sábado, 7 de julho de 2012

Exame nacional de biologia e geologia – a história repete-se

Texto recebido do professor José Batista da Ascenção, antes publicado no Diário do Minho, que actualiza um outro texto que aqui publicámos.

Ainda antes de iniciar a “safra” habitual de “correção” das provas nacionais de biologia/geologia, disciplina que este ano não lecionei, e mesmo sem ter falado com alunos, já atendia colegas destroçados com o tipo de prova a que, mais uma vez, desde 2004/05, os alunos foram sujeitos.


É impressionante a desconformidade da prova, na sua arquitetura e na tipologia de perguntas em relação ao que os programas (no plural porque a disciplina é bienal) recomendam e que os professores são obrigados a pôr em prática. Nem vale a pena falar no volume de papel: quinze páginas!, sendo que do programa até consta uma parte relativa à exploração sustentada de recursos…

Não se percebe. A biologia, em particular, nunca foi uma disciplina difícil, pese embora a tendência clássica para alguma memorização e uma certa ausência de prática experimental, muito por causa das (más) poupanças que levam a que não haja material de laboratório abundante nem um funcionário que possa dar apoio aos professores nas atividades laboratoriais, como está registado nas atas dos grupos disciplinares, em anos e anos sucessivos. E, quando algum desses funcionários permanece mais tempo em contacto com os professores, e já aprendeu muitas tarefas específicas, logo lhe termina o contrato ou é mudado para outros serviços julgados “mais” imprescindíveis. E volta tudo ao mesmo…

Metidas as (minhas) mãos na massa, logo os (meus) receios se confirmaram. Dói imenso ver que há alunos que estudaram, que até sabem a matéria, mas não conseguem descortinar o objetivo das questões (a que agora se chama “itens”). Parece que quem faz as provas não partilha a ideia de que as perguntas devem ser, tanto quanto possível, curtas, claras e simples (não se confunda simplicidade das perguntas com o grau de dificuldade das respostas).
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Tome-se este exemplo: “A abertura de bacias oceânicas está associada à génese de plataformas continentais, por vezes de grande extensão. Explique de que modo a abertura das bacias oceânicas e o aparecimento de formas de vida possuidoras de exosqueletos rígidos contribuíram para a relativa abundância do registo fóssil em rochas do período Câmbrico”. Muitos alunos sabem a resposta, a qual, de resto, já está contida, em parte, no próprio enunciado (porque os esqueletos são rígidos fossilizam melhor…).
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Mas eu preferia que o que é pedido fosse redigido, por exemplo, assim: “Durante o Câmbrico formaram-se bacias oceânicas extensas e pouco profundas e apareceram e desenvolveram-se seres vivos com determinadas caraterísticas anatómicas. Explique por que ocorrem tantos fósseis em rochas daquele período”. Esta formulação tinha a vantagem de não perturbar os alunos: se a resposta já está na pergunta o que será que é para responder?, imagino eu que alguns se tenham interrogado. E ao mesmo tempo homenageava-se a sua inteligência, que neles é tão abundante e fértil quanto sempre foi.
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Claro que nós temos um problema sério com a (falta) de preparação de muitos alunos em matéria de língua portuguesa, que entendem mal o que está escrito, não compreendem bem a linguagem dos professores nem, por vezes, entendem o que eles mesmo escreveram! Mas não são todos, obviamente. E há mesmo uma fração deles que escrevem lindamente, melhor do que eu escrevia com a juventude deles. Então, por que falham uns e outros nas provas de biologia/geologia? Vejamos:
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- Os professores que agora os ensinam são os mesmos que ensinavam outros há uma dúzia de anos e conseguiam bons resultados;
- Esses professores têm formação de origem e frequentam formação, por vezes paga, e estão a par do que se faz em pedagogia, isto é, estão atualizados;
- Os alunos não são agora menos inteligentes do que outrora foram nem, em termos globais, revelam menos capacidades.

Se calhar, não é muito difícil irmos aos pontos fulcrais do problema:

- Os programas que entraram em vigor em 2003/4 estão mal feitos, especialmente o de biologia do 10.º ano (que mais parece ter sido feito para impedir que os alunos aprendam e que os professores consigam ensiná-los; há mesmo partes dele que nenhum aluno pode ficar a saber…). Redigidos naquele linguajar esotérico a que se chamou “eduquês”, sugerem metodologias e atividades que não preparam nenhum aluno para o tipo de exames que têm vindo a ser elaborados. Note-se que os professores não podem fugir ao cumprimento desses programas;


- Depois há os exames, por vezes com questões erradas, outras vezes com questões fora do âmbito do programa e quase sempre servidos por textos introdutórios que mais parecem armadilhas toscamente redigidas do que elementos de ajuda para os alunos. Há também a insistência em perguntas de opção, o que leva a que, mesmo em situações de exame, os alunos escrevam pouco. Ora, alunos que escrevem pouco rapidamente passam a não gostar de escrever e… a não escrever. Logo, quando é preciso escrever…;

- E há ainda os critérios de classificação que, por vezes, são “estratosféricos”, permitindo que alguém que não respondeu a nada, apenas espalhou (algumas) palavras num pedaço de folha, tenha mais de metade da cotação (ex: oito pontos), e quem respondeu claramente, e se percebe que entende e sabe a matéria, só porque não disse uma palavra que estava na mente de quem definiu os critérios, perca um terço da cotação (por ex: dez pontos). A diferença entre o primeiro caso e o segundo fica-se em… duas décimas! [qualquer semelhança com a realidade deve-se a pura e multiplamente discutida, verificada e testemunhada coincidência].


Estes fatores explicam, em meu entender, que, em várias dezenas de provas que me couberam (mais que os dedos de uma mão), as classificações iguais ou inferiores a nove totalizem cinquenta e cinco por cento do total!

Isto admite-se?

A não ser que me tenham calhado (a mim) os alunos destituídos, o que não acredito.
Para eles e para todos os que estudaram para esta disciplina, o meu abraço de solidariedade. Ah, e outra coisa: a biologia é lindíssima. E também é linda de ensinar e de aprender. Sempre foi.

Acreditem e digam, um dia, aos vossos filhos.
Obrigado.

José Batista da Ascenção

6 comentários:

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor José Batista da Ascenção;

Estive a ler com muito interesse o seu post;

E retive-me em particular na análise do exemplo que nos dá com o intuito de melhor perceber o valor do conhecimento que a pergunta encerra, (período geológico, expansão oceânica, fossilização etc.).

Fiquei no entanto com uma dúvida sobre se está correto o período geológico que refere (Câmbrico).

Esta dúvida surge-me de uma breve leitura que fiz no livro “As Grandes Estruturas Geológicas - J. Debelmas e G. Mascle; F.C.G) pag. 33 capitulo 1.1.5 - A expansão oceânica”.

Por exemplo, o texto diz “1. A abertura dos grandes oceanos (ou a renovação do seu fundo) é relativamente recente e que, ainda assim, não começa antes do Jurássico.”

Ora de acordo com a escala de tempo geológico, são mais de 300 milhões de anos, e outros períodos, a separar o Jurássico do Câmbrico, mais recente o primeiro.

Cordialmente,

Francisco Domingues disse...

A pergunta é óbvia: "Quando é que os professores se unem - não om aquele sindicato obstruso do Nogueira, obviamente! - e propõem ao Min. da Educ. que sejam nomeados professores competentes e com prática lectiva (e, já agora, amigos do ambiente e da poupança em papel!), para a elaboraçao das provas de exame? Para já, convido Batista de Ascenção a resumir o seu texto e a enviá-lo para o Min. É fácil (desculpem as dicas): 1 - Net 2 - Google 3 - Governo de Portugal. 4 - (No fundo) Ministério da Educação 5 - (Lado direito ao fundo) Contactos 6 - Escolha um destinatário (seta) Gab. Ministro 7 - Entrar em contacto 8 - Preencher e enviar o texto (previamente guardado em Ctrl/C) 9 - (No topo) Confirmar envio

José Batista da Ascenção disse...

Engenheiro Ildefonso Dias

Resumidamente: Admite-se que a abertura de grandes oceanos, a partir de um único continente, terá ocorrido diversas vezes, antes e após o Câmbrico. Assim, a deriva continental atual, por fragmentação da "Pangeia", poderá conduzir a um novo supercontinente que voltará a fragmentar-se com abertura de novos oceanos e por aí fora, como consequência da libertação do calor interno da Terra, e enquanto esse calor for suficiente para fazer funcionar o mecanismo...

José Batista da Ascenção disse...

Caro Francisco Domingos:

Tenho defendido, salvo melhor opinião, que as equipas que elaboram os exames deviam ser constituídas por professores que tenham lecionado as respetivas disciplinas há não mais de três anos. Não sei que problemas isso acarretaria, nem qual seria o melhor modo de organização, mas tinha a vantagem de rodar as equipas e evitar certas situações que se tornaram (cronicamente) incompreensíveis.

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor José Batista da Ascenção;

Obrigado pelo seu comentário.

Contudo eu deduzi logo que, quanto às possíveis expansões oceânicas antes do Jurássico, as coisas fossem assim “admite-se que ...” como bem refere; porquanto, ainda na pág. 33 do livro que referencio, os autores escrevem:

“Encontram-mos efetivamente os sedimentos mais antigos na vizinhança das margens continentais, mas eles só existem em alguns locais e não ao longo dos oceanos. Por outro lado, nunca se encontraram sedimentos mais velhos do que o Jurássico (figs.9,10,11).”[as figs. são cartas geológicas do Atlântico, Indico e Pacifico]

Assim, sendo pergunto:

“Para quêm, que sentido faz, ou qual a utilidade de pedir aos alunos que relacionem uma expansão oceânica de um período (Câmbrico) de que nem sequer não há sedimentos? (e foi aqui que apareceu a minha dúvida)”

Reconheço que é o Senhor Professor José Batista da Ascenção quem explicita quando escreve “Durante o Câmbrico formaram-se bacias oceânicas extensas e pouco profundas...”

Cordialmente,

José Batista da Ascenção disse...

Engenheiro Ildefonso Dias

Não tem nada a agradecer(-me).
A explicitação que refere, fi-la a partir do texto introdutório da questão e com base nos critérios propostos para a "correção" da dita questão. Não é portanto da minha autoria...
Os aspetos que o senhor refere constam, por outro lado, em análise curta nesse mesmo texto. Basta consultar a prova.
Agora, o "melhor" não o sabe(rá) o senhor: é que essa matéria (referente às hipotéticas derivas continentais anteriores à que decorre atualmente como consequência da fragmentação da "Pangeia") não faz parte, explicitamente, do programa da disciplina, e é esse que os professores estão obrigados a cumprir!

Mais palavras para quê?

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