terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O post de David Marçal, "Onde está a intolerância?", e um comentário do leitor João C.

“Cultura é, frente ao dogma, discussão permanente” (Ortega y Gasset, 1883-1955).

Acabo de ler um comentário de João C. (11 de Dezembro, 18:47) no post publicado, em igual data, por David Marçal, intitulado “Onde está a intolerância?”. Nesse comentário lê-se em referência ao seu autor: “E esse é o ponto que vocês ainda têm de resolver e que não ver ninguém do teu lado aí no Rerum Natura é algo que me entristece realmente”.

Ora acontece que no post de David Marçal, intitulado “Regulamentação das Medicinas Alternativas é uma aldrabice convencional” (23/11/2012), escrevi o seguinte comentário:  “Caro Professor David Marçal, no campo da saúde (e não só) quando se mexe em interesses a instalar, a reacção é sempre descabida e sem nexo. Sejam eles bruxarias, cartomancias, horóscopos e quejandos…Haja paciência e bem haja por se fazer apóstolo de uma cruzada que tem em vista defender a Ciência”.

Surgiu este meu comentário mercê de uma posição por mim assumida anos atrás. Neste blogue, publiquei um post, intitulado “Cursos de (de)Formação de Professores” (06/04/2009), em que escrevi, em citação parcial: “Sempre que uma pessoa se defronta com algo de impensável, é costume (do qual não sei a origem) dizer-se, “desde que vi, no circo, um porco a andar de bicicleta já nada me espanta”. Mas será sempre assim? Dois factos levam-me a descrer.

O primeiro, reporta-se a um artigo publicado há anos no "Público" (08/05/2005), da autoria de Nuno Pacheco, com um título que não deixa dúvidas sobre a paródia em que se transformou o ensino em Portugal: “Brincar às escolas”! O segundo, diz respeito a um artigo acabado de sair no “Expresso” (04/04/2009) da autoria de Joana Pereira Bastos intitulado “Esoterismo pode contar para a progressão na carreira".

A semelhança dos casos que geraram os artigos gemina-os no dislate – ambos se referem a acções imaginativas de formação de professores - embora seja diferente a progenitura: o primeiro foi organizado pela “Associação Sindical Pró-Ordem dos Professores” (baptismo ridículo, comparável ao de uma “Ordem dos Professores Pró-Associação Sindical”!) e o segundo pela Fundação Casa Indigo. Os dois tiveram a caução do Ministério da Educação (ME).”

(…) Por mais incrível que pareça (lá vem, outra vez, o porco e a bicicleta!), o ME, sempre atento a tudo destruir sem nada construir, acreditou este curso ministrado pela Fundação Casa Índigo, que é, segundo o “Expresso”, “uma instituição baseada na teoria de que a ‘aura’ da crianças tem diferentes cores, em função da sua energia e da ligação que mantém com o Universo”. Nestas acções de formação, que dão créditos para a progressão na carreira, ”os docentes podem aprender ‘técnicas pedagógicas’ (…). Além de poderem igualmente ficar a conhecer ‘técnicas de regulação ou limpeza de energia".

Sobre os motivos da acreditação pelo ME deste tipo de acções poder-se-ão tirar, de entre outras, as seguintes ilações.

1.ª O ME sentindo-se incapaz de equacionar e resolver os problemas do ensino com medidas exotéricas enveredou pela via do esoterismo: as medidas agora são esotéricas.

2. ª O ME, com essa atitude, corre o risco de se transformar numa espécie de altar ou talvez capela de uma seita que cultiva as ciências ocultas.

3.ª O ME deve mandar encerrar, em respeito pela contenção das despesas públicas, todas as Faculdades de Psicologia e Ciências da Educação portuguesas por incapacidade de se tornarem parceiros científicos na investigação dos processos em melhorar o rendimento escolar sem ser pela via estatística.

4.ª O ME deve criar um corpo de incendiários para queimarem em fogueira pública todos os manuais de Psicologia e Ciências da Educação por transmitirem conhecimentos que atrasam e obstaculizam um país de faz-de-conta, um país com elevados níveis de escolaridade, espelhados em sucesso escolar sem paralelo neste mundo.

5.ª O ME pretende que todos os nacionais tenham escolaridade obrigatória de licenciado (antes de Bolonha) ou mestrado (depois de Bolonha), ainda que obtida à pala das miríficas “Novas Oportunidades” e “Provas de acesso ao ensino superior para maiores de 23 anos”, em concorrência desleal para com as escolas do ensino básico e secundário, que correm o perigo de se tornarem desnecessárias por a idade de 23 anos (e por que não 21 ou 22?) para além de ser um posto ter passado a ser um atestado de sapiência.

6.ª O ME providenciará a inscrição massiva dos novos diplomados, sem esperança no devir, nos Centros de Desemprego, com as cabeças cheias de nada e ocas de tudo, numa espécie da “Fundação Nacional de Alegria no Trabalho” (FNAT), do tempo da Outra Senhora, agora transformada em “Fundação Nacional de Tristeza no Descanso” (FNTD).

Como promessa, qual réstia de sol no céu plúmbeo de asneiras de cabo de esquadra, com copianço no pensamento de Sigmund Freud em epígrafe, surge a intenção da responsável da Fundação Casa Índigo: “O curso serve basicamente para os professores entenderem a necessidade de amar as crianças”. Até parece uma boa intenção. Mas, a exemplo do inferno, de boas intenções não estará o ME cheio!"
Não se pretenda com isto inferir que pretendi com este meu esclarecimento intrometer-me numa polémica em que os argumentos de David Marçal e Desidério Murcho são mais do que suficientes para o leitor retirar  as suas ilações. Serão? Há sempre o risco colhido em versos de António Gedeão e suscitado por posições irredutíveis: “Onde Sancho vê moinhos / D. Quixote vê gigantes. / Vê moinhos? São moinhos! / Vê gigantes? São gigantes!”

9 comentários:

João disse...

Olá e obrigado por não ter deixado passar ao lado a minha queixa.

No entanto:

"Não se pretenda com isto inferir que pretendi com este meu esclarecimento intrometer-me numa polémica em que os argumentos de David Marçal e Desidério Murcho"

Mas isso não faria mal nenhum. Creio mesmo que o assunto é de crucial importancia e convinha que toda a gente ficasse esclarecida com quem pensa o que.


"são mais do que suficientes para o leitor retirar as suas ilações. Serão?"


Num blogue como este e com o Desidério a escolher a popularidade como argumento para o que deve ir para o curriculo, acho que era pertinente cada um mostrar a sua posição.

"Há sempre o risco colhido em versos de António Gedeão e suscitado por posições irredutíveis: “Onde Sancho vê moinhos / D. Quixote vê gigantes. / Vê moinhos? São moinhos! / Vê gigantes? São gigantes!”"

Isto é que é relativismo.

Por isso é que procuramos confirmação independente, condições falsificaveis e reprodutibilidade. E assim os moinhos são moinhos para todos menos para um.

Rui Baptista disse...

Se reparou, e reparou certamente, houve catadupas de comentários a favor e contra o David e o Desidério. A minha posição sobre esta temática remonta a 2009, isto é, três anos antes de ela ter sido despoletada nos dias de hoje.

João disse...

Mas a quantidade de argumentos não é a questão.

A questão é a posição do Rerum Natura neste tema e por conseguinte dos seus autores.

Claramente, uma posição relativista é anti rigor no ensino, meritocracia, estimulo a procurar conhecimento, etc. E isso merecia uma resposta pelos outros autores, já que é um tema tão central.

Lamento, mas não conheço a sua posição de 2009. Poderá repetila?

João disse...

Há, os moinhos é sarcasmo. Já percebi.

E já vi que o texto é de 2009, pensei que se referia ainda a um outro. Esqueça a questão.

Obrigado pela atenção de qualquer maneira, é apreciado.

Anónimo disse...

Existe posição oficial do Rerum Natura??

Essa ideia de posição oficial do Rerum Natura já sucedeu alguma vez??

Pode ir o Desidério, seu autor, contra uma «posição oficial» do RN??

Digam-me, pf, para, em caso afirmativo, fugir já daqui!

Rui Baptista disse...

Obviamente, sem qualquer procuração, tão-só pelo que sei por experiência pessoal, não "existe posição oficial do Rerum Natura" sobre os posts nele publicados. Simples posições pessoais em liberdade plena de opinião. Isso sim!

A isso chama-se liberdade de expressão tão cara a Ruy Barbosa: “A liberdade de expressão é apanágio da condição humana e socorre as demais liberdades ameaçadas, feridas ou banidas. É a rainha das liberdades”.

Anónimo disse...

Ainda bem. Não esperava outra coisa.

Sendo assim, João C queria saber a opinião de Rui Baptista. Nem mais, nem menos.

Sabe, por vezes, os textos assumem tal radicalidade que podem surgir dúvidas...

Obrigado

Anónimo disse...

Oh ja, interesses instalados são aos magotes, e só para não os perdermos de vista são segundo alguns pensadores que merecem alguma credibilidade os seguintes:
- Indústrias de armamento, alimentar, químicas, farmacêuticas, tráfico humano, tráfico de drogas chamadas ilegais, máfias.....

Logo a seguir temos as maçonarias.

Depois há os politiqueiros e e seus lacaios.

A seguir temos umas quantas classes, desdes a dos empresários (uma dúzia deles; e dum modo geral os sindicatos.

Depois destes temos bastonários e ordens para quase todos os gostos. Algumas fundações também se encontram neste patamar.

Depois quase no fundo da pirâmide temos as associações, hoje em dia vulgarizadas e peso pouco relevante para influenciar as decisões relevantes e importantes para o país.

Bem na base desta pirâmide a suportar toda esta teia de interesses de uns poucos, temos então o mexilhão, perdão o Zé Povinho.

Não não esqueci as ciências e seus cientistas, estes últimos não raro seguem os interesses dos grupos influentes que é como quem diz ou seguem a batuta ou o "subsídio" desaparece num ápice.

Tenho esperança que em breve o leitmotiv que move estes grupos seja bem diferente, seja embuído de sensatez. Oxalá.

Rui Baptista disse...

Anónimo (13.Dez.21:00): Embora pareça um extenso rol de roupa para antigas lavadeiras de rio, apesar de tudo ainda me parece incompleto.

Quanto às ordens profissionais o Estado anda ao sabor de pressões políticas ou quaisquer outras que fazem com que as ordens tenham deixado de estar ao serviço dos interesse da sociedade e da qualidade de serviços prestado pelos seus associados fazendo com que diplomados por escolas universitárias, politécnicas ou nem isso proliferem nesta país como cogumelos em terreno húmido. Enfim, sinais de um tempo secular não desaparecido em que "quem não têm padrinhos morre mouro!"

E sabe porque não foi criada ainda uma Ordem dos Professores? Tudo leva a crer por a iniciativa que chegou a ser discutida na Assembleia da República ter o aval do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (por universidades), havendo nesse encalço a Associação Nacional dos Professores do Ensino Básico (formada por professores diplomados pelas antigas Escolas do Magistério Primário), que deu lugar à actual Associação de Professores sob a antiga presidência do actual secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário. E isto para não falar no contravapor da Fenprof… e outros sindicatos.

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