quinta-feira, 18 de março de 2010

Os velhos, os doentes e os reformados que paguem a crise

“O Estado é um ogre filantrópico” (Octávio Paz, 1914-1973).

Recupero do meu post “Francisco Louçã, o pregador” (10/09/2009), os dois parágrafos iniciais:

“O recente debate televisivo entre José Sócrates e Francisco Louçã (RTP1, 8/09/2009) fez-me recuar aos tempos da minha juventude. Mais precisamente aos saudosos filmes de “cowboys” em que aparecia a personagem de um pregador que, na praça pública, tentava convencer os ouvintes da bem-aventurança que aguardava as suas almas no paraíso que ele defendia com a convicção da sua 'própria fé'.

Neste caso, o pregador da coboiada nacional que passou nos ecrãs televisivos foi personificado por Francisco Louçã, o festejado líder do Bloco de Esquerda, quando no referido debate defendeu que as despesas com a saúde - consequentemente, as consultas médicas em consultórios privados - deixassem de contar para efeitos de desconto no IRS”.


Esta tomada de posição pública de Francisco Louçã, perante o olhar e audição atentos dos telespectadores, obrigou-me a escalpelizar, com paciência de Job, as cento e doze páginas do Programa Eleitoral do Bloco de Esquerda" para aí me deparar, na respectiva página 22, com a seguinte medida: “Diminuição das deduções com seguros e despesas de saúde para os escalões mais elevados”.

Com base em fonte alheia, surge-nos agora o Partido Socialista, em medida draconiana, a fazer-se defensor desta ideologia do Bloco de Esquerda quando, no respectivo "Plano de Estabilização e Crescimento", defende um tecto de dedução de despesas com a saúde em função do escalão de IRS. Aliás, o Partido Socialista demonstra até mais “coragem política” que o Bloco de Esquerda, por não se limitar à diminuição das deduções em seguros de saúde. Ou seja, o PS propõe, pura e simplesmente a sua abolição.

Mas numa coisa são ambos concordantes (mal seria se dois partidos conotados com a esquerda discordassem em tudo!) quando se referem a escalões mais elevados de IRS, embora em conceito vago por abrangente de uma zona intermédia do 3.º escalão até ao novo escalão de 45% para quem aufira mais de 150 mil euros anuais, isto é, em moeda antiga trinta mil contos. Finalmente, poderia parecer, à primeira vista, que se pretendia fazer justiça fiscal neste país. Nada mais falso!

Senão, vejamos com a atenção que merece: gestores “que ganham por dia quase tanto como o que ganha um trabalhador com o salário mínimo num ano” (Correio da Manhã, 17/03/2010) vão passar a ser taxados por um escalão de IRS de 45%, ainda que mesmo a título provisório para não pesar demasiado, e por muito tempo, nas suas bolsas!

Fazer com que as classes de pequenos ou médios rendimentos se munam de uma simples máquina de calcular para contabilizar as despesas com saúde que não ultrapassem um determinado plafond terá, para além da imoralidade da medida, um efeito perverso em termos de contenção de gastos públicos: determinados medicamentos que se deixem de tomar e consultas que se deixam de fazer, em devido tempo, darão azo a despesas futuras com a saúde dos contribuintes bem mais onerosas e de efeitos, por vezes, funestos.

Versejou JNC, num comentário ao meu post “Um tecto para as despesas da saúde?”(15/03/2010): “Não passa o PEC afinal/de um processo abreviado/de dizer que em Portugal/adoecer é PECADO”. Assim como era culpa nascer deficiente na Antiga Grécia, chegando-se a ponto de Platão e Aristóteles defenderem “o lançamento de pessoas nascidas disformes do aprisco da cadeia de montanhas Taygetos”.

Por vezes, os filmes tidos com ficção científica são uma realidade transposta para um futuro mais ou menos próximo. Alguns cinéfilos ainda devem estar recordados que, pouco mais ou menos quatro décadas atrás, passou um filme nas telas nacionais (cujo título se me esbate nas “brumas da memória”), interpretado por esse monstro sagrado da 7.ª Arte, Edward G.Robinson (fotografia deste post).

O enredo era mais ou menos este (possíveis leitores poderão ajudar a reconstituí-lo com mais precisão). Depois de um holocausto nuclear, a humanidade ficou carenciada de meios de subsistência para os seus sobreviventes em termos de alimentação proteica. Numa determinada altura, em pesado cenário nocturno, passavam camionetas empilhadas de cadáveres de velhos que se destinavam a matéria-prima de fábricas que os transformavam numa espécie de bolachas proteicas para alimentar as populações mais jovens. Enquanto comia uma suculenta maçã (julgo que conservada em câmara frigorífica), numa espécie de eutanásia, a vítima, antes da injecção letal que lhe tiraria a vida (passe a redundância), era reclinada em confortável leito enquanto perpassavam pelos seus olhos saudosos em tela panorâmica a vida anterior e verdejante do planeta pejado de árvores de fruto nas margens de um regato de águas límpidas ao lado do qual corriam elegantes gazelas.

Bem sei que os avisos que antecedem certos filmes nos advertem que qualquer semelhança com a realidade é pura ficção. Todavia mesmo da mera ficção pode extrair-se a moral da história porque, como escreveu o festejado neurobiólogo chileno, Humberto Maturano, “nada do que fazemos ou pensamos é trivial ou irrelevante, porque tudo o que fazemos tem consequências no domínio das mudanças estruturais a que pertencemos”. E essas possíveis mudanças assumem uma responsabilidade acrescida pela implicação que possam vir a ter na vida dos cidadãos, mormente naquilo que lhes é mais valioso, a saúde, que não pode nem deve ser moeda de troca num chamado “Plano de Estabilidade e Crescimento”.

Na opinião de reputados economistas e fiscalistas, plano com pouca ou nenhuma perspectiva de crescimento!

8 comentários:

noax disse...

Não é que não concorde com o conteúdo do post, mas ver este blog de eleição ser conspurcado por assuntos tão mundanos, até arrepia.

Alexandre V

Anónimo disse...

Acha vossemecê que os problemas que afectam os idosos, os doentes e os reformados... de baixos ou ínfimos rendimentos... são desprezíveis minudências, muito abaixo da sua induzida craveira mental?!... Onde é que vossemecê deita fora os seus chinelos de quarto?... Humanize-se, homem! JCN

Rui Baptista disse...

Caro(a) noax:

Para não passar por ingrato, agradeço a primeira parte do seu comentário em que escreveu: “Não é que não concorde com o conteúdo do post”.

Por outrom lado, pelo arrepio que lhe causou e pelo direito que lhe assiste ao contraditório,não podia deixar de responder, agora, sem qualquer agradecimento, como é óbvio, à segunda parte do seu contraditório comentário.

E com isto, não pretendo, de forma alguma, como escreveu Rebelo da Silva (na introdução de ”Os fastos da igreja”), pôr em causa “as asserções audazes dos mundanos” que me assaca, atrevendo-me a pensar que apreciou o conteúdo do meu post mas que lhe desagradou a respectiva redacção.

Todavia, porque o tema assume o direito à liberdade de expressão, consagrado nas verdadeiras democracias e repudiado pelos estados totalitários, tentarei fazer melhor para uma outra ocasião que se me proporcione, mesmo que “por um mato/Árduo, difícil, duro ao humano trato”, referido por Luís de Camões no Canto X de “Os Lusíadas”.

"Sans rancune",
Rui Baptista

Anónimo disse...

Trata-se do filme "Soylent Green" ("À Beira do Fim") de 1973, último filme de E.Robinson.

http://en.wikipedia.org/wiki/Soylent_Green

À beira do fim é como parece que nos encontramos agora...e nem foi preciso esperar até 2020, que é a data em que decorre a acção do filme...

Dervich

Rui Baptista disse...

Caro Dervich:

Muito grato pela preciosa lembrança do nome do filme que referencio no meu post. E pela rectificação de a temática do filme não dizer respeito a uma época pós-nuclear, mas a um aumento exponencial da população de Nova York.

Chegou a vez de eu me "arrepiar". 2020 é um ano muito próximo e, pior do que isso, em que embora não acha carência alimentar nos países mais desenvolvidos, em Portugal assiste-se já a uma dramática restricção de medicamentos para populações anos-luz dos faraónicos rendimentos dos gestores nacionais. Disso mesmo nos dão conta os jornais do dia quando escrevem haver estratos populacionais que deixam de tomar medicamentos por carência económica.

Num recente inquérito semanal, realizado pela revista Visão (de 18 a 24 de Março deste ano)manifestaram-se 73% no descrédito sobre o Programa de Estabilidade e Crescimento apresentado pelo governo:votos contabilizados até às 12h do dia 15.

Ou seja, quando pouca água ainda tinha corrido debaixo da ponte do descontentamento nacional,

Um abraço

Rui Baptista disse...

Na 2.ª linha do 2.º § do meu comentário a Dervich pousou uma arreliadora gralha:onde está escrito "acha", emendo para "haja".

José Meireles Graça disse...

"Assim como era culpa nascer deficiente na Antiga Grécia".
Sabe, meu caro Rui Baptista, ele há uma minoria de cidadãos que pôs neste Mundo filhos deficientes. Não é, em princípio, culpa deles, nem de ninguém (se bem que nos anos 40 do séc. passado houvesse uma teoria médica que culpabilizava os pais dos autistas - enfim). Agora imagine um deficiente profundo que, pela natureza da doença que o aflige, gera consideráveis despesas médicas e de assistência; e imagine também que os pais, por terem rendimentos que o permitem, podem proporcionar a esse filho a melhor vida que é possível para quem tem a deficiência que ele carrega; considere ainda que essas despesas excedem a soma da dedução específica para filhos naquela condição com a dedução para despesas de saúde: estes pais vão pagar IRS sobre a parte das despesas com o filho que não forem dedutíveis ao rendimento colectável. Isto é assim agora; e com as reduções será pior. E a minha dúvida é só uma: Estes pais são culpados por terem originado aquela vida, por terem rendimentos relativamente altos ou por despenderem mais do que outros pais que, por insuficiência de meios, não têm a sorte de poder agir do mesmo modo? Táqui um, como se diz, trilema. E só o chamo à colação por, salvas as devidas proporções, as coisas, mudando muito, mudarem menos do que parece. Cordiais cumps.

Rui Baptista disse...

Meu caro JMG:

Agradeço-lhe reconhecido o seu comentário por dois motivos:

1.º Pelos esclarecimentos nele prestados
2.º Por os perspectivar com o conhecimento da matéria sob o ponto de vista profissional de um médico.

Cordiais cumprimentos

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