Crónica publicada primeiramente em "O Despertar" e em outra imprensa regional.
Reciclar, transformar ciclicamente, é uma característica do Universo.
Longos são os ciclos, no tempo e no espaço, em que os elementos se
“transmutam”, interagem, recombinam e “expressam” as propriedades
físico-químicas que apreendemos a conhecer.
Talvez as partículas elementares de que se forjam os elementos, os quarks, os electrões e os neutrinos, também tenham os seus ciclos, ritmos característicos de um Universo de massa em expansão no campo de Higgs, desde um microssegundo após o Big Bang.
Talvez as partículas elementares de que se forjam os elementos, os quarks, os electrões e os neutrinos, também tenham os seus ciclos, ritmos característicos de um Universo de massa em expansão no campo de Higgs, desde um microssegundo após o Big Bang.
Reciclar é reencontrar a essência primária, o alfabeto fértil, os blocos
construtores de novas arquitecturas.
O nosso planeta, esse “pálido ponto azul flutuando na imensidão do
Universo” (como descreveu Carl Sagan ao ver a imagem da Terra que a Voyager 1
enviou ao voltar-se uma última vez para nós, em Fevereiro de 1990), é uma
história imensa e intensa de vários ciclos geoquímicos e geofísicos, em que
elementos e compostos se recombinam e percorrem o planeta segundo partituras e
coreografias específicas, mas ainda não muito bem conhecidas.
Ao apreendermos os grandes ciclos do planeta, abertos e influenciados
pelas vizinhanças siderais mais ou menos variantes do nosso sistema solar,
verificamos a incontornável interdependência da vida com os ciclos da água, dos
compostos de azoto, dos compostos de carbono. Com certeza que outros elementos
têm ciclos geoquímicos e geofísicos que também orquestraram funcionalidades no
acaso adaptativo aparente da vida.
A vida, tal como a conhecemos, evoluiu neste planeta de coração temperado
a ferro e níquel, e superfície composta maioritariamente por diversos compostos
de silício, oxigénio, carbono, enxofre, fósforo, entre outros elementos. A vida
evoluiu com a “função reciclar” inscrita intimamente no fluxo de matéria e
energia que foi e é força motriz para fazer emergir a diversidade.
Vários ciclos e fluxos elementares possuem períodos de tempos de
reciclagem de ordem geológica (milhares, milhões de anos) que ultrapassam a
nossa longevidade telomérica.
Mas, desanuviemos o olhar do horizonte secular e milenar, e mergulhemos
na intimidade de uma célula, na riqueza e densidade molecular que interage em
menos de um segundo.
Nestes micrómetros de vida esculpida pelos ciclos geológicos e
biológicos, existem instruções precisas, geneticamente preservadas,
proteicamente funcionais, para uma eficiente e bioeconómica reciclagem dos blocos
moleculares essenciais.
Minimizar as trocas com o meio, reciclar o que já não é bioquimicamente
funcional, reobtendo assim os blocos construtivos, os monómeros substantivos.
Só em último recurso se importa nova matéria-prima e isto permite reduzir
a energia despendida no transporte membranar. A reciclagem intracelular permite
que a célula consiga aumentar o período de tempo em “jejum” extracelular, sem que isso
diminua a sua actividade. Por outro lado, o trânsito assim reduzido de
substâncias à superfície celular permite que esta seja mais sensível a qualquer
nova informação exógena. Assim, este silêncio funcional permite que a célula
possa “sentir” uma única molécula e transduzir novas de outra célula, de algum
tecido ou órgão da espantosa homeostase fisiológica e bioquímica.
A vida teria de ser muito diferente se a célula não fosse exímia a
reciclar. Por exemplo, a cadeias de ácido ribonucleico mensageiro (ARNm) são
constantemente sintetizadas para transmitir uma determinada informação genética
a partir do núcleo, para construir uma proteína correspondente. Finda a síntese
proteica, a cadeia de ARNm é decomposta nos seus componentes, que são sequentemente
reciclados para a construção de uma outra cadeia de ARNm, para o transporte de uma
nova mensagem. Estes ciclos podem ter períodos de tempo inferiores ao minuto!
As células possuem um complexo sistema de maquinaria proteica, implacável
e eficiente, que permite a constante reciclagem de muitos dos diversos componentes
celulares já não funcionais.
Uma das proteínas com papel central numa reciclagem é uma enzima que
recicla alguns blocos constituintes dos ácidos nucleicos (ADN e ARN). Denominada
Hipoxantinaguanina fosforiboxiltransferase (HGPRT, sigla inglesa), esta enzima
“recupera” as bases purinas que resultaram da degradação de cadeias de ARNm que
já cumpriram a sua função, e liga-as a moléculas do açúcar ribose. São assim
recicladas nos respectivos nucleosídeos e nucleotídeos, blocos constituintes de
uma nova cadeia de ARNm.
Deficiências na HGPRT impedem ou diminuem o seu papel “reciclante”. Isto consubstancia
o princípio molecular de diversas doenças como a síndrome de Lesch-Nyhan, doença hereditária caracterizada por
retardamento
mental, comportamento agressivo, automutilação e insuficiência
renal. Outra perturbação é a conhecida por “gota”, bioquimicamente manifestada
por um excesso na produção de ácido úrico e que potencia dolorosas perturbações
nas articulações.
A HGPRT é ainda crucial para o parasita que causa a malária, assim como para
outras doenças similares. Estes parasitas dependem daquela enzima para obterem
os necessários nucleótidos, uma vez que perderam a capacidade de os sintetizar
de novo dentro da célula hospedeira.
Assim, a HGPRT é um excelente alvo para o desenvolvimento de novas drogas
para atacar o parasita da malária. E de facto, investigadores estão a estudar
as diferenças nas estruturas tridimensionais das HGPRT humanas e dos protozoários parasitas do género Plasmodium,
que causam a malária, no sentido de sintetizar drogas
específicas só à forma da HGPRT do parasita (ver, por exemplo, artigos recentes aqui e aqui).
Reciclar ou não reciclar poderá então definir o destino do parasita e do hospedeiro infectado.
Reciclar ou não reciclar poderá então definir o destino do parasita e do hospedeiro infectado.
Reciclar é assim vital à vida, como o é também para a biosfera que a
acolhe.
E no princípio, reciclar é viver.
António Piedade
3 comentários:
Obrigada por mais este belíssimo texto
Regina Gouveia
Faço minhas as palavras de Regina Gouveia!
Um abraço António.
Reciclar é de acerto, humano!
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