terça-feira, 30 de março de 2010

Resumir e morrer a seguir

Texto de João Boavida, antes publicado no Diário As Beiras, na sequência de um outro sobre o mesmo tema.

Já sabíamos da sua existência em livrinhos, em cadernos que andam por aí há anos. As grandes obras, que os alunos do secundário são obrigados a ler, há muito que são resumidos e transformados em esquemas e perguntas para que aprendam umas respostas e tenham boas notas nos exames. Mas agora fia mais fino. Há resumos das obras que se podem meter nos telemóveis, de modo que já nem é preciso lê-los, basta levar os telemóveis para o exame. Os alunos andam satisfeitos, muitos pais, que, como se sabe, só querem o bem dos filhos, não vão contra e os editores da novidade descobriram nova fonte de rendimento. A tecnologia é uma maravilha!

Mas, claro, é mais uma ratoeira que se aplica à juventude. Porque os grandes livros não se resumem, lêem-se. E os melhores, várias vezes ao longo da vida. Só depois se resumem. Só na leitura está o seu valor educativo, a sua fonte de conhecimentos e prazer, a seu factor de humanização e maturidade.

O resumo sem leitura é um embuste e uma armadilha. É mais uma maneira de desenvolver e alimentar o faz de conta e a parlapatice dos que falam de tudo sem saber de nada, multiplicando os superficiais satisfeitos, incapazes para qualquer coisa de útil.

Mas a razão para ler as grandes obras, dos nossos autores e da literatura universal é ainda mais forte e funda. A literatura é um magnífico factor de maturidade, de prazer e de usufruição de beleza. E a beleza é redentora de misérias e estimulante de humanidade.

O acesso à beleza abre à nossa grandeza potencial, porque a beleza sublima e transcende; sublima o que há de pior em nós, o que não conseguimos resolver e nos angustia e degrada, e, por este meio, nos liberta, faz crescer e amadurecer. Os livros são simultaneamente refúgio e libertação, companheiros nas horas solitárias, multiplicadores infinitos de paisagens, ambientes, lugares e épocas. São os nossos educadores sentimentais.

Dão-nos a conhecer pessoas, afectos, aventuras, grandezas e misérias, situações infinitas e mundos sucessivos que nos ensinam, entusiasmam, alegram e entristecem, nos projectam, pela imaginação, para onde nunca estivemos nem estaremos, nos levam e conhecer pessoas em que nos revemos, com quem falamos, de que ficamos amigos, que nos entusiasmam ou comovem, mesmo quando mortas há séculos. Situações onde nos reconhecemos, nos reencontramos, compartilhando com outros sofrimentos e alegrias, como se fôssemos irmãos. Com os livros a nossa família cresce até ao infinito, mas sem conflitos, nem zangas por heranças mal repartidas.

João Boavida
Imagem: Meninas a ler, de Pablo Picasso

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Doutor Boavida:
pelo rumo que isto leva,
que haverá que não se deva
esperar em nossa vida?!

JCN

joão boaventura disse...

Ou como diria a Virgínia Vitorino no final de um dos seus sonetos:

... ... ...
E que me resta ? Uma amargura infinda:
ver que é, para morrer, tão cedo ainda,
e que é tão tarde já para viver.

Anónimo disse...

Enquanto cedo for para morrer
e tarde já para gozar da vida,
aproveitemos pois para reler
nossa obra literária preferida!

JCN

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