quarta-feira, 21 de setembro de 2011
PRÓLOGO AO GRANDE INQUISIDOR
Eis o Prólogo intitulado "Um momento de fadiga ou desconforto" do novo livro de João Magueijo, que acaba de sair na Gradiva. Trata-se de uma biografia do físico italiano Ettore Majorana (na figura), um génio desaparecido misteriosamente.
"Vossa alteza: a doença do meu filho foi causada pelos seus nobres estudos."
DE UMA CARTA ENVIADA A MUSSOLINI PELA MÃE DE ETTORE MAJORANA
Quando eu tinha uns 20 e poucos anos e era ainda um aprendiz de cientista, trabalhei com regularidade como secretário científico do Centro Ettore Majorana, na Sicília. Era sempre no pino do Verão, altura em que um sol brutal abrasa a terra e é impossível não nos apaixonarmos pela beleza exuberante da Sicília, de um esplendor que só pode ser descrito por superlativos, na paisagem, nas gentes ou na comida: belo na Sicília nunca é bello, é bellissimo, assim como perigoso não é pericoloso, é pericolosissimo.
Foi numa destas «viagens de trabalho», por assim dizer, quando estávamos meia dúzia sentados ao ar livre a deitar abaixo mais uma garrafa de Corvo Rosso, que conheci Ettore. Actualmente trato-o por tu; acompanhou-me ao longo de toda a minha carreira, como uma sombra de que nunca consegui libertar-me, recordando-me constantemente a sua história.
É natural que o destino de Ettore tenha vindo à baila numa das muitas noites límpidas de céu estrelado que passámos ao ar livre: afinal, estávamos a trabalhar num centro baptizado com o seu nome. Os nossos esforços eram generosamente compensados — em dinheiro — pelo Centro Ettore Majorana. Por exemplo, não teríamos de pagar por aquela garrafa de vinho: o centro
tratava disso graciosamente. O mesmo acontecia com as refeições nos restaurantes, as entradas em discotecas e até com os toldos na praia mais próxima.
No lado bom da Sicília não fica bem oferecermo-nos para pagar as contas: pode ser uma ofensa grave. Ora nós não queríamos de maneira nenhuma ofender alguém*.
Por tudo isto, Ettore estava sempre connosco, pelo menos em espírito. Não me surpreendeu saber que, além de físico de grande talento, fora um siciliano, nascido na cidade de Catânia. Tinha sido um dos físicos nucleares do famoso grupo de Enrico Fermi, os «rapazes da Via Panisperna». Era um prodígio, capaz de ultrapassar toda a gente, mesmo Fermi, nos cálculos mais difíceis. De facto, Fermi comparou Ettore a Isaac Newton e Galileo Galilei numa escala em que ele próprio ficava apenas na segunda categoria, e em que, embaraçosamente, se esqueceu de incluir Einstein na primeira.
Mas a história não acaba aqui; na realidade, apenas começa. Hoje em dia, Ettore é mais conhecido por outras razões: a sua saída de cena em grande estilo. Se não fosse isso, ninguém se interessaria pela sua vida. Ettore seria apenas mais uma vítima do mito de que os cientistas são criaturas racionais e sem emoções — e não seres humanos. Seria conhecido pelas suas teorias acerca dos neutrinos e pelas suas contribuições para a física nuclear e a mecânica quântica, mas nada mais.
Tirando um certo golpe de teatro.
Na noite de 26 de Março de 1938, tinha Ettore 31 anos, embarcou num navio em Palermo, na Sicília, e desapareceu. Deixou atrás de si uma série de cartas de suicídio e sabia-se que andava deprimido há pelo menos cinco anos, mas o que impede que o caso seja arquivado é o seu corpo nunca ter sido encontrado e ao longo das décadas seguintes ter sido aparentemente avistado em várias ocasiões. A acrescentar a isto, além do passaporte, levava consigo o equivalente a 70 mil dólares em dinheiro de hoje. Nestes termos, é difícil negar que se tratava de facto de um ser humano.
Ao longo de todos estes anos têm sido propostas muitas teorias para explicar o que lhe aconteceu. Há quem diga que se refugiou num mosteiro na Calábria, mas também há quem nos assevere que fugiu para a Argentina. Outros ainda dizem (ou antes, sussurram) que é capaz de se ter metido em sarilhos com a Máfia.
Os teóricos da conspiração pensam que foi raptado por uma grande potência com interesse nos seus conhecimentos nucleares. Mais para as bandas da demência, há quem prefira a teoria do rapto por extraterrestres, ou mesmo um salto para lá da quinta dimensão. A verdade é que ninguém sabe.
* Corria o boato de que as notas usadas pelo centro estavam manchadas de sangue. Isto é simplesmente falso. Eram sempre de um asseio irrepreensível.
João Magueijo
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