Sobre as “fracturas morais” é bom não concluir logo que elas resultam das perfídias modernas, embora também seja. Nós até podemos dizer que a antiga moralidade assentava em bases claras, e que a nova é mais confusa. É assim, mas só em parte. O mesmo se pode dizer de outras “variáveis” do nosso tempo. A verdade, por exemplo. Poderemos pensar que ela era um conceito simples e claro e que facilmente sabíamos quem falava verdade ou quem mentia, quem merecia confiança e quem não era de fiar. Era deste modo, pelo menos, na infância, quando se tratava de saber quem ratara no pudim; o mundo parecia então dividir-se ao meio, quando apanhados nalguma, caindo-nos a culpa em cima com todo o peso. Depois, com o crescer da idade e do conhecimento as coisas complicaram-se.
Nesta questão começa-se sempre pelos sofistas, ou a arte de argumentar a favor ou contra uma tese, hoje, e contra ou a favor do oposto amanhã. E da verdade ser conforme o ponto de vista, o dia e a hora. E, claro, de acordo com quem lhes pagava. Mas veio Sócrates, no século V antes de Cristo, e pôs as coisas no seu lugar com uma descoberta determinante para o futuro da filosofia e da cultura ocidentais. E o que é que descobriu Sócrates? Percebeu o que era uma ideia e como funcionava, compreendeu que a sua natureza era abstracta e a verdade dela universal. Só assim era possível o entendimento entre as pessoas, porque não dependia das impressões de cada um. Há coisas que todos sabemos o que são e outras que dependem dos pontos de vista e dos sentimentos. Uma coisa é a opinião, cada um tem a sua, outra os conhecimentos seguros que valem para todos.
O nosso grande problema é que quase tudo hoje funciona com base na opinião, que confundimos com a certeza, e a nossa verdade com a verdade mesma e toda, nua e crua. E, pior ainda, misturamos "direito à opinião" com opinião sem direito, isto é, ignorante, criamos uma prodigiosa nuvem de perdigotos morais, meias verdades, meias mentiras, meias tintas, invencionices, malandrices, tolices, que se cruzam, chocam, sobrepõem e substituem constantemente tornando quase impossível encontrar a verdade.
Entretanto, para complicar, desde 1532 que Nicolau Maquiavel ensina os políticos a serem modernos. Não veio ensinar o padre-nosso aos curas, porque estes já o sabiam, mas veio dar-lhes uma legitimidade que passa por cima da moral, criando, digamos, uma nova dimensão para a verdade. E é assim que temos outra vez Sócrates em cena. E uma multidão com ele, de cá e de lá, por todos os lados, porque a verdade tem uma razão política à parte. Ou a política tem uma razão moral que a moral não entende, mas que é muito forte, e sempre foi. O pior, porém, é que, com a liberdade e a massificação, aquilo que na Renascença era arte para príncipes passou a ser usado por muitos outros poderes, pequenos e grandes. Por alguma razão se diz que o poder corrompe. Talvez, mas é verdade para a política em sentido restrito e em sentido lato. Mais uma vez Portugal é um bom teatro com profissionais e amadores de todas as escolas e companhias; em suma, demasiados actores a fazer o papel do político e a usar, sem limites, as artes maquiavélicas.
6 comentários:
O "príncipe electrónico",
Cria-se o “príncipe electrónico” em substituição do “príncipe” de Maquiavel e do príncipe
moderno de Gramsci. Este novo príncipe, não é hegemónico, nem soberano, nem representa
um partido político, é uma entidade ubíqua, presente em todos os níveis da sociedade no
âmbito regional, local, nacional e mundial. È um intelectual activo e orgânico das estruturas
e blocos de poder (jornalistas, fotógrafos, cineastas, programadores, actores, redactores, autores,psicólogos, sociólogos, relações públicas, especialistas em electrónica, informáticos e cibernéticos,globalistas e outros profissionais da indústria da manipulação da consciência).
Cumpts,
Madalena
Maquiavélico é tudo
que se afasta do normal
quanto ao poder sobretudo
no que respeita à moral.
JCN
Em quem detém o poder
nada existe de pior
do que a falta de pudor
na maneira de o exercer.
JCN
Confunde-se de igual modo ponto de vista com verdade o que alguns creêm meramente mas nem sempre condizente com uma fé que condiz com o que não é visto, mas jamais contra o que é visto, ou seja, contra os fatos.
Nestes conceitos acaba-se por se misturar elementos facilmente delineadores não somente da verdade e mentira, mas certo e errado, bons e maus cujo um dos infelizes responsáveis é esse tal de Nicolau Maquiavel. Mas deverás, moral se restringe exclusivamente ao que tem um porque justificavel perante a razão a se complementar em equílibrio proporcional, não se anular ou contradize-la o que compreende o imoral. Simples assim.
Simples será... mas não menos confuso! JCN
Gerson,
Gostei muito do que escreveu ( em prosa quase profética ou digno de um profeta pos-moderno), no entanto, não compreendi a última parte "não se anular ou contradizer o que compreende o imoral. Simples assim." Porque será imoral aquilo que se anula ou se contradiz ?! a vida não será , em grande parte, uma contradição?!
Cumpts,
Madalena
Enviar um comentário