Tem sido notícia o suicídio de um aluno de doze anos e de um professor de cinquenta e um. É o tipo de notícia que esperaríamos que viesse de fora e não de dentro deste país, que temos por pacato.
A razão apontada é a violência a que tanto um como outro estariam sujeitos nas suas escolas.
Não posso, obviamente, afirmar que essa tenha sido a razão determinante, mas também não ficarei admirada se se vier a concluir nesse sentido.
Digo que não ficarei admirada porque, desde há muito tempo, admitia que, mais cedo ou mais tarde, este tipo de tragédias começassem a acontecer. Na verdade, estando frequentemente em contacto com escolas, não posso deixar de perceber os sinais evidentes do problema global, enorme, assustador que envolve toda a educação formal, desde o ensino básico até ao superior.
Eu diria que o primeiro aspecto desse problema, que dita todos os outros, é de cariz filosófico, e tem a ver com os fins da educação, aqueles que uma sociedade elege como os melhores para preparar as novas gerações, e que se traduz numa pergunta tão simples como esta: para que vão as crianças e jovens à escola?
Os discursos, sabe-se, dão respostas variáveis, mas, no seu conjunto, fazem passar a ideia de que as crianças e jovens vão à escola, não para adquirirem conhecimentos nem para desenvolverem a inteligência, mas sim para, autonomamente, aperfeiçoarem competências (das quais, numa certa gíria pseudo-pedagógica, não se esclarece o significado nem o sentido). E é para as competências sociais que se tende, com o argumento de que isso lhes proporcionará a integração em contextos vários.
Trata-se de um aspecto que não podemos desligar das contingências políticas e sociais, pois são as primeiras que o acolhem e legitimam, e as segundas que lhe dão força. Por exemplo, a pressão para se produzirem rapida e eficazmente diplomas, independentemente do valor que tenham, não sendo aplaudida por todos, é tolerada por muitos.
Deste aspecto não podemos excluir também o pensamento epistemológico dominante, no qual todo e qualquer saber disciplinar e axiológico se relativiza, se subjectiviza e, portanto, se faz equivaler, não havendo outra possibilidade a não ser tomar cada sujeito como o referencial das e para as suas próprias aprendizagens, que se afirma terem de decorrer dos seus interesses e necessidades e de serem significativas, em função da sua individualidade.
Este quadro traça as opções curriculares que se tomam ao nível do ministério e de cada escola: os conteúdos (que tendem a chamar-se temáticas) são aligeirados, tornados práticos, com ligação à realidade concreta dos alunos; os objectivos (que tendem a chamar-se competências) são vagos, circulares, devendo ser sempre negociados ao nível de turma, de escola, de comunidade; os métodos (que tendem a chamar-se experiências de aprendizagem) são os da resolução de problemas com recurso à pesquisa que permita a descoberta e a construção do conhecimento pelo próprio aprendiz; a avaliação, que deverá ser holística, compreensiva, dará conta do evoluir do aluno, nunca assentado no teste de factos e procedidementos armazenados na memória.
De tudo isto deriva o papel activo, sempre activo (em que sentido!?), do aluno, pois trata-se de alguém emancipado, que sabe o que quer aprender e determinar os caminhos para o conseguir, chegando, nessa medida, a opções e opiniões que têm de ser respeitadas. Correlativamente, o papel do professor, é o de (mero) animador, acompanhante... e sempre com dinamismo, jovialidade e cara alegre...
São estes os ingredientes (todos patentes em inúmeros documentos que por aí circulam, sem grandes sobressaltos) que tornaram a escola num lugar impossível, tanto para alunos como para professores.
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8 comentários:
Obrigada pelo texto. Reconheço nele uma atitude necessária e urgente. É passo a passo que se faz o caminho.
MC
Esta é a herança da "escola de Sócrates e MLR":
- concentração de alunos dos 10 aos 20 em grandes escolas;
- alunos que saem de casa às 6 da manhã e regressam às 7 da noite (tornam-se crianças quase "sem" família);
- alunos obrigados a estar na escola;
- professores enxovalhados em público, desautorizados na escola e sem possibilidade de impor disciplina;
- directores eleitos conta os professores (crítérios polícos) e não um conselho executivo formado por professores;
- Estatuto do aluno que protege os "selvagens"...
Bravo, Professora Helena Damião.
Eu só perguntaria, com base no penúltimo parágrafo do seu texto (para tornar mais clara a ironia): se o aluno é alguém emancipado, que sabe o que quer aprender e determinar os caminhos para o conseguir, para que são necessários os professores?
De resto, não vejo que mais haja a acrescentar.
Sendo certo que o nosso amigo Fartinho da Silva, que tem, felizmente, um sentido tão recto, atento e agudo, bem pode trazer mais algum aspecto pertinente à colação.
Por mim, permita apenas que acrescente: OBRIGADO
E que confesse, com alegria: há no meu país gente que não deixará morrer a dignidade da Escola. Seguramente.
Recentemente passou na RTP1 uma reportagem sobre o protesto dos professores que leccionam em Timor Leste e a queixa fundamental destes professores é precisamente esta: os conteudos curriculares «light» e a falta de objectivos e respeito pelos alunos que querem aprender e não apenas passar tempo na escola. A isto soma-se o abandono de muitos destes alunos (adultos) destas aulas que são uma fantochada...
E.
“Há uns tempos li nos jornais que um grupo de professores encontrou por acaso um inquérito que foi enviado nos anos trinta a um certo número de escolas de todo o país. Incluía um questionário sobre quais os problemas mais graves que aconteciam nas escolas. E encontraram também os formulários de respostas, que tinham sido preenchidos e devolvidos dos quatro cantos do país. E os problemas mais graves que os professores apontavam eram coisas como conversar nas aulas e correr pelos corredores. Mascar pastilha elástica. Copiar os trabalhos de casa. Coisas desse género. Então eles policopiaram uma data de exemplares e enviaram-nos para as mesmas escolas. Passados quarenta anos. Bom, algum tempo depois receberam as respostas. Violações, fogo posto, homicídio. Drogas. Suicídios. E eu ponho-me a pensar nisto. Porque muitas das vezes que eu digo que o mundo está a ir direitinho para o Inferno ou alguma coisa do género, as pessoas limitam-se a fazer-me um sorriso e dizem-me que eu estou a ficar velho. Que este é um dos sintomas. Mas cá no meu entender, se alguém não vê a diferença entre violar e assassinar pessoas e mascar pastilha elástica é porque tem um problema muito mais grave do que o meu. Quarenta anos também não é assim tanto tempo. Talvez os próximos quarenta anos façam acordar algumas pessoas da anestesia em que caíram. Se não for demasiado tarde.”Cormac McCarthy (in Este País não É para Velhos)
Cara Helena Damião,
Nem mais!
Será Portugal um país estruturalmente pacato ou apenas circunstancialmnte anestesiado?!... Cheguem-lhe a mostarda ao nariz... e logo se verá! JCN
Cara Helena Damião:
Tudo o que disse no seu post é sensato e pode ser confirmado.
Todavia, há uma coisa que não entendo. Quando na Física, na Química ou na Biologia ocorre uma fraude os físicos, os químicos e os biólogos criticam publicamente os autores da fraude - isto é, outros físicos, químicos e biólogos. Essa crítica não ocorre apenas a propósito de fraudes mas também de afirmações injustificadas e demasiado arrojados à luz dos factos conhecidos. O exercício dessa crítica é uma característica fundamental da ciência - e, aliás, de qualquer outra prática intelectual séria e racional (como sucede, por exemplo, com a filosofia).
No entanto, na área das Ciências da Educação nunca vemos isso suceder. A Helena Damião, cuja competência e seriedade é óbvia, escreve frequentemente textos críticos de ideias que outros pedagogos defendem. No entanto, costuma fazê-lo sempre em termos gerais, sem apontar o dedo, sem criticar autores e estudos em concreto. Em concreto, não denuncia fraudes nem afirmações injustificadas. Este seu texto é um bom exemplo disso.
Ora, esses pedagogos (que têm nome e obra publicada) quando defendem as suas erradas e nocivas ideias (acerca das competências em detrimento dos conteúdos, do ensino centrado no aluno, das desvantagens dos exames nacionais, etc.), costumam invocar estudos, investigações alegadamente científicas. Por exemplo: no jornal Público de hoje uma jornalista cita acriticamente uma legião de "especialistas" que com base em supostos estudos afirmam como sendo uma evidência trivial o carácter contraproducente das reprovações.
Para quem, como eu, está no terreno as conclusões desses estudos parecem muito implausíveis. Contudo, não tenho nem tempo nem conhecimentos específicos que me permitam avaliar a cientificidade de tais estudos. Quando me interesso por um tema de física, biologia ou economia, a minha dificuldade de sozinho emitir juízos de valor e de avaliar a qualidade de um qualquer estudo ou reflexão é socorrida pelo facto de nessas áreas existir debate público e racional, com a consequente crítica (concreta e directa) das ideias falsas ou menos justificadas. Mas, como disse, tal não sucede na área dos estudos sobre educação.
O que a Helena Damião escreve sugere que também tem reservas em relação a alguns desses estudos e reflexões. Sendo assim, porque é que não “imita” os físicos, químicos e biólogos e aponta o dedo a autores e estudos em concreto?
Por exemplo: os estudos acerca das reprovações são mesmo sérios? Não terão sido esquecidas algumas variáveis? Nos inquéritos e entrevistas não haveria perguntas tendenciosas? Os seus resultados serão generalizáveis? Etc. Uma análise desse género da sua parte ajudaria muitos professores, que ficam perplexos sempre que comparam o discurso dos responsáveis pela política educativa e de alguns pedagogos com a realidade que conhecem. (Essa discrepância ficou à vista com os recentes suicídios ligados à violência escolar.)
Talvez os especialistas referidos nos artigos do jornal Público deixassem de ser sempre os mesmos e as considerações feitas menos monocórdicas.
Com os melhores cumprimentos.
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