segunda-feira, 30 de julho de 2012

A propósito da educação física e do desporto na escola


Embora não seja hábito nosso republicar artigos de opinião saídos na imprensa fazemos uma excepção para este, da autoria do ex-responsável pelo Instituto Português de Desporto, José Manuel Constantino, a propósito da educação física nas nossas escolas, tema já aqui abordado. Além do mais é oportuno por estarmos em altura de Jogos Olímpicos:

As medidas anunciadas pelo Governo relativamente à educação física e ao desporto escolar são uma desvalorização da disciplina e dos seus profissionais.

Constituem um verdadeiro retrocesso no ensino público. São um produto de gente culturalmente analfabetizada, para quem saber ler, escrever, contar e falar inglês é suficiente. E são um teste ao valor das declarações retóricas do Governo sobre a importância das atividades físicas e desportivas. E sobre as preocupações relativamente aos modos como os jovens constroem os seus estilos de vida.

A decisão é do Governo. Mas o terreno foi-lhe preparado. Nada disto é filho de pais incógnitos. Para perceber o que se está a passar é preciso voltar atrás. E recordar que há cerca de três décadas, e quando se começaram a acentuar as teses de retorno à matriz identitária do início do século - a pureza da educação física contra os malefícios do desporto e da competição -, houve, nessa altura, quem alertasse para o problema que consistia em desvalorizar a principal matéria de ensino, o desporto, em nome de uma certo purismo académico da educação pelo movimento e da aptidão física sem conteúdo normativo. E sobretudo sem uma prática escolar que correspondesse à retórica argumentativa dos seus profissionais. Houve quem denunciasse aquilo a que conduzia a disciplina, ao mimetizar os tiques de pedagogismo que invadiram o sistema de ensino público, arrastando-a por força da contaminação das chamadas "ciências da educação", para uma lógica de verdadeiro descompromisso social quanto ao carácter prático e utilitário dos saberes e das competências que devia fornecer aos alunos. A obsessão didática assente em crenças de suposto valor científico fizeram com que a educação física e o desporto na escola perdessem a sua alma. E a formação de professores de Educação Física, sobretudo nas ESE, foi qualquer coisa de aterrador. A prazo o resultado só podia ser um: algo facilmente descartável. Porque se pretendia justificar e defender uma disciplina através de uma narrativa de utilidade social que os factos não sustentavam. Ninguém nos podia levar a sério. E com isso se perdeu o caráter conspícuo da educação física e do desporto na escola, enquanto, cá fora, aumentava a procura de atividades físico-desportivas.

A resposta à situação, agora criada, não está na ciência. Ou em enunciar um conjunto de vantagens de que os alunos supostamente beneficiariam e que perdem com a medida anunciada. Bem podem acumular-se objetivos salutogénicos, como a luta contra sedentarismo e a obesidade, que qualquer observação atenta e séria sabe que o contributo concreto da disciplina tal como é ministrada é perfeitamente inócuo. Chegámos aqui, em parte, precisamente por causa deste tipo de boa ciência servida por uma má prática. A resposta a este problema está na política e na capacidade corporativa dos profissionais de educação física perceberem por que razão se chegou a este ponto. E baterem o pé. Mas para isso precisam de mudar de estratégia. E entenderem o que está em jogo. Desde logo para que serve a educação física na escola. E o mal que lhe faz, se a levarmos para algo que não seja o trabalho e o investimento corporal dos alunos orientado para a condição físicomotora, para uma educação corporal com conteúdos culturalmente significativos de que o desporto, o aperfeiçoamento e a performance desportiva são um dos seus elementos preferenciais. Que é o contrário de uma espécie de recreio animado com a presença do professor, que foi aquilo em que muitas aulas se transformaram. O discurso do deixar-andar e do facilitismo, de que a escola, mais do que um local de trabalho, de esforço e de superação, em torno das condutas físico-motoras, devia ser um espaço de ambiente agradável, não constrangedor, facilitador das aprendizagens, respeitando as "necessidades" e "personalidades" dos alunos, não foi um contexto organizacional muito estimulante para respeitar a educação física. Sobretudo quando no clube desportivo ou no health club a coisa, para muitos técnicos, alunos e pais, passou a fiar mais fino.

E onde era preciso apresentar trabalho e resultados. Sei que ao dizer isto me exponho a que caia o Carmo e a Trindade. E que mil razões, científicas e outras, esgrimirão contra estes argumentos. E não sobrarão as críticas. Paciência.

É o que penso e não tenho vontade de o silenciar. É evidente que nestas coisas sempre houve exceções: a de muitos docentes que deram o melhor de si aos alunos e à profissão e que não merecem esta desvalorização. A de instituições de formação que se recusaram a alinhar na moda. Uns e outros têm autoridade moral para falar e denunciar o atropelo ministerial. Mas este é o resultado de muitos que, na ausência de qualquer controlo e exigência profissionais, desvalorizaram o seu objeto de trabalho e com ele a profissão. E esses são, junto da comunidade, os melhores aliados desta decisão governamental. Por muito que digam o contrário. E que agora a contestem.

José Manuel Constantino

Público, 2012-07-28

3 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Pois, esta é outra maneira de falar sobre a educação física e o desporto nas escola.
E não é comum, entre nós, falarmos assim do que quer que seja.
Chega a parecer(-me) que elaboramos o discurso para fugir à clareza, nitidez e mesmo simplicidade das matérias e dos problemas.
Problemas que raramente encaramos a sério, muito menos preventivamente. Preferimos esperar que as situações apodreçam até não lhes podermos fugir.
Nem resolvê-las.

Fartinho da Silva disse...

Não podia concordar mais. Parabéns pela coragem ao autor deste post.

José Batista da Ascenção disse...

Lá, na segunda linha, "escolas" e não "escola".

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