Texto que publiquei recentemente no JL:
Um dos resultados desta pandemia
foi a proliferação de livros sobre ela. De início, adquiria tudo o que saía
sobre o assunto. Mas, depois, a edição sobre o tema expandiu-se tanto que se
tornou impossível acompanhar tudo. Passei a escolher apenas os livros de
ciência (os vírus, a epidemiologia, o sistema imunitário, as vacinas, etc.), a
história (a peste negra, a varíola, a gripe espanhola, etc.) e a filosofia (a crise,
a nova normalidade, o futuro, etc.). Eu próprio forneci uma contribuição ao
primeiro grupo, ao escrever, com David Marçal, o livro Apanhados pelo Vírus.
Factos e Mitos sobre a COVID-19 (Gradiva, 2020), onde incluímos uma
bibliografia em português. Tenho
dedicado, ultimamente, uma atenção especial às obras mais filosóficas. Uma das
primeiras foi A Pandemia que Abalou o Mundo, do esloveno Slavoj Zizek (Relógio
d’Água), saído logo em Maio, mas outras se seguiram como Vírus Soberano, da italiana Donatella Di Cesare (Edições
70), Este Vírus que nos Enlouquece, do francês Bernard-Henri Lévy
(Guerra e Paz), e O Tempo Indomado (Relógio d’Água), do português José
Gil, no qual metade são “escritos da pandemia”.
Venho agora falar de Normalidade,
um novo livro sobre a pandemia de um conhecido autor português, o filósofo
Carlos Leone (n. 1973), saído do prelo de uma editora menos conhecida, a Theya,
ligada ao Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes. As letras
do título estão dispostas a imitar o mapa de Portugal (“Nor” no Norte”), embora
a obra pouco fale do nosso país. É um livro de ideias, como era de esperar de
um especialista em história das ideias. Carlos Leone é autor, na Imprensa
Nacional, de Portugal Extemporâneo (2005), a sua magnum opus, e,
entre vários outros, de uma série de livros da colecção “O Essencial” da Imprensa
Nacional: obras sobre António Sérgio, Sílvio Lima, Adolfo Casais Monteiro, etc.
O mais vendido, porém, deve ter sido Crise e Crises em Portugal (Fundação
Francisco Manuel dos Santos, 2016).
O prefácio de Normalidade é
de Nuno Garoupa, que foi presidente da referida Fundação e que hoje é professor na
Georges Mason University, nos EUA. Depois, entre a nota prévia e as notas finais,
alinham-se seis capítulos que o subtítulo designa por “seis apontamentos sobre
uma integridade maltratada”: “A Normalidade”. “A Pandemia”, a “Ciência”, a “Economia”,
a “Política”, e “Crise ou Interregno?”
O que era a “normalidade”? O autor esclarece: “No mundo desenvolvido, uma normalidade, para o mundo restante, outra, mas em comum a normalidade era o conjunto das expectativas e das experiências que não suscitariam grandes movimentos em favor da sua mudança.” Leone, mostra, com indicadores económicos, que a antiga normalidade não era nada animadora: em 2018, as perspectivas económicas para 2020 e 2021 eram de baixa na União Europeia e também na China, embora a partir de valores superiores (queda no crescimento de 1,9% para 1,4% de 2018 para 2021 na União Europeia, que contrasta com queda de 8,7% para 5,8% na China). O normal não era grande coisa! Mas a COVID-19 representou uma enorme disrupção. Segundo Leone, e eu concordo, a sua ocorrência “não foi algo imprevisível, pelo contrário, foi previsto com muito avanço” (Bill Gates é sempre citado, mas houve outras vozes). E, no entanto, não estávamos preparados… Interessou-me sobretudo o capítulo sobre ciência.
Sendo a minha formação numa ciência dita “dura”, não me vi a discordar de Leone nesse capítulo (claro que eu não citaria Max Weber nem Paul Feyerabend, que, especialmente o segundo, estão sobrevalorizados). O ponto maior dele – e eu concordo – é que confundimos ciência com tecnologia: “é científico tudo o que tiver parafernália técnica/tecnológica, e já não o pensamento enquanto tal é científico ou não conforme o método que emprega”. Tem razão o autor: enfatizamos os produtos da ciência em vez do seu método. Queremos resultados rápidos, como se a ciência fosse uma série de passes de ilusionismo, esquecendo que ela demora a estabelecer-se.
O caso das vacinas, aparecidas já depois da publicação do livro, é elucidativo: as vacinas, que estão a ser administradas em todo o mundo (mais nuns sítios do que noutros, é certo), são o resultado prático e visível de décadas de trabalho em biologia molecular, uma ciência fundamental. Estamos equivocados quando confundimos ciência com tecnologia, ou quando, distinguindo-as, pensamos que a tecnologia é a “expressão máxima” da ciência, uma ideia muito vinculada nos média. Temos, assim, uma “relação anticientífica com a ciência”.
Como diz Leone: “A prática da ciência
contrasta flagrantemente com a nossa relação normal com ela e isso nota-se mais
numa crise. Sobra, assim, a simples adesão emocional, supersticiosa até, ‘à’
Ciência como totem, que a todos nos vai salvar.” Ora não é apenas a ciência
que nos salva, mas, como Marçal e eu dizemos no nosso livro, há que considerar
a economia e a política, que o autor trata a seguir. Sobre a economia, escreve
Leone: “O problema económico da COVID-19 foi, em rigor, comprovar que não só não
há alternativa ao modelo económico vigente (capitalismo), coisa que nada tem de
novo nem preocupa demasiado as pessoas, como não há alternativa a esta gestão zombie,
o que é bem mais complicado – pois os próprios gestores admitem que a
dependência da dívida é inviável a prazo”. Do ponto de vista político, Leone
diz que a normalidade consiste na “inércia”. E diz o que é a política hoje: “Neste
mundo de mediatização generalizada, privilegiou-se a comunicação pela imagem,
em detrimento do discurso.” O que nos falta? Falta-nos a “integridade na coisa
pública”. Cícero escreveu “Salus rei publicae suprema lex”: a integridade
da coisa pública é a sua lei suprema.
Nova normalidade? Não será nunca
o regresso ao tempo pretérito, pois ninguém se banha duas vezes nas mesmas
águas. Há coisas que vão mudar, ou melhor continuar a mudar, não sabemos bem para
onde, pois a incerteza é agora maior. Mas há coisas que vão permanecer. Escreve
Leone no final: “Nem a globalização acabou com a nações, nem a pandemia acabou
com a globalização”. E adverte: “Insistir na crise da COVID-19 serve para
esconder problemas anteriores.” A normalidade, agora dita “nova”, segue dentro
de momentos…
1 comentário:
Tenho a percepção de que a filosofia vai ser cada vez mais importante, não tanto como teoria geral de conhecimento dos mundos, mas sobretudo como teoria geral de como esses mundos devem ser, considerando que todo o conhecimento, por si mesmo, é humano e não tem outra génese, nem outro sentido e que o pensamento humano, enquanto racionalidade, é sempre um dever ser no espectro das possibilidades, ou, de outra forma, as escolhas do ser humano dentro do leque das possibilidades, não são aleatórias, há algum grau de tensão entre a vontade e a liberdade, que é resolvido por algum tipo de racionalidade. E se isto é o que acontece, quer haja filosofia ou não, quer haja ciência ou não, o facto de o sabermos é de uma importância e relevância nem sempre fácil de compreender. Na realidade, as coisas acontecem, quer o saibamos quer não. Aparentemente, tanto nos faria saber como não saber. Ou, saber e nada saber iria dar ao mesmo.
Mas a filosofia vai buscar a sua importância e relevância à necessidade de explicar isso a si mesma e, não menos importante, explicar a importância e a relevância de todo o conhecimento, em especial o científico, não do ponto de vista económico, técnico, utilitário, mas do ponto de vista epistemológico. E isto não é pequena coisa. Para tentarmos perceber este problema, pensemos que os próprios investigadores científicos, os cientistas, raramente revelam ter a noção da diferença que fazem no universo do conhecimento. Sabem que o seu trabalho é da maior importância para todos e todos, mais ou menos, percebemos que a ciência resolve uma quantidade de problemas que só ela sabe. Poderíamos ter lido todas as bíblias e todos os tratados de filosofia e saber toda a matemática e conhecer todos os livros de auto-ajuda e técnicas de socorro a náufragos e ter o mais alto QI e ter bebido muita água, mas não acredito que conseguíssemos descobrir, por meras inferências, dedutivas ou indutivas, nem sequer por adivinhação, a composição química da água. Ainda que já conhecêssemos o hidrogénio e o oxigénio, esse conhecimento não no-lo permitiria descobrir, por si só, sem uma experiência que o revelasse. E se os nossos conhecimentos, numa mínima parte são deduções ou induções de crenças no que nos dizem e, na sua maioria, meras crenças, por confiarmos naquilo que nos dizem, vivemos numa realidade virtual a tal ponto baseada em imagens e discursos, que nos escapa trivialmente a natureza e o âmbito do conhecimento científico, como se fosse uma extensão dos conhecimentos em geral. Escapa-nos, trivialmente, que não há conhecimento científico “a priori”, que não podemos conhecer Paris sem ir lá, que não podemos conhecer uma árvore através de um manual, por mais completo que seja, que não podemos comer um bife através de um vídeo, que não podemos saber hoje que o sol vai nascer amanhã. O conhecimento científico não é frustrante. Frustrante é, muitas vezes, não saber o que fazer com ele, ou fazer o que não devia ter sido feito. A filosofia não é o tribunal de contas do que devia ter sido feito, de acordo com as normas, nem do que devem ser as normas, mas é o tribunal do que deve-ser declarado, considerando que deve ser uma declaração de sabedoria, por ser humana acerca do homem em torno do qual tudo deve gravitar, porque o contrário não faz sentido.
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