segunda-feira, 15 de março de 2010

Um tecto para as despesas na saúde?

“A cura está ligada ao tempo e às vezes também às circunstâncias” (Hipócrates, 460 a.C.- 337 a.C)

Em declarada crise económica que assola grande parte do planeta e num pequeno país como Portugal, em que há um evidente desequilibrio entre as despesas públicas e as receitas fiscais, tomam-se medidas de desenrascanço de apertar o cinto que pouco afectam quem usa suspensórios!

Desta forma, em vez de se cortarem em esbanjamento de dinheiros públicos (finalmente e pelos vistos, pelo menos, o TGV e o Aeroporto de Alcochete encontram-se em banho-maria) tenta-se cortar em despesas com pouco significado positivo para os cofres estatais e muita expressão negativa no que diz respeito à justiça social.

Refiro-me ao Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) , no que concerne à criação de um tecto limitativo para deduções de despesas da saúde para efeitos de IRS que levou a que o ministro Teixeira Santos tenha optado por não fazer comentários sobre a sua possibilidade (Correio da Manhã, 25/11/2009). Infelizmente, duvido que este silêncio prenuncie boa notícia e muito menos “a eloquência dos anjos” de que nos fala Camilo.

Aliás esta indefinição sobre o futuro fiscal das famílias portuguesas da classe média dá preocupação acrescida ao cidadão comum a quem a velhice trouxe doenças e desânimos muito bem retratados numa uma personagem de um dos livros de Arnaldo Gama e não em vivência própria do autor pela sua morte prematura aos 41 anos de idade: “Para isto é que eu vivi! Malditos anos! Maldita velhice!”

Como se nós tivéssemos um Serviço Nacional de Saúde de boa saúde (ora, num direito que assiste a qualquer cidadão de procurar o que mais lhe convém na vida, assiste-se à hemorragia de muitos dos melhores médicos dos hospitais públicos para o sector privado), Francisco Louçã, dirigente do Bloco de Esquerda, em debate televisivo com José Sócrates (RTP1, O8/09/2009), defendeu a ideia peregrina de que as despesas com consultas médicas em consultórios privados deviam deixar de contar para efeitos de desconto no IRS.

Sabendo nós que os recibos dos médicos constituem uma parcela importante do total que é taxado a estes profissionais para pagamento de IRS, a não passagem desses recibos constituiria uma perda evidente de rendimentos para a fazenda pública criando uma forma de economia paralela que vigora em muitas profissões que não passam recibo porque o cliente assim não o exige por não ganhar nada com isso e não desejar amontoar papelada para lançar no lixo.

Mas atenhamo-nos apenas ao caso dos medicamentos. Actualmente são deduzidos para efeitos de IRS 30% das despesas feitas nas farmácias com determinados medicamentos. Ou seja, quem tem uma saúde de ferro beneficia do dom precioso em não gastar um cêntimo em medicamentos. Por outro lado, quem tem uma saúde frágil que anda associada, frequentemente, a achaques da velhice, como sejam, por exemplo, graves doenças do foro reumatismal, em que, para apaziguar dores insuportáveis, o paciente é obrigado a encharcar-se em analgésicos, gastando quantias que fazem perigar, ainda mais, o seu periclitante equilíbrio financeiro em busca de uma dignidade humana que não se curve amparada por uma bengala para não abdicar da sua ascendência bípede de milhões de anos.

A ser levada avante esta medida, um doente de magros ou remediados cabedais de vencimento ou esquálida reforma que, porventura, tenha uma gripe ao atingir o referido tecto terá que deitar contas à vida e pedir a Deus para que uma possível pneumonia não lhe bata à porta na pior altura. Ou, nessa infelicidade, empenhar os anéis para ficar com os dedos, ou mesmo sem os anéis e os dedos, como se a própria vida “não fosse o último hábito que se quer perder porque é o primeiro que se toma”, como escreveu Alexandre Dumas Filho.

Tratar atempadamente da nossa saúde não é o mesmo que adquirir um bem que se possa dispensar ou adquirir mais tarde quando a vida corre melhor! Atento à situação de verdadeira crise económica em que a grande maioria dos estratos sociais deste país mergulharam, e que não deve ser paga por aqueles que cumprem com grande sacrifício os seus impostos - como escreveu Peter Vries, “ os ricos não são como nós: pagam menos impostos” –, manifestou-se, dias atrás, publicamente contra esta medida o CDS/PP ao declarar publicamente que rejeita o PEC “se o Governo não recuar no corte das deduções fiscais em Saúde” ("Correio da Manhã", 13/03/2010)

Ir buscar umas migalhas no cotão de certos bolsos que a actual crise virou do avesso e não em ordenados escandalosos, sinecuras principescas e chorudas contas bancárias é o mesmo, como nos ensina a sabedoria popular, que "poupar no farelo para gastar na farinha", promovendo o desaparecimento de uma classe média com reformas que se degradam de ano para ano, necessitadas, como tal, de cuidados fiscais intensivos que lhes transmita e à economia portuguesa um novo e desejável alento para sair do pântano em que se encontram mergulhadas.

Num abreviar de razões, a solução deve ser procurada numa ainda mais apertada malha que taxe o cidadão com sinais exteriores de riqueza de quem “cabritos vende e cabras não tem”, segundo os seus reais rendimentos e haveres e não sobre aquilo que ele dolosamente possa declarar serem os seus hipotéticos rendimentos e haveres. A isto, sim, chama-se, com toda a propriedade, justiça fiscal!

8 comentários:

joão boaventura disse...

Já Jorge Amado dizia que "a velhice é uma chatice".

Cabe no texto, e a propósito, para optimizar o pessimismo que aí vem, esta anedota de José Salazar sobre medicina ou saúde, e que respiguei do semanário humorístico "O Moscardo" (n.º 4, 17.06.1913):

- Rapaz, um grog. Você que toma?
- Ar !
- Você está irritado, doente... Quer que vá lá a casa?
- Como amigo sempre que queira...
- Vamos... que mal lhe fez a medicina?
- De toda a medicina só se aproveita um capítulo.
- Qual?
- O da higiene, que é a arte de evitar os médicos...
- Você está medonho ! Olhe, também Bocage nos crivou de epigramas e afinal caiu-nos nas mãos...
- Por isso morreu !...

Como a higiene no século XVIII era a puericultura, sabe-se a higiene começa logo que o homem põe, os pés ou a cabeça neste mundo. E porque sabe, logo que nasce, em que mundo é que vai entrar, dá um grande berro de revolta.

Mas já é tarde. Por isso resta-nos tratar da saúde, para tratarmos do dinheiro. Tal como tenho cuidado da saúde do meu cão, não por ele, mas salvaguardar a minha.

Relativamente à ideia de Louçã aconselhar Sócrates a não considerar, para efeitos de IRS, as consultas médicas privadas, ela visava apenas testemunhar que o serviço de saúde tinha obrigação de ser mais eficiente para evitar a fuga do acesso aos centros médicos oficiais. Mas Sócrates prefere descontar no IRS porque assim vai encobrindo a ineficiência do serviço de saúde oficial.

ingenuo renitente disse...

Caso não saibam, informo que no PEC, em adenda secreta, está prevista a proibição da "Classe Média" poder adoecer enquanto a Crise e o PEC, estiverem em vigor.

Quanto aos outros, podem adoecer á vontade ....

Anónimo disse...

Para João Boaventura:

Gosto de ler seus escritos
com certo grau de ironia
que é a prova, entre eruditos,
de quem tem categoria!

JCN

Rui Baptista disse...

Meu Caro João Boaventura:

Francisco Loução não aconselhou Sócrates ”a não considerar, para efeitos de IRS, as consultas médicas privadas”. Era uma medida que fazia parte do seu programa eleitoral! Sócrates, como bom aluno que parece ter sido, limitou-se a seguir o conselho de Sócrates (não dele próprio, mas do filósofo): “Se alguém procura a saúde, pergunta-lhe primeiro se está disposto a evitar no futuro as causas da doença: caso contrário, abstém-te de o ajudar”.

Ou seja, para se continuar a ter direito às deduções de IRS na saúde em vigor em anos transactos, para este ano, e outros que se avizinham, deverá ser exigido ao cidadão o boletim de vacinas, o não apanhar sol em demasia por causa das doenças de pele, comer com moderação e beber, ainda, com maior moderação,dormir oito horas por noite ("deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer"), etc.

Enfim ser um totó, um misógeno, um hipocondríaco, e sei lá que mais. Só desta forma serão deduzíveis, a 100% e em sede de IRS, medicamentos que nunca se tomaram!

Quanto a Francisco Louçã acreditar que o Serviço Nacional de Saúde dá resposta atempada e de qualidade é tão ingénuo como acreditar no pai Natal que desce pela chaminé sem sair enfarruscado nas longas e alvas barbas: as listas de espera para cirurgias, em que o tempo de espera faz toda a diferença, para consultas de oftalmologia, etc., aí estão para demonstrar a sua eficiência.

Mas o verdadeiramente lamentável de tudo isto é haver partidos ditos de esquerda socialista (estarei a cometer alguma heresia, ao classificar o Bloco de Esquerda nesta família política?) defenderem medidas que atingem a classe média de uma forma impiedosa quando o CDS/PP se mostra publicamente contra elas.

Aliás, uma rectificação necessária: em Portugal já não há uma classe média: existem uma classe pobre, uma classe menos pobre, uma classe rica e uma classe mais rica."Malhas que o Império (Socialista) tece"...

Como vê, meu Caro João Boaventura, em política nem sempre o que parece é!

joão boaventura disse...

Com o versejar que Deus me deu
Vou agradecer seu elogio
Que a meu propósito teceu
Mas nele nunca me refugio.

Vai saber já a minha razão:
Depois de dar condecoração
Luís XIV já folgazão
Do facto tirou a conclusão:

“Um ingrato fiz já de certeza
E sem dúvida cem descontentes.” (*)
Por isso lhe peço a fineza
Não repita, seja anuente.
_____
(•) A frase original de Luís XIV foi:

“Faço um ingrato e cem descontentes”

Anónimo disse...

Caros:

As pessoas não tem culpa de adoeçer, ou melhor, ninguem deseja adoecer, se vão ao sns é porque precisam!

O sns deve ser gratuito e universal, mas mesmo gratuito e universal, sem as taxas moderadoras e outras aldrabices, que moderam as taxas se há uma necessidade de ir ao sns?
Neste caso há duplo pagamento, porque há partida ele está já a ser pago por nós!

A questão é desde há décadas tem havido ataques ao sns para o extinguir, para ajudar os pobrezinhos dos melo e outros negociantes da saúde.

Se o serviço nacional de saúde dá prejuizo? ora dá, vai dar e deve dar! O objectivo não é dar lucro porque quando for estará a excluir os pobres!
Agora que é mal gerido isso é outra conversa, claro que deve ser melhor gerido, nada contra!

Os médicos fogem do serviço nacional de saúde porque ao fazerem as horas mínimas por lei a mais não são obrigados, se os querem lá mais tempo e a trabalhar mais e a terminar com lista de espera paguem mais e metam na exclusividade, porque ninguém trabalha de borla!

A questão do pec, "plano de espezinhar o contribuinte" serve agora para esganar a classe média se ainda existe e os pobres das asneiras que os políticos fazem!

Hoje em dia os políticos conseguem saber em tempo real como estão os dinheiros publicos, receita, despesa, défice, então não sabiam que se fossem enterrar o dinheiro nos amigos privados ele não chegava?

Quer dizer, ajudaram os bancos, então não era a economia capitalista que funcionava e o mercado que se regulava?, os pobres quem os ajuda? o dinheiro dos contribuintes foi para o buraco e agora para o tapar vai-se pedir mais aos mesmos!

Os ricos que paguem a crise, deixem falir a porcaria dos bancos privados, do sistema bolsista, off shores, hedge founds e coisas do género e a crise acaba.
Esses tipos têm o dinheiro escondido e querem mais!

Agora cortam na saúde, depois será no quê? até quando aguentaremos isto? Até quando haverá pecs e não precs?

Anónimo disse...

A graça que Deus lhe deu
na forma de versejar
nunca a mim me pareceu
grandemente singular.

Por isso lhe recomendo,
na melhor das intenções,
que em prosa vá discorrendo
nas suas intervenções.

Muito ingrata é a poesia
como via de expressão:
para ter qualquer valia
precisa de afinação.

Desculpe lá, meu Amigo,
este desabafo meu,
que me atrevo a ter consigo
porque não sou... fariseu!

JCN

Anónimo disse...

Não passa o PEC afinal
de um processo abreviado
de dizer que em Portugal
adoecer é PECADO!

JCN

MANIFESTO PARA O ENSINO E APRENDIZAGEM EM TEMPO DE GenAI

  Por Maria Helena Damião e Cátia Delgado Assinado por académicos de diversos países do mundo, foi publicado no passado dia 29 de Novembro, ...