domingo, 8 de julho de 2012

…pedagogos tão mansinhos, tão inteligentes, com aqueles olhos vivos, a perceber tudo… parecem pessoas: só lhes falta falar

ou

Monotrémato II: o regresso das Metas Curriculares de EV

Um recente texto de José Batista da Ascenção, no De Rerum Natura, veio instalar-se à minha frente um dia depois de uma conversa telefónica com uma colega que, como eu, acabara de classificar exames onde predominam as negativas.

O que é que se passou, de há uns anos para cá? Porque é que gente do mesmo país, com matérias semelhantes, na mesma idade e grau de ensino—deixou de perceber? Deixou de aprender?

O colega Batista da Ascenção avança com umas quantas razões que, no seu entender—em Biologia e Geologia—, explicam o descalabro.

Pode bem ter razão.

Eu, que não sou da mesma área, também ouço explicações equivalentes dos professores de Geometria Descritiva. Há uma em comum: a falta de domínio da Língua Portuguesa.

Mas revolvo-me sempre com uma ideia que não se afasta do meu caminho: que era que os alunos de Geometria Descritiva sabiam nos anos 1980-2000 (digamos), que agora já não sabem? E o que foi que veio, progressivamente, a perder-se?

Porque as razões externas terão uma quota-parte da responsabilidade, e peso nas explicações. Mas entendo que são um conjunto muito complexo para uma coisa muito simples, fazendo lembrar aquelas pessoas que, apanhadas numa falta qualquer, juntam três ou quatro justificações, num conjunto suspeito, de preferência à revelação, direta e cândida, do motivo da falta.

Sei, de Biologia e Geologia, o suficiente para distinguir entre um pedagogo e a limonite: os pedagogos facilmente cristalizam; a limonite é amorfa. Mas muito mais não sei.

Vou, com a devida vénia ao colega Batista da Ascenção, falar de Educação Visual, de Geometria Descritiva, e de coisas afins.

A Geometria Descritiva é uma disciplina atualmente ministrada entre o 10.º e o 11.º ano. É alimentada por uma dieta de contornos difusos que tem dado (principalmente) pelo nome de Educação Visual, mais ou menos Tecnológica, de critério pouco variado entre o 5.º e o 9.º ano.

Vamos ver: a predominância das práticas curriculares é a das piores casas de pasto: a quantidade substitui a qualidade. O termo é «farta-brutos». A ignorância do que são miúdos entre os 10 e os 15 anos acompanha, sublinhando o potencial de indigestão: gestalt de coentrada, como oferta (uma gentileza da casa), sopinha semiológica, espessa e condimentada com exagero de indecisão paradigmática, caldeirada taxinómica de áreas de exploração, à discrição, e conteúdos refritos em óleo rançoso de integração das aprendizagens. Tudo regado com uma pinga lá da terra (qual terra?!), de experiências diversificadas, feita a martelo na mesma cave que fez esta ementa e o dossier de turma e, provavelmente, o projeto educativo do estabelecimento. Como sobremesa, à beira da náusea generalizada, um molotoff de tarefa facultativa. Bagaço e bicas para todos.

Vou dar dois ou três exemplos de conteúdos (facultativos) e sugestões (ad libitum). Um: a estruturação do saber pressupõe, em cada professor, o conhecimento dos programas das outras disciplinas; para quê? para estruturar o saber num todo coerente; coerente com quê, já que ficamos com conselhos de turma de generalistas? Deus sabe. Outro, só por piada: compreender que a forma, o peso, o material, das coisas que cria ou escolhe para o servir, deve adequar-se à medida e à forma do corpo e à maneira de as utilizar (aqui se explica uma geração de calças descaídas: é por opção de rebelião antigravítica; a forma serve a função da revolta—opção pós-moderna, ora bem!). Mais um: utilização de instrumentos de medida como o dinamómetro ou o pirómetro; aqui? aqui!: parece que é assim. O delírio é total, mas não vou entrar em pormenores: os textos dos programas estão aí.

As crianças embucham com tanta comunicação, energia, espaço, estrutura, forma, geometria, luz/cor, material, medida, movimento, trabalho, em tanta área de exploração como alimentação, animação, construções, desenho (ah, pois: também!), fotografia, horto-fruticultura (juro!), impressão, modelação/moldagem, pintura, recuperação/manutenção de equipamentos, tecelagens e tapeçarias, vestuário.

Pasme-se: e isto é só o 2.º ciclo. Claro que o 3.º ciclo repete o dislate, e amplia-o.

O que é que fica de fora? Pfff!: só nicas sem interesse de maior: os alunos chegam ao 10.º ano de Geometria Descritiva (ou Geometria Descritiva mais o Desenho, se forem para Artes), sem saberem nada de desenho geométrico básico—ou de desenho. Mas com uma educação.

Segundo um grupo de trabalho de projeto de que é responsável a professora Margarida Afonso (Instituto de Educação da Universidade de Lisboa), não se percebe o que está o 2.º ciclo a fazer no ensino das Ciências. Eu acrescento, da minha experiência de anos recentes de professor de turmas do 10.º ano: também não entendo o que estará fazendo o 3.º ciclo… E junto as Artes às Ciências. Sugiro ao Leitor que consulte KLAHR, David [et al.]—O Valor do Ensino Experimental. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011: é aí que encontra o texto da equipa da professora Margarida Afonso.

Passo a explicar a minha observação azeda sobre o 3.º ciclo: é de toda a conveniência que alunos que vão frequentar a disciplina de Geometria Descritiva saibam dividir um ângulo em 2 partes iguais; ou uma circunferência em 5; saibam que os ângulos inscritos numa circunferência medem metade da amplitude do arco compreendido entre os lados; ou que a altura de um sólido é medida na perpendicular do plano da base; o que é concordância; e uma tangente, é o quê?; e curvas cónicas? Santo Deus, bom, bom, era que soubessem tirar paralelas com régua e esquadro!

Ora: isso, em geral, não acontece.

É de igual conveniência que os que vão frequentar Desenho tenham ideia de como proporcionar um desenho à vista dentro do retângulo da folha de papel; ou lançar as linhas gerais desse desenho à vista, registando convenientemente as perceções. Ou que vão mais longe, em composição, do que enfiar um boneco em cada canto e mais outro no centro da folha. Que tenham alguma experiência da manipulação fina dos meios riscadores. Que conheçam rudimentos de composição cromática.

E, novamente: isso não acontece.

Então, que acontece? Que os pré-requisitos da Geometria, do traçado, do Desenho, não foram, se não mencionados, pelo menos treinados. Os alunos chegam ao secundário, depois de todo aquele forrobodó gastronómico, sem saber desenhar da forma mais básica.

Saberão outras coisas? Não: tudo o resto, aquele programa ambicioso que pretende (desde a unificação dos anos 1970) transformar meninos em sociólogos, antropólogos, críticos de arte, designers, ambientalistas, modistas, arquitetos, filósofos e mais meia dúzia de coisas indispensáveis—logo a partir dos 10 aninhos—, aquele programa é, como muitas outras jogadas das «novas pedagogias», idiota!

Então que se passa com os meus alunos de GD que já não é o que se passava há 30, ou há 10 anos? Passa-se que não aprenderam muito que lhes seria útil. E os de Desenho? A mesma coisa. É por isso que baqueiam: chegam em estado de tábua rasa ao 10.º ano, e têm, num tempo recorde, de aprender—e treinar—tudo aquilo que ninguém lhes ensinou, nem praticaram; desenhar e ver no espaço requerem muita—mas muita—prática, e perderam os 5 anos precedentes em ociosidades.

Sou professor do ensino secundário há imenso tempo: isto significa que dei aulas, com regularidade, a turmas de 7.º, 8.º e 9.º, quando as escolas tinham os ciclos juntos. Sei, portanto, precisamente do que estou a falar: vi substituir um bom programa de Betâmio de Almeida, de cerca de 1970, pelas patetices todas que, entretanto, frutificaram.

O que se prepara de novo, então, com estas Metas Curriculares que o Ministério da Educação e Ciência pôs em discussão pública?

Nada!

Fiquei desesperado com o que li das de Educação Visual, na página respetiva do site do MEC.

Aqui acrescento um breve comentário:

O texto está estruturado por anos (do 5.º ao 9.º); tem 4 domínios principais, de contornos nem sempre claros: Técnica, Representação, Discurso e Projeto. Enfim, é típico: quem não sabe muito bem porque faz aquilo que faz, junta-lhe um título vago. É o pedagogês visto do ângulo que mais o favorece. Mas isso é o menos. O que é grave é a incompetência etária, e a trapalhada de conteúdos. Nem o final, que acrescenta exemplos de exercícios, salva o ensaio.

O impulso é irremediavelmente bissexto. Vasculhemos o que se prevê de linguagem básica da Geometria, já que isso foi mencionado lá atrás: começa-se com um módulo de desenho básico no 5.º ano (paralelas e perpendiculares, polígonos, divisões de linhas); pausa; volta-se à ação no 7.º (retas complanares, bissetriz, tangentes e concordâncias sortidas—incluindo ovais, arcos, etc., e planificação de sólidos); pausa; e, novamente no 9.º, volta-se a pegar no material de desenho rigoroso para brincar às axonometrias e à perspetiva cónica. O 6.º e o 8.º tiram-se para descansar, e não chatear. Fim.

A elipse, nem no país das maravilhas; das curvas afins, resultantes de secções da superfície cónica, nada. São complicadas. Tem de perder-se muito tempo, e não dá: no 9.º ano há que estudar—imagine-se!—o mecanismo da visão; já que, nas Ciências Naturais, estarão, muito naturalmente, a estudar Francisco Rodrigues Lobo, por causa da questão do lobo ibérico; e têm de ser abordados princípios básicos da engenharia e da sua metodologia (inclui a distinção e análise dos vários tipos: a química não é a civil; a aeronáutica não é a eletrotécnica…), para logo «desenvolver soluções criativas no âmbito das casas portáteis, aplicando princípios básicos de engenharia (habitações nómadas; sistemas construtivos flexíveis e mutáveis; eficiência energética; tecnologia; etc.)».

Desenvolver soluções criativas no âmbito das casas portáteis? E não se mencionam as curvas cónicas? Um aluno de 13 anos ainda não consegue desenhar decentemente uma cadeira (nem falemos num rosto!), mas analisa e interpreta «a importância da imagem publicitária no quotidiano»?

Mas, meus senhores: qualquer faculdade de arquitetura que se preze não fará esse golpe tacanho das casas portáteis a alunos seus do 1.º ano!—e aqui estamos no ensino básico…

Se queremos ensinar algo valioso a estes alunos, ensinemos a registar perceções (também dá pelo nome de desenho à vista, e é insuperavelmente formativo); ensinemos regras e traçados geométricos de base, fazendo e refazendo; ensinemos a compor com elementos formais e cromáticos, e a manipular qualidades formais, interações complexas e processos narrativos com esses elementos, utilizando com critério uma pequena variedade de materiais; visitemos Arte, e comparemos, sem privilegiar épocas, nem destruir cronologias. Ano após ano, progressivamente, introduzindo primeiro o mais fácil, depois o mais difícil, sem hiatos, não deixando nada para trás. Nada abandonando. Há que conquistar tudo isto, com aplicação, com trabalho.

A análise e a síntese, a visão integradora da ossatura da forma a estruturar o conhecimento, as relações profundas entre essa forma e a função, a alimentação do sentido crítico, a germinação de uma cidadania interventiva e duma mundivisão redentora—sem saber desenhar a cadeira?

Sem saber nada de jeito?

Os visionários que congeminaram estas orientações tiveram, possivelmente, a fortuna de aprender a desenhar a cadeira na altura certa. Agora, puxem pela memória, recordem qual era a infinita superioridade, quando tinham 11 anos, do seu «sentido crítico no âmbito da comunicação, através do reconhecimento dos elementos do discurso e do seu enquadramento na mensagem». Ou qual era a profunda avidez por estes luxos que lhes tornou a infância árida, e frustrante a progressão.

O sentido crítico que se quer injetar, à força, nos alunos destas idades, vem aos poucos, com os conhecimentos, com as aptidões que forem praticadas e integrarem esses conhecimentos, com o métier. Não surge do nada, aos 11 anos, no 6.º ano de escolaridade, a acompanhar o estudo de elementos da teoria da Gestalt (o que quer que ela valha). Ou aos 13, no 8.º, a acompanhar o cursinho de Semiologia para totós. Estas Metas Curriculares nada acrescentam: permanece o caos.

Haja bom senso, e poderá haver ensino!

E sucesso, por acréscimo.

António Mouzinho

P.S.: contas são contas: não julgue que sou ingrato, ó José Batista da Ascenção; não fazia ideia da aplicação do termo «pensar» à alimentação de cavalgaduras e agradeço, divertidíssimo, a informação. Começo a meditar nisso seriamente: o que será que comem os ornitorrincos?

3 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Caro colega António Mouzinho,

Eu sou daqueles que não aprenderam a desenhar a cadeira.
E se, porventura, lhe faço "lembrar aquelas pessoas que, apanhadas numa falta qualquer, juntam três ou quatro justificações, num conjunto suspeito, de preferência à revelação, direta e cândida, do motivo da falta" peço-lhe a bondade de me indicar qual é/foi a (minha) falta, para que todos (e, portanto, eu próprio) fiquem a conhecê-la. Antecipadamente lhe agradeço.
E divertido (acredite), confesso, aqui e agora - fica entre nós, pronto -, o que era segredo entre mim e os que (já) foram meus alunos: o que mais me sobra é ignorância (para além da falta de dinheiro).

Gosto dos seus textos.

Aceita um abraço?

PS: São muito simpáticos, os ornitorrincos.

De Rerum Natura disse...

Ó José Batista da Ascenção:

Um professor é, por definição, um profissional de qualquer coisa com ar de quem anda a tramá-las. Experimente cruzar-se com um na rua, sem o próprio dar por isso, e diga-me se não sente o gelo na espinha?

Sans blague: aceito, agradeço e retribuo o abraço!

AM

novo mundo disse...

Onde diz "volta-se à ação no 7.º (retas complanares, bissetriz, tangentes e concordâncias sortidas—incluindo ovais, arcos, etc., e planificação de sólidos); pausa; e, novamente no 9.º, volta-se a pegar no material de desenho rigoroso para brincar às axonometrias e à perspetiva cónica." infelizmente não está correto. Por incrível que pareça, nas Metas Curriculares do 7º ano em Técnica T7 Objetivo Geral 1 em pode ler-se em 1:6 "aplicar sistematizações geométricas das perspetivas axonométricas (casvaleira, dimétrica,isometrica de circunferências, curvas e sólidos; etc.)" No 7º ano, isto é, para crianças com 11 e 12 anos.
Não sei como vou dar estas aulas pois não há crianças nem professores que mereçam isto.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...