaslav Nijinski, contemporâneo de Artaud, também foi esquizofrénico. Albert Einstein teve um filho, Eduard Einstein, que sofreu da mesma doença. O génio da Física teve três filhos da primeira mulher, Mileva Maric: a primeira, Lieserl, surgiu antes do casamento e foi provavelmente dada para adopção; o segundo, absolutamente normal do ponto de vista de saúde mental, Hans Albert, foi professor de Engenharia Civil na Universidade da Califórnia, em Berkeley; e o terceiro, Eduard, foi internado num asilo psiquiátrico em Zurique, tendo morrido aos 53 anos. Nos dias de hoje, o psicólogo Inglês Rufus May é conhecido por padecer de esquizofrenia e por propor duvidosos tratamentos alternativos. Dois músicos rock - Syd Barrett, um dos fundadores dos Pink Floyd, e Brian Wilson, um dos fundadores dos Beach Boys, sofrem igualmente da doença.

A mensagem final é que é possível vencer a doença mental, sendo mais fácil nuns casos de que noutros. A doença aparece, por vezes, em pessoas criativas como foi o caso de John Nash, um génio matemático que em boa parte viveu alienado da realidade. A nossa mente é um órgão muito poderoso, mas também muito misterioso. O último mistério consiste em saber como funciona a nossa parte mais íntima, a nossa consciência, o nosso “eu”. Por vezes a sua coerência quebra-se, embora essa quebra possa não ser total nem irreversível. O nosso cérebro, quando está em sintonia com o mundo e com os outros, permite-nos experimentar emoções, ter pensamentos e criar obras maravilhosas.  Mas, noutras vezes, impede-nos dessa experiência: Depois de curado, John Nash chamou à situação que viveu uma “greve” da normalidade. As fronteiras entre “anormal” e “normal” não são de modo nenhum nítidas. Talvez ao visionar este filme possamos perceber que as situações de anormalidade de alguns de nós nos solicitam proximidade, humanidade, comunidade. Essa atitude de aproximação à pessoa doente não é, em geral, fácil, porque nos exige não só uma grande solidariedade mas também uma grande criatividade, pois cada caso é um caso diferente.  Na área da saúde mental, há que permanentemente “recriar caminhos”.

2 comentários:

Esquizofrenias impostas disse...

Não me parece que Nash fosse esquizofrénico. O filme está cheio de arquétipos... Não percebeu como funcionam as maçonarias. Acredito plenamente que estivesse a ser perseguido por uma ordem (na realidade sentia que tinha semelhanças com um Papa... que era perseguido pelo FBI... que via muitas gravatas vermelhas). No filme, o companheiro de quarto é o mesmo ator que fez de Silas de olhos vermelhos (Christopher Eccleston) no Código Da Vinci (Opus Dei). E muito mais diria... sobre o homem do lixo... e o nome Alicia. Uma mente ávida de padrões e de associações vê o que poucos veem. A forma como morreu... de acidente... No filme, o próprio explica uma singularidade que parece traços contínuos no asfalto... Ironias do destino. Às vezes são mesmo coincidências que, apesar de acontecerem muito nestes enquadramentos, na realidade são muito raras... O filme está excelente visto "por baixo" e o facto de ter ganho 4 Óscares em vez de 8... Coitado! Faço ideia o gozo, o isolamento social e toda a inveja de que foi alvo.

Err ata disse...

Não é o Christopher Eccleston mas o Paul Bettany. Estes nomes...

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