sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O NOMEAR E A NECESSIDADE

Início da Introdução de Ricardo Santos ao livro "O Nomear e a Necessidade" do filósofo Saul Kripke, que acaba de sair na Gradiva (segundo diz a cinta do livro, "um dos mais originais, citados, discutidos e influentes livros de filosofia dos últimos 50 anos").        

"Saul Kripke nasceu em Nova Iorque em 1940 e é um dos mais criativos e influentes filósofos analíticos do nosso tempo. O Nomear e a Necessidade é a sua obra mais conhecida. Juntamente com o artigo «Identity and Necessity» [1] (uma apresentação mais resumida das mesmas ideias), trata-se da sua obra de estreia como filósofo. É baseada em três palestras que proferiu na Universidade de Princeton em Janeiro de 1970. Kripke tinha então 29 anos e já firmara uma reputação como lógico brilhante, graças à publicação de trabalhos importantes sobre lógica modal, lógica intuicionista e teoria da recursão.

Foi durante a sua adolescência, nos anos cinquenta, que Kripke se interessou pela lógica modal — a lógica do necessário e do possível, que procura formalizar o raciocínio correcto acerca das relações entre a maneira como as coisas são, a maneira como elas têm de ser e as diferentes maneiras como poderiam ser. Aos 18 anos, era estudante de licenciatura na Universidade de Harvard quando conseguiu a proeza de publicar, no prestigiado Journal of Symbolic Logic, um artigo com uma demonstração de completude para a lógica modal. A época era ideal para um jovem talentoso alimentar um interesse por lógica modal: tratava-se de um ramo da lógica matemática moderna que estava naquele preciso momento a desenvolver-se, acompanhado de uma discussão filosófica muito acesa acerca do possível uso ou das possíveis interpretações dos sistemas formais propostos.

Os principais intervenientes eram Rudolf Carnap, W. V. Quine e Ruth Barcan Marcus. Carnap e Marcus foram os primeiros a publicar, nos anos 1946-47, sistemas axiomáticos de lógica modal quantificada (quer dizer, sistemas que combinavam a já bem conhecida lógica de predicados com a lógica modal proposicional de C. I. Lewis). E Carnap tentou recuperar a ideia leibniziana de conceber as verdades necessárias como verdades em todos os mundos possíveis, para lançar as bases de uma semântica formal para esta nova lógica. Mas Quine, professor em Harvard, era muito crítico do empreendimento e considerava que o projecto de uma tal lógica pouco valor teria. Segundo Quine, a lógica modal violava um princípio básico de raciocínio, por isso, não seria possível dar-lhe uma interpretação que fizesse realmente sentido e que a tornasse uma teoria aplicável.

Neste debate, Kripke ocupava uma posição intermédia. Por um lado, como Carnap, Marcus e muitos outros, acreditava na possibilidade de desenvolver uma lógica modal madura, com um sistema dedutivo e uma semântica formal em harmonia entre si, e com uma interpretação intuitivamente aceitável. Ele próprio trabalhava nesse sentido e, em artigos que publicou entre 1959 e 1965, acabou por contribuir decisivamente (com conjunto com Stig Kanger, Richard Montague e Jaakko Hintikka) para a criação da chamada «semântica dos mundos possíveis», que se impôs como a semântica canónica para a lógica modal. Mas, por outro lado, reconhecia a importância das objecções de Quine.

O princípio invocado por Quine, geralmente conhecido por princípio da indiscernibilidade dos idênticos (ou «lei de Leibniz»), diz que se x e y são o mesmo objecto, tudo o que for verdadeiro de x será também verdadeiro de y. Aparentemente, uma das coisas que é verdadeira de qualquer x é ser necessariamente idêntico a x (pois todos os objectos são necessariamente idênticos a si próprios). Daqui segue-se que ser necessariamente idêntico a x é uma propriedade que y também tem, já que x e y são o mesmo. Ou seja, aquele princípio tem como consequência que todas as identidades são necessárias: qualquer afirmação de identidade, se for verdadeira, será necessariamente verdadeira.

Mas, ao que parece, muitas identidades são contingentes. Um exemplo disso é o que foi celebremente dado por Gottlob Frege, da identidade entre Héspero e Fósforo. O facto de a primeira «estrela» visível à tarde ser a mesma que a última «estrela» visível de manhã e o facto de ambas serem afinal o planeta Vénus correspondem a descobertas empíricas feitas pelos astrónomos, por isso, deve tratar-se de verdades contingentes, pois, como dizia Kant, a experiência ensina-nos que as coisas são de uma certa maneira, mas não que não possam ser de maneira diferente. Um segundo exemplo, dado por Quine, contrasta a identidade «9 = 5 + 4» (uma verdade necessária, conhecida a priori) com a identidade «9 = o número de planetas do sistema solar» (uma verdade obviamente contingente, já que o sistema solar poderia ter menos, ou mais, planetas do que efectivamente tem) [2]. Um terceiro exemplo, sobre o qual Kripke se interessou especialmente, é o da identidade, defendida pelos materialistas como identidade contingente, entre uma pessoa e o seu corpo, ou entre os estados mentais de uma pessoa e os estados físicos do seu cérebro. Kripke considerava que exemplos como estes revelavam uma dificuldade real, que precisava de ser respondida.

Em Fevereiro de 1962, Ruth Marcus visitou Harvard e participou num encontro apresentando o artigo «Modalities and Intensional Languages». Quine leu um comentário que veio a ser publicado com o título «Reply to Professor Marcus». Seguiu-se uma discussão em que também participaram Kripke, Føllesdal e McCarthy. Esta discussão foi gravada, posteriormente transcrita, revista pelos diversos intervenientes e publicada num volume da revista Synthese3. A participação de Kripke nesta discussão revela bem a posição. (…)"

NOTAS
[1] Originalmente publicado em Identity and Individuation, ed. por Milton K. Munitz, Nova Iorque, New York University Press, 1971, pp. 135-164. Reimpresso como Capítulo 1 em: Saul A. Kripke, Philosophical Troubles: Collected Papers, Volume I, Nova Iorque, Oxford University Press, 2011, pp. 1-26. Este artigo baseia-se numa palestra dada por Kripke na Universidade de Nova Iorque cerca de um mês depois das palestras de Princeton.

  [2] Em 2006, a União Astronómica Internacional estipulou uma nova definição de «planeta», de acordo com a qual Plutão deixou de ter essa definição. Passou então a considerar-se que o sistema solar tem oito planetas. A causa próxima desta revisão da classificação tradicional foi a descoberta de Éris, um corpo esférico que também orbita o Sol e que é maior do que Plutão. Éris e Plutão integram agora o grupo dos «planetas anões».

1 comentário:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Parabéns ao novo livro da Editora Gradiva. O De Rerum Natura, responde em princípio a qualidade do pensamento.

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