quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

“A LUZ DA CAL”

Texto do Professor Galopim de Carvalho, com os nossos agradecimentos:


A Luz da Cal” é o título de um belo livro com texto de Urbano Tavares Rodrigues, e fotografia de António Homem Cardoso: Evoca as casas caiadas de branco dos campos, aldeias, vilas e cidades do Alentejo.

Para haver cal é preciso haver caleiros e nós conhecíamos um que, não só a fabricava como a vendia de porta em porta. Todos os anos, umas semanas antes da Páscoa, o Júlio percorria as ruas da cidade num carro bem carregado, puxado por uma mula e coberto por um toldo, servindo uma clientela sempre certa. 

Fazer caianças em casa nos primeiros dia de sol, findo o Inverno, era uma tradição do Alentejo rural que muitas famílias da cidade continuavam a respeitar. Nos montes, as paredes exteriores e interiores das casas, muitas delas térreas, eram caiadas, via de regra, pelas mulheres, de pincel na mão até à altura do estender do braço, e com o dito atado na ponta de uma cana, daí para cima. Na cidade, com prédios de dois e mais andares, a caiança dos exteriores era entregue aos cuidados de caiadores, acrobaticamente empoleirados em grandes escadas de encostar à parede. Estes profissionais de trabalho incerto e arriscado, não dispunham de qualquer protecção. Trabalhavam por conta própria e, em caso de acidente, não havia seguro que lhes valesse.

Nas casas das famílias mais desafogadas, havia pinturas dos interiores e esse trabalho era entregue a um ou dois caiadores considerados artistas e, habitualmente, designados por pintores. Nestas pinturas, a base da tinta era sempre a cal, sendo que as cores pretendidas se obtinham misturando-lhes, com mestria, certas anilinas à venda nas drogarias. Nas casas da generalidade da população não havia pinturas, havia simplesmente caianças.

Sentado no varal do carro, o caleiro, de há muito conhecido da minha mãe, parava sempre à nossa porta pois sabia ter ali freguesa certa. À semelhança do que era regra nos montes, muitas famílias da cidade faziam as suas caianças uns dias antes da Páscoa. Mandava o brio das alentejanas que, na Festa, tudo reluzisse de brancura.

Na caleira que herdara do pai, o Júlio arrancava a pedra a tiros de dinamite e fragmentava-a a guilho e a golpes de marreta, até terem o tamanho adequado a encher o velho forno. Empilhada a preceito, esta montanha de calcário transformava-se em cal-viva, branca de neve, pela acção do fogo intenso de feixes de lenha, sabiamente metidos na base. Esta cal, bem seca era guardada num barraco, protegendo-a de eventuais chuvas e depois era só encher o carro, tantas vezes quantas as necessárias para servir a numerosa freguesia.

- Cal branca! – Ia apregoando. – Arre mula! Anda Violeta!

Não raras vezes, começando manhãzinha cedo, carregado à medida da força do animal, chegava ao meio-dia com o carro vazio. O tempo chuvoso era mau para o negócio, A humidade estragava-lhe a cal, mesmo a que estivesse ao abrigo da chuva.

A minha mãe comprava-lhe sempre umas pedras de cal que metia num pote de barro próprio para esse fim, a que depois juntava a quantidade de água necessária. Esta operação que despertava grande curiosidade, era barulhenta, libertava calor e punha a água a ferver, um processo que só mais tarde compreendi, quando, numa aula de química, no liceu, me foi explicado a diferença entre reacções endotérmicas e exotérmicas. No outro dia, a calda estava fria e pronta a ser usada.

- É boa a sua cal, este ano, senhor Júlio? – Perguntava a minha mãe. – Olhe que a do ano passado já não tinha força. Estava meio-morta.

- Foi do tempo, Dona Adília. Toda a gente se tem queixado. Choveu a maior parte do tempo. Quase não tivemos Verão e não ganhei para o trabalho que tive. Mas esta, este ano, é da melhor que já fiz. Está bem viva. Vai ver quando a “derregar”.

8 comentários:

Cisfranco disse...

Não há melhor pintura para os muros e paredes exteriores do que pintar com cal. E se lhe for adicionada uma espécie de cola à base de resinas que existe no comércio, a pintura fica perfeita e dura muito tempo. Nada que se compare com as tintas plásticas muito fáceis de aplicar com o rodo, mas que logo no primeiro Inverno ganham fungos com manchas negras que estragam toda a pintura. A pintura com cal dura muito tempo, é barata, mas é trabalhosa a sua aplicação; o caiador fica todo salpicado de cal, por isso é que ela caiu em desuso. Mas eu ainda a uso e gosto da pintura feita com cal.

José Batista disse...

Caro Cisfranco

Cá pelo norte (Braga) não tenho conhecimento de que se use a cal, atualmente.
Pode dizer-me onde se adquire, como se prepara, que cola é essa (o tipo, o nome...) e onde se obtém, e mais algum truque útil?...
Creio que, com a crise que se vive, muitos, como eu, precisam, em vez de pagar, e muito, de pôr mãos à obra. É que tenho um pequeno quintal, com muros brancos que, cada inverno, ficam bastante feios, como começam a ficar agora.
Se me puder ser útil, em não muitas palavras, agradeço.

De Rerum Natura disse...

Meu caro José Batista
Para ter cal é preciso dispor de calcário (que abunda, sobretudo, no Jurássico e no Cretácico das Orlas Mesocenozóicas Ocidental e Meridional) ou de mármore (que não é mais do que calcário recristalizado por acção metamórfica), igualmente abundante no Alentejo. Coisa que, com excepção de Vimioso, praticamente, não há, aí, no vosso maravilhoso Norte.
Portanto, meu caro Amigo, se quiser caiar o muro do seu quintal, venha até ao Maciço Calcário Estremenho ou, mais a Sul, até ao Alentejo, em tempo seco e quente, e eu terei muito gosto em o acompanhar a um qualquer sítio onde haja caleiras e, porque não, umas suculentas migas com carne de porco entremeada, uma açorda de poejos, umas sopas de cação ou um ensopado de borrego.

Para termos, à mão, cal de caiar, é preciso “derregar”, isto é, adicionar água às pedras de cal.
As pedras de cal são óxido de cálcio (CaO) e nós chamamos “cal-viva”, porque reage violentamente com a dita “derrega”.
No forno de cal, a que também alguns dão o nome de caleira, o calcário (ou o mármore), um carbonato de cálcio (CaCO3), é calcinado, originando o dito óxido e libertando dióxido de carbono (CO2).
Ao juntar água, hidratamos a cal-viva que reage exotermicamente, originando hidróxido de cálcio ou Ca(OH)2, a chamada “cal-apagada”, que forma a calda, uma suspensão no excesso de água, ou seja, a cal de caiar.
Ao secar na parede, a calda perde água e adiciona dióxido de carbono atmosférico pelo que se recompõe o carbonato que é, afinal, a capa sólida, reluzente de brancura, que inspirou Urbano Tavares Rodrigues, ao falar na “Luz da Cal”.
Um abraço,
Galopim de Carvalho

José Batista disse...

Estimadíssimo Professor

Li a sua resposta e fiquei emocionado. Já me tinha lembrado de lhe fazer a pergunta a si, mas não o fiz, não por me sentir horrivelmente ignorante mas para não lhe tomar tempo com coisas tão "pequenas"... A explicação está soberbamente simples e clara, como são sempre as suas explicações.
A isto eu chamo pedagogia. Séria (e grátis).
Nem sei como agradecer-lhe o convite que me faz, que está aceite. Saiba que é para mim um contentamento e uma honra.
Muitíssimo obrigado.

Receba um abraço cheio de admiração e amizade.

José Batista da Ascenção

Cisfranco disse...

Caro José Batista

Com todo o gosto, duma forma simples e prática cá vai o que posso dizer. Encontra-se cal viva em qualquer drogaria ou comércio onde se vendam certos materiais utilizados na construção como tintas e cimento (pelo menos na região de Aveiro assim acontece). Vende-se em sacos de 40 kg mas vende-se também avulso. Também se encontra nalguns comércios sob a forma de pedras. Da cal viva, depois de lhe ter sido adicionada água, forma-se uma suspensão mais ou menos concentrada conforme a quantidade de água, o leite de cal, que serve para caiar. Depois dessa suspensão ter arrefecido pode juntar-se- lhe o FIXADOR DE CAL - TRIUNFANTE, que torna a caiação muito mais aderente e durável. Em dia de tempo seco e com sol pode caiar o seu muro, mas tem que dar pelo menos duas demãos e então se der três demãos de cal ficará uma caiação ***** . De qualquer modo, se o muro já foi caiado com outra tintas, deve primeiro ser escovado com uma escova de arame para tirar o melhor possível a pintura velha. Mas isto dá muito trabalho, razão porque os caiadores arranjam logo razões para não utilizarem a cal e toca de pintar com o rodo utilizando as tintas "plásticas" que rapidamente pintam uma grande extensão que fica muito bonito no princípio mas só até ao 1º Inverno.
Bom trabalho!

José Batista disse...

Caro Cisfranco

Parece-me que a sua explicação tem tudo o que é preciso de modo claro e resumido. Como eu gosto (e necessito).

Prestou-me um favor. Fico-lhe muito grato.

Deixo-lhe um abraço.

José Batista da Ascenção

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Ao professor Galopim de Carvalho e, que desta pertença acolha com gosto do extracto.






Cítola



Vai por nós, saudade!
Na comba, ali coroado
oh' sentimento, graçado;
estonado ao labor e invade.

Ai?! De quem, nem pendor:
soubera de cômpito cavado
na calma cor, o ser amado
à polipeiro pétreo, sabor.

Ponço na noite a passo,
mira! Lá, a candeia conduz
o Alentejo colcheia, luz,


n'este abraço em acha vos faço,
escudo flamejante e cimeiro,
iluminai o polme, certeiro.

Anónimo disse...

Em alternativa á Cal Viva ensacada, podem utilizar Cal Hidratada, tambem em saco. Vende-se nas estâncias de materiais de contrução.
Evita-se o trabalho da hidratação da cal viva, cuja reacção é um pouco violenta, e possibilita controlar a quantidade de água.
Podem pesquisar na net quais as dosagens recomendadas para a composição da cal de pintura. Os brasileiros utilizam muito esta técnica e têm 'online' muita informação disponivel. Existe informação muito interessante para quem quer utilizar cal colorida/pigmentada.

cumprimentos
João Figueiredo

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