quinta-feira, 12 de julho de 2012
Viagens
Novo texto de Ângelo Alves (na imagen Bulgakov):
Michail Bulgakov, autor, entre outros livros de “Margarita e o Mestre”, no seu livro autobiográfico “Anotações nos Punhos” escreveu sobre a sua vida atribulada de médico estagiário, inexperiente, numa Rússia onde as vias eram quase intransitáveis devido aos nevões, e em que o meio de transporte mais rápido, para estas vias, é a troika. Neste livro narrou um episódio curioso entre ele e Estaline: depois de abandonar a medicina para abraçar a literatura - que acabaria por o conduzir à miséria - sobrevivia num apartamento pobre e decrépito, sem agasalhos para enfrentar o frio impiedoso de Moscovo. Estaline, apesar de ter gostado da peça “Os dias dos Turbin”, chamou-o à sua presença devido a suspeições sobre os seus escritos. Quando Bulgakov viu a guarda soviética invadir o seu apartamento entrou em pânico e, como não tinha sapatos, acabou por enfiar dois pares de meias de lã em cada um dos pés. O ditador, com o seu olho aquilino, reparou nisso e ordenou que todos os seus ministros se apresentassem no palácio. De seguida, pô-los em fila e encontrou uns sapatos à medida do pé do escritor. Por vezes, há nos monstros laivos de bom senso que não se encontram nos liberais.
Estaline foi um admirador do teatro. Todavia, o seu génio duro e sanguinário levou-o a enviar para um campo de trabalhos forçados na Sibéria o poeta Osip Mandelstam, por este escrever poemas ousados contra o regime. Mandelstam, para além de contra-revolucionário, corajoso, insolente, fora judeu, e o nosso ditador odiou-os de tal modo que perseguiu Trostky até à morte. Versos como “Na soviética noite, em seu veludo preto, / no aveludado vazio do universo», «pela absurda e sagrada palavra me atrevo / a rezar na noite soviética», «entre as ervas, ao compasso de ouro do século a víbora respira», «Não somos peixes vermelho - dourados», deixaram Estaline siderado. Durante a transição, para o campo, Mandelstam acabou por morrer. Já Varlam Shalamov sobreviveu à barbárie dos campos estalinistas, entre 1937-56, facto que lhe inspirou o livro “Contos de Kolyma” onde escreveu: “Comment peut-on tracer une route dans la nieve vierge?”. Imagino-me a caminhar esgotado e esfaimado sobre a neve para concluir que é. de facto, uma tarefa desumana. Também Soljenítsin sobreviveu ao horror do Gulag e escreveu “Um dia na vida de Ivan Denisovich”, um romance vulgar, na minha opinião, e com muitas semelhanças com “Recordações da Casa dos Mortos” de Dostoiévski.
As viagens, durante o comunismo, não se ficaram por aqui. Konstantin Tsiolkovsky, que nascera ainda durante o jugo dos Romanov, inventara a propulsão a reacção, o que permitiu a abertura do espaço à Terra. A ditadura do Gulag, das viagens árduas, acabou por lançar as bases para o homem atingir espaço, após Estaline.
Se o comunismo, sobretudo sob as rédeas de Estaline, foi terrífico, a verdade é que, com muitos anos de antecedência, essa doutrina previra a actual crise. No “ABC do comunismo”, Bukharin (que foi executado por Estaline) escreveu: “Que são essas crises? Eis o que são: um belo dia, percebe-se que tais mercadorias foram produzidas em quantidade excessiva. Os preços baixam, porque não há escoamento. Os armazéns ficam abarrotados de produtos que não podem ser vendidos: não há compradores para eles; e, ao lado disto, há operários famintos…»” Ora é isto que está a acontecer na União Europeia. Uma crise económico-financeira, resultante de uma crise de valores. No “Contrato Social”, Rousseau explicara o que acontece durante uma crise: aumenta a actividade do governo enquanto as leis permanecem ou então surge (perigosamente) um chefe supremo para calar as leis. Temo que esse chefe surja da Alemanha. Sobre o modo de evitar as crises Rousseau foi bastante claro: ninguém poderia ganhar demais. É premente uma tentativa de uniformização dos salários em Portugal, o que passará por um corte substancial nos salários dos políticos, ainda mais substancial que o feito por François Hollande na França.
Termino com a viagem do doutor Relvas enquanto discente: um corridinho. O Presidente da República, que deveria pautar-se pela ética, permanece em silêncio, quando há pouco tempo dizia que «a verdade é fonte de confiança…». O neo-liberalismo é o regresso aos tempos de Petrónio: o dinheiro decide na justiça, preto é branco e vice-versa, o dinheiro forma professores, o dinheiro… O pobre, esse, tem que queimar as pestanas.
Ângelo Alves
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