quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

A CIÊNCIA EM 2014

Minha crónica no último "As Artes entre as Letras", jornal cultural do Porto (na imagem a missão Rosetta-Philae a um cometa):


O ano de 2014 foi para a ciência em Portugal um ano para esquecer, foi o ano de profunda crise e contestação.  A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), com o beneplácito do ministro da Educação Nuno Crato, que há muito deixou de ser ministro da Ciência, decidiu logo no início do ano reduzir de mais de 30% o número de bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento que costumava atribuir, contribuindo assim para engrossar a fuga de cérebros. Depois, num exercício a que chamou de “avaliação” (usurpando o nome), decidiu eliminar cerca de 50% das unidades de investigação do país, impondo uma quota, que de início foi secreta, à European Science Foundation, instituição a quem encomendou o trabalho de “desbaste”. Tanto num caso como noutro a indignação foi geral, com os candidatos a bolseiros em manifestação na rua e com os investigadores a multiplicarem-se em abaixo assinados e artigos críticos. O próprio Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas – CRUP  tomou uma posição de violenta crítica ao governo. Para os responsáveis maiores da universidade, reflectindo aliás a opinião da esmagadora maioria dos académicos, a dita avaliação foi um “falhanço pleno”. Os reitores, pelo menos até agora, não foram inteiramente coerentes, pois senão teriam recusado a extracção de quaisquer consequências práticas de uma avaliação sem o mínimo de qualidade. O ministro não atendeu aos protestos dos reitores, nem sequer lhes respondendo.

No final do ano surgiu finalmente a lista dos resultados, de onde ressalta a arbitrariedade do exercício avaliativo: praticamente dois terços do financiamento foram atribuídos a um quinto das unidades de investigação, com a agravante de não estar demonstrado que aqueles centros eram as mais merecedoras uma vez  que muitos avaliadores não eram especialistas nas áreas  que estavam a apreciar.  Foram atribuídos financiamentos ditos “estratégicos” de uma forma que parece completamente arbitrária, pois as justificações não foram claramente enunciadas pela FCT. O governo, para justificar o injustificável, tem apregoado a ideia vaga de “excelência”, mas o certo é que o resultado previsível será um afundamento geral do sistema, com muitos centros condenados à extinção e outros, muito poucos, sem saberem o que hão-de fazer ao dinheiro. Por via do obscuro financiamento estratégico, alguns centros acabaram por obter melhor financiamento do que outros com melhor classificação. Mais de 130  reclamações estão pendentes na primeira fase (a fase eliminatória para metade) e muitas outras são previsíveis na segunda fase (a fase de selecção dos poucos  “supermilionários”). As instâncias juridicamente competentes terão muito trabalho pela frente e está instaurada a total desconfiança nos responsáveis pelo sistema científico nacional,  uma confiança que só poderá ser restaurada com outros intervenientes.  É muito fácil destruir, muito mais difícil será reconstruir. O sistema científico português, que é relativamente jovem, estava num caminho de convergência para a Europa e agora, em resultado da política desastrada do actual governo, está em vias de se afastar, voltando aos lugares traseiros onde já esteve.

Na cena internacional, destaco dois acontecimentos científico-tecnológicos, um muito longe e o outro mais perto de nós. O primeiro foi a aproximação da sonda Rosetta da agência espacial europeia a um cometa, com o pouso na superfície do cometa de um robô, o Philae. É um prodígio da ciência e da técnica, que evidencia bem o progresso que o conhecimento permite. Ainda há três séculos não se sabia o que eram cometas (para o Padre António Vieira eram mensageiros do céu, sinais de Deus) e hoje não só sabemos o que são como os conseguimos visitar mecanicamente, realizar análises geológicas e fotografar de perto a sua superfície rugosa. O facto de estar neste momento interrompido o contacto com a Philae não invalida a enorme relevância desta proeza astronómica. Por outro lado, 2014 foi o ano em que uma empresa norte-americana, a Illumina, começou a comercializar uma máquina de sequenciação completa do genoma humano que efectua cada análise por um preço inferior a mil dólares. Esta era uma meta há muito tempo aspirada neste domínio e o seu atingimento permitirá o crescimento maciço dos dados sobre o genoma e, portanto, um melhor conhecimento sobre a saúde a  doença, com a possibilidade de uma indicação atempada de riscos e de uma melhor escolha de terapêuticas. Os exames do genoma tornar-se-ão tão correntes como são hoje as análises clínicas e os raios X. A medicina personalizada irá nos próximos anos tornar-se uma realidade, com os médicos a interrogarem bases de dados genéticas. Claro que, em toda esta transformação, emergem novos desafios, que não são apenas científico-técnicos: são também económicos, sociais e políticos. Questões éticas sobre a propriedade dos genomas e a acessibilidade à informação neles contida tornar-se-ão prementes, tendo a sociedade de lhes responder. A ciência pode e deve dizer aquilo que sabe, mas pouco ou nada pode dizer sobre as questões éticas. Saber sempre foi poder, mas o exercício desse poder sempre transcendeu os limites da ciência.

O Ano de 2015 vai ser o Ano Internacional da Luz, uma iniciativa da ONU para celebrar os avanços científicos e técnicos obtidos sobre a luz. O ano vai abrir oficialmente em Janeiro em Paris, sob os auspícios da UNESCO. Em todo o mundo e também em Portugal vai ser alargada a cultura científica, com o fértil cruzamento de saberes e sensibilidades a respeito da luz. A luz está por todo o lado, está na Natureza e está também na cultura. Em Portugal os tempos não são fáceis, com um governo que despreza a cultura científica, mas faço votos para que o Ano Novo seja de “mais luz”.


Feliz Ano Internacional da Luz!

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