quarta-feira, 25 de julho de 2012

RECICLAR A MALÁRIA INTIMAMENTE




Crónica publicada primeiramente em "O Despertar" e em outra imprensa regional.


Reciclar, transformar ciclicamente, é uma característica do Universo.
Longos são os ciclos, no tempo e no espaço, em que os elementos se “transmutam”, interagem, recombinam e “expressam” as propriedades físico-químicas que apreendemos a conhecer.


Talvez as partículas elementares de que se forjam os elementos, os quarks, os electrões e os neutrinos, também tenham os seus ciclos, ritmos característicos de um Universo de massa em expansão no campo de Higgs, desde um microssegundo após o Big Bang.
Reciclar é reencontrar a essência primária, o alfabeto fértil, os blocos construtores de novas arquitecturas.
O nosso planeta, esse “pálido ponto azul flutuando na imensidão do Universo” (como descreveu Carl Sagan ao ver a imagem da Terra que a Voyager 1 enviou ao voltar-se uma última vez para nós, em Fevereiro de 1990), é uma história imensa e intensa de vários ciclos geoquímicos e geofísicos, em que elementos e compostos se recombinam e percorrem o planeta segundo partituras e coreografias específicas, mas ainda não muito bem conhecidas.
Ao apreendermos os grandes ciclos do planeta, abertos e influenciados pelas vizinhanças siderais mais ou menos variantes do nosso sistema solar, verificamos a incontornável interdependência da vida com os ciclos da água, dos compostos de azoto, dos compostos de carbono. Com certeza que outros elementos têm ciclos geoquímicos e geofísicos que também orquestraram funcionalidades no acaso adaptativo aparente da vida.
A vida, tal como a conhecemos, evoluiu neste planeta de coração temperado a ferro e níquel, e superfície composta maioritariamente por diversos compostos de silício, oxigénio, carbono, enxofre, fósforo, entre outros elementos. A vida evoluiu com a “função reciclar” inscrita intimamente no fluxo de matéria e energia que foi e é força motriz para fazer emergir a diversidade.
Vários ciclos e fluxos elementares possuem períodos de tempos de reciclagem de ordem geológica (milhares, milhões de anos) que ultrapassam a nossa longevidade telomérica.
Mas, desanuviemos o olhar do horizonte secular e milenar, e mergulhemos na intimidade de uma célula, na riqueza e densidade molecular que interage em menos de um segundo.
Nestes micrómetros de vida esculpida pelos ciclos geológicos e biológicos, existem instruções precisas, geneticamente preservadas, proteicamente funcionais, para uma eficiente e bioeconómica reciclagem dos blocos moleculares essenciais.
Minimizar as trocas com o meio, reciclar o que já não é bioquimicamente funcional, reobtendo assim os blocos construtivos, os monómeros substantivos.
Só em último recurso se importa nova matéria-prima e isto permite reduzir a energia despendida no transporte membranar. A reciclagem intracelular permite que a célula consiga aumentar o período de tempo em “jejum” extracelular, sem que isso diminua a sua actividade. Por outro lado, o trânsito assim reduzido de substâncias à superfície celular permite que esta seja mais sensível a qualquer nova informação exógena. Assim, este silêncio funcional permite que a célula possa “sentir” uma única molécula e transduzir novas de outra célula, de algum tecido ou órgão da espantosa homeostase fisiológica e bioquímica.
A vida teria de ser muito diferente se a célula não fosse exímia a reciclar. Por exemplo, a cadeias de ácido ribonucleico mensageiro (ARNm) são constantemente sintetizadas para transmitir uma determinada informação genética a partir do núcleo, para construir uma proteína correspondente. Finda a síntese proteica, a cadeia de ARNm é decomposta nos seus componentes, que são sequentemente reciclados para a construção de uma outra cadeia de ARNm, para o transporte de uma nova mensagem. Estes ciclos podem ter períodos de tempo inferiores ao minuto!
As células possuem um complexo sistema de maquinaria proteica, implacável e eficiente, que permite a constante reciclagem de muitos dos diversos componentes celulares já não funcionais.


Uma das proteínas com papel central numa reciclagem é uma enzima que recicla alguns blocos constituintes dos ácidos nucleicos (ADN e ARN). Denominada Hipoxantinaguanina fosforiboxiltransferase (HGPRT, sigla inglesa), esta enzima “recupera” as bases purinas que resultaram da degradação de cadeias de ARNm que já cumpriram a sua função, e liga-as a moléculas do açúcar ribose. São assim recicladas nos respectivos nucleosídeos e nucleotídeos, blocos constituintes de uma nova cadeia de ARNm.
Deficiências na HGPRT impedem ou diminuem o seu papel “reciclante”. Isto consubstancia o princípio molecular de diversas doenças como a síndrome de Lesch-Nyhan, doença hereditária caracterizada por retardamento mental, comportamento agressivo, automutilação e insuficiência renal. Outra perturbação é a conhecida por “gota”, bioquimicamente manifestada por um excesso na produção de ácido úrico e que potencia dolorosas perturbações nas articulações.
A HGPRT é ainda crucial para o parasita que causa a malária, assim como para outras doenças similares. Estes parasitas dependem daquela enzima para obterem os necessários nucleótidos, uma vez que perderam a capacidade de os sintetizar de novo dentro da célula hospedeira.


Assim, a HGPRT é um excelente alvo para o desenvolvimento de novas drogas para atacar o parasita da malária. E de facto, investigadores estão a estudar as diferenças nas estruturas tridimensionais das HGPRT humanas e dos protozoários parasitas do género Plasmodium, que causam a malária, no sentido de sintetizar drogas específicas só à forma da HGPRT do parasita (ver, por exemplo, artigos recentes aqui e aqui).


Reciclar ou não reciclar poderá então definir o destino do parasita e do hospedeiro infectado.
Reciclar é assim vital à vida, como o é também para a biosfera que a acolhe.
E no princípio, reciclar é viver.

António Piedade

3 comentários:

regina disse...

Obrigada por mais este belíssimo texto
Regina Gouveia

João Pedro Calafate disse...

Faço minhas as palavras de Regina Gouveia!
Um abraço António.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Reciclar é de acerto, humano!

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...