segunda-feira, 2 de julho de 2012

A PROPÓSITO DAS ATRIBULAÇÕES DA EDUCAÇÃO FÍSICA


Texto recebido de João Boaventura (na imagem tese de doutoramento sobre exercício físico defendida na Faculdade de Medicina em Paris em 1834 do português G. Centazzi, que estudou em Coimbre e foi o autor do primeiro romance português):

A sociedade lusitana, não satisfeita com o andar da carruagem nacional, ficou agora surpreendida com os ataques contra a educação física por parte do governo, o que significa assistirmos a um ataque que dura desde a fundação de Portugal até aos dias de hoje, pelo que espanta alimentar-se alguma incredulidade sobre o que debaixo dos nossos olhos espantados o Ministro da Educação consegue patentear, ou seja, considerar que a matemática, a menina dos seus olhos, é matéria fundamental no ensino, o que não se discute, mas a educação física – que oxigena o cérebro para lhe permitir fazer os cálculos matemáticos – lhe merece o desprezo, por manifesta ignorância, quando um matemático, embora não seja obrigado a saber tudo, deveria ao menos respeitar o que desconhece, ou procurar esclarecer-se. Razão tinha Helena Roseta quando proclamou que é muito fácil perder a alma quando se está no poder. (O JORNAL, de 18.5.1981)

Admite-se que haja uma hierarquia de valores nas cadeiras curriculares, mas todas elas em paridade na formação dos jovens. Mas como é isso possível se os políticos europeus já falam em países de primeira e países de segunda classe, abotoados com aldrabas de solidariedade, quando esta palavra já os pressupõe? Mas como é isso possível, quando o governo suprime subsídios de férias e Natal a todos os funcionários, mas aplica abonos suplementares de férias e Natal a alguns eleitos, infringindo um direito e violando um dever?

Quem se der ao trabalho de fazer uma análise panorâmica à progressiva regressão da educação física nacional verificará que é concomitante com a progressiva regressão política, económica e social, o que significa haver uma perfeita conjugação entre governo e súbditos porque, soçobrando o primeiro, é matematicamente impossível não se afundarem também os outros por arrastamento.

È muito provável que algumas culpas caibam aos professores de educação física, mas elas resultam do desequilíbrio imposto, entre dominante e dominados, que os obriga a lobrigar novos horizontes para estancar o derrame que os governos sucessiva, teimosa e agressivamente decretam, promulgam e acentuam.

A conquista obtida, em 2004, pela classe para se equiparar a disciplina aos das cadeiras intelectuais e científicas, com as classificações, e pontos escritos, apresentava-se como um recurso demonstrativo de que todas as cadeiras seriam iguais em importância e valia, mas depararam com um imprevisto e inesperado impasse que obliterou o que parecia ter alguma lógica.

Chegados ao final do ano lectivo as expectativas dos alunos para ingressarem na Universidade saíram goradas, porque as classificações (médias, altas ou baixas, mas insuficientes) vinham coarctar-lhes a escolha da carreira, transformando a educação física numa cadeira destinada a obstruir o futuro dos jovens, independentemente de alguma animosidade já prevalecente contra a disciplina.

A celeuma gerada parece não ter tido qualquer reacção positiva, no sentido de encontrar uma saída para um problema gerado pela própria classe. Colocada mentalmente entre duas situações – ou aumentar a nota, ou mantê-la – optou eticamente pela segunda, tomando uma posição de força que o Estado não lhe reconhecia, tanto mais que nas reuniões em que as notas definitivas eram atribuídas, alguns docentes das restantes disciplinas, e face ao currículo de alguns alunos, não tinham qualquer objecção em levantarem a nota, para facilitar a entrada nos cursos superiores.

Perante este quadro, o Ministério tomou a única decisão possível que foi a de decidir que a disciplina de educação física não entrará no apuramento da média final para acesso à universidade, no próximo ano lectivo, mantendo-se o sistema para os que pretenderem ingressar nas universidades de âmbito desportivo, onde aí a classificação já tem um peso valorativo específico.

O sonho realizado da igualizar a educação física com as outras disciplinas desfez-se em espuma, já que classificar ou não classificar têm o mesmo valor. E, se a animosidade do Governo para com a educação física escolar, no caso vertente, e para com o desporto, em geral, se vem patenteando com manifesto desassombro, ao longo de todas as legislaturas, a classe acabou por fornecer ao Governo mais uma oportunidade para ir agonizando a disciplina.

Donde se pode concluir que a educação física, como “instrumento” de trabalho se transformou numa “instituição”, no que sela encerra de preocupações outras, como foram as classificações para se equipararem às restantes disciplinas, com os resultados contraproducentes.

Mas a classe limitou-se a seguir o lema de Hannah Arendt, ou seja, “a luta contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.

João Boaventura

8 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Meu caro João Boaventura

A minha prática ao longo de anos não confirma que tenham sido os restantes professores de cada conselho de turma a, sistematicamente, levantar as notas de educação física para compor as médias dos bons alunos. Tal não foi preciso, a coisa fia mais fino, e, em certas escolas privadas, pura e simplesmente, as "notas" de educação física eram "chapa vinte"...
Também não o acompanho na ideia dos grandes benefícios da realização de testes escritos a educação física. Porque tal implica a necessidade de estudo teórico sobre tipos e regras de jogos, diâmetros e pesos de bolas e dimensões de balizas, que muitos cidadãos consideram sem interesse (eu, por exemplo). Daí a haver aulas de educação física de 45 minutos com os meninos encafuados em salas de aulas a ouvirem preleções pouco motivadoras foi um passo. E o descrédito começou a crescer... E a obesidade a não diminuir. Depois havia ainda a exigência de uns "ténis" só só para a educação física, uma toalha, um champôo, um sabonete, equipamentos caros, e a falta de dinheiro, e um saco a abarrotar de coisas, e os pais a acharem muita despesa e exigência formal...
Mas, para mim, o pior é criar uma disciplina qualquer e colocar-lhe educação como primeiro nome. Porque aí entra a ideologia e a margem para cada um começar a fazer-se "educador". Ora, em minha opinião, um exemplo dispensável de "grande educador" foi Mao Tsé Tung, que passou de moda... Com os meus filhos senti isso mesmo: o que eu queria era que praticassem exercício físico, desporto ou não, e que a escala de classificação fosse sobre os progressos deles mesmos, a esse nível, muito menos que comparações com as performances de outros, e muito menos ainda com eventuais condicionamentos futuros para a frequência de escolas disto e daquilo e ginásios e piscinas, etc.
Eu estava até a ver que a moda pegava, quando alguém com responsabilidades ministeriais começou a falar de educação matemática, em vez de matemática, receoso de que também eu tivesse que ensinar educação biológica em vez de biologia...
E nas escolas de música que os meus filhos chegaram a frequentar tive mesmo o cuidado de perguntar se eram obrigados a disciplinas com o nome de educação musical, coisa em que me sossegaram, porque nessas escolas se ensina música a sério.
É que eu entendo a educação como o resultado de tudo o que aprendemos, pelo que cada um tem a sua educação, multifacetada mas uma só, precisamente aquela que tem.
E sentia-me estranho quando a mim próprio cheguei a perguntar: quantas educações vão ser necessárias para formar um ser humano?
Voltando ao princípio: prática de exercício físico/ginástica/desporto na escola, obrigatoriamente, sim. Xaropadas teóricas de rabo sentado, não. E classificações que se reportem aos progressos (úteis) de cada um. Sem limitarem as opções académicas ou profissionais que cada aluno quer seguir, excetuanto, naturalmente, certas áreas específicas. Sem complexos.
Concordo,portanto, com a decisão do ministério da educação. De resto foi o que ouvi reclamar, ainda recentemente, por um professor de "eduação física", no ato preciso de lhe recomendarem que levantasse uma "nota".
Convém que a escola acalente o sonho sem se esquecer da realidade: obesidade, sedentarismo, falta de espaços (mesmo os recintos exteriores, que as obras recentes nas escolas diminuiram, e muito...) para a prática de exercício físico/ginástica/desporto e de motivação para essa prática.
Para não falar de outras premências...

José Batista da Ascenção disse...

Meu caro João Boaventura

O comentário que acabei de submeter "fugiu-me" antes de registar aquele abraço que faço gosto em lhe deixar.

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor João Boaventura;

Não concordo consigo quando cita Helena Roseta “que é muito fácil perder a alma quando se está no poder”.

E digo-lhe já porquê: Eu aprendi com Bento de Jesus Caraça que um sábio pode não ser um homem culto e um homem culto pode não ser sábio.

Repare que aqui não há nada para se perder; ou se é uma pessoa culta ou não se é. E o que nós precisamos é formar pessoas cultas; só há que perceber isto.

Colocadas as coisas como devem ser, veja agora, que o que diz Helena Roseta não faz sentido.

Dou-lhe um exemplo de pessoa inculta, que pode ler nesta noticia em http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=580317

“O presidente da ARS de Lisboa e Vale do Tejo disse desconhecer os valores pagos, afirmando: «Nós não contratamos enfermeiros, mas serviços de enfermagem»”

É para mim evidente que este senhor administrador não têm as qualidades necessárias para o bom desempenho do cargo, falta-lhe o principal, falta-lhe a cultura.

Cordialmente,

joão boaventura disse...

Caro José Batista da Ascenção

Agradeço a opinião expendida e com as quais concordo inteiramente, e chama-me a atenção para três pormenores que ora atalho.

1. Sobre o aumento das notas das outras cadeiras curriculares foi-me transmitido por um professor que o fez, e considero fiável.

2. Relativamente às classificações, teorias e pontos escritos, também nunca concordei por duas razões:

a) a classe de professores não tem de preocupar-se com a posição hierárquica da disciplina, mas com a funcionalidade do seu mister; e a preocupar-se, fazê-lo através dos instrumentos de que dispõe;

b) a opção pela igualização, e cujos resultados negativos estão à vista, transportava consigo, uma forma de disciplinar a turma, através da nota, e uma forma ostensiva de estar presente no conselho de turma, como se dar notas valorizasse, aos olhos dos outros professores das disciplinas literárias e científicas, a educação física; daqui se poderia concluir que os próprios professores de educação física, não acreditando na validade da própria disciplina, optaram por vesti-la com roupagem que não lhe competia.

Isso anoto no penúltimo parágrafo do post:

"Donde se pode concluir que a educação física, como “instrumento” de trabalho se transformou numa “instituição”, no que ela encerra de preocupações outras, como foram as classificações para se equipararem às restantes disciplinas, com os resultados contraproducentes."

3. Finalmente sobre a "educação física" concordo inteiramente e tenho estado a escrever uma "Teoria Crítica da Educação Física", notas soltas de coisas de que me vou lembrando e outras de coisas lidas, contra a expressão "educação física".

Repare num pormenor curioso. Numa carta aberta dirigida ao Ministro da Educação, subscrita por 26 Professores catedráticos das diversas faculdades formadoras da classe, a propósito do documento “Matrizes Curriculares dos Ensinos Básico e Secundário” que diminuiria a eficiência da cadeira tempo de aulas, nenhum deles é catedrático de educação física limitando-se a indicarem a Universidade onde exercem, o que pode ter algum significado.

Grato pelo seu contributo permanente que nunca falha.

Com um abraço amigo

joão boaventura disse...

Caro Joaquim Manuel Ildefonso Dias

Registo o seu incansável apego a Bento de Jesus Caraça, o que é de louvar, mas seria um bom conselho, se a mal me não leva, que consultasse outras fontes tão excelentes como essa, porque nenhum deles esgota o saber, a erudição, a cultura, a sapiência, além de que enriqueceríamos as fontes do saber que, como sabe, são infinitas.

Quanto à cultura do presidente da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, e como há muitos tipos de cultura, a do dito senhor entra na tipológica classificação de cultura financeira que, como sabe, é a que mais aplicação governativa tem tido, com os resultados que se conhecem.

Obrigado pelo seu contributo.
Cordialmente

José Batista da Ascenção disse...

Caríssimo João Boaventura

Muito aprecio a forma como vai direto e certeiro ao que interessa.
Concordo consigo. Sabe, sempre tive a impressão de que alguns colegas de educação física queriam que a disciplina deles fosse "como as outras". O que me impressiona desfavoravelmente. Pelo meu lado, sempre apreciei a especificidade da minha disciplina, querendo-a diferente das outras e igual a si própria, no respeito por todas as áreas e todos os colegas. E também me lembro dos meus professores de "ginástica" e do muito que gostava deles e da disciplina, precisamente porque era diferente ...
Outra coisa que achei curiosa foi o modo como a miudagem do ensino básico, até ao 9º ano, começou a designar a disciplina: obedecendo talvez à lei do menor esforço começou a poupar o primeiro termo, designando a disciplina pelo segundo, isto é, chamando-lhe... "física". Aos meus próprios filhos, sempre os corrigia quando diziam que iam ter "física" ou preparar o saco de "física". E esse hábito só se atenuou no secundário quando frequentaram a verdadeira disciplina de "física".
Ora, quando qualquer coisa perde identidade, ou ganha uma identidade que nem semanticamente lhe pertence, começa por perder o principal, porque, o que não tem identidade, em parte, é como se não existisse...

Bem gostava de vir a ler a sua "Teoria Crítica da Educação Física". Fico à espera.

Receba um grande abraço.

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor João Boaventura;

Agradeço-lhe o seu comentário, e também o bom conselho que me apresenta; devo no entanto dizer-lhe que o sigo há muito, embora o Senhor não saiba como é natural.

Mas repare, o plano do apego que refere a Bento de Jesus Caraça, não é o plano do seu conselho, é outro, é aquele plano maravilhoso e poderoso que contribui para a formação da personalidade.

Permita-me que eu utilize as palavras que BJC escreveu sobre Romain Rolland, e as utilize, como se fossem minhas para lhe explicar convenientemente o sentido que o Senhor deve dar ao que escreve como apego;

"São muitos os que sentem que lhe devem alguma coisa do que têm de melhor. Muitos, aqueles para quem a sua mensagem de coragem moral, de direitura na consciência e na ação, de cabeça sempre levantada e virada para o lado donde sopra a borrasca representa alguma coisa do que mais nobre encontraram na vida."

Quanto ao que me diz relativamente há existência de muitos tipos de cultura, e à cultura do presidente da ARS, permita-me também aqui citar o Professor Abel Salazar;

"(...) se a cultura lhe não servir para se fazer mais refletido, mais tolerante, mais compreensivo e mais humano, para nada lhe servirá então a cultura:"


Cordialmente,

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Bom dia!


Bela manhã de estudo.

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