Do livro recentemente saído na Editorial Bizâncio "Einstein e Oppenheimer - o significado do génio" de Silvan Schweber, transcrevemos um excerto sobre a liderança do projecto Manhattan, em Los Alamos, que conduziu à construção das primeiras bombas atómicas:
"As recordações de muitos dos físicos que participaram no tempo de guerra no projecto de Los Alamos transmitem a sensação de que, em retrospectiva, encaravam essa experiência como se se tivesse tratado de uma utopia. Tinham acreditado que se encontravam numa corrida frenética para salvar as democracias ocidentais da possibilidade de a Alemanha nazi obter primeiro uma tal arma, visto que os trabalhos lá tinham começado dois anos antes. Sabiam estar envolvidos num empreendimento que, se bem-sucedido, mudaria o curso das relações humanas. E, após o teste Trinity, a primeira explosão nuclear da Historia, esperavam que as bombas atómicas assegurassem uma paz duradoura. A explosão teve lugar a 16 de Junho de 1945 em Alamogordo, na Jornada del Muerto, uma faixa de 140 quilómetros de deserto na região central do Novo México. Oppenheimer foi o autor do nome do teste, Trinity. Mais tarde, recordou-se vagamente de ter em mente, na altura, o poema de John Donne que começava por “Batter my heart, three-person’d God”. Mas alguns sugerem que terá escolhido o nome tendo presente a trindade divina hindu de Brahma (o Criador), Vixnu (o Preservador) e Xiva (o Destruidor).
Los Alamos foi algo de único pela enorme concentração de indivíduos de primeira categoria que demonstraram o que se podia conseguir trabalhando em conjunto com objectivos muito bem definidos. Tratou-se, na verdade, de uma colaboração sem paralelo na sua intensidade, uma tarefa de cooperação levada a cabo por pessoas fora de série que se lhe entregaram totalmente e com a maior determinação, consagrando-lhe as suas ideias, experiência e energia de forma consumada, livre e altruísta. A intensidade com que se entregaram resultou num esforço total muito superior a soma das partes. E todos partilharam o crédito pelos resultados obtidos.
Embora nem todos partilhassem o estado de espírito de exaltação que permeara Los Alamos, e que Bethe e Rabi descreveram nos seus elogios a Oppenheimer, tornou-se claro apos o teste Trinity que, sem a direcção magistral de Oppenheimer, Los Alamos poderia não ter produzido bombas atómicas a tempo de serem utilizadas no Japão. Daqui decorre pois que o crédito que recebeu foi bem justificado, mas também que carregou sobre os seus ombros uma responsabilidade maior pelas consequências da criação destas armas — e, consequentemente, porventura também um fardo de culpa maior. Embora geograficamente isolado — e talvez devido a esse isolamento—, Los Alamos criou aquela situação rara nas vidas dos indivíduos e das comunidades em que há um sentimento de ligação a algo de muito superior a si próprios. Durante os poucos anos que aí passaram, muitas dessas pessoas — e em particular muitos dos físicos — sentiram-se totalmente preenchidos. Na verdade, uma atmosfera de realização total permeou todo o empreendimento, transformando-o numa espécie de acto mágico e consagrando-o nas mentes dos que ai estiveram.
Oppenheimer — em grande medida responsável pela criação desta sensação de realização e pela sua manutenção ate a conclusão do projecto— personificou a integração dos aspectos multifacetados do empreendimento: o teórico e o experimental, o mundano e o idealista, o individual, a comunidade e a nação. Thorpe, na sua magistral biografia sociológica de Oppenheimer, deixou bem clara a dinâmica na construção da complexa organização de Los Alamos e a modelação simultânea do papel e autoridade de Oppenheimer como seu director carismático. Tratou-se de um processo recursivo. A ordem organizacional, a atribuição de autoridade, o papel e identidade carismáticos de Oppenheimer foram propriedade emergentes das interacções sociais e profissionais de cientistas, técnicos, militares e todas as outras pessoas reunidas para executar a missão militar de construir a bomba atómica, e da interacção de Oppenheimer com todos eles. Thorpe realça os papeis complementares de Oppenheimer e Groves em Los Alamos e a natureza do relacionamento e interacções que mantiveram. Groves era, de facto, a pessoa a frente do projecto; toda a autoridade emanava dele. Mas, não obstante o seu próprio estilo militar de gestão, autoritário e intimidativo, e as severas restrições impostas à circulação da informação, Groves deu apoio ao estilo de liderança de Oppenheimer, com a sua ausência de coerção, a sua preferência pelo consenso, as suas tentativas de defender as normas académicas e a abertura, bem como o seu propósito de criar a maior colegialidade possível entre todos os cientistas, engenheiros e técnicos, de harmonia com a estrutura hierárquica e orientada para a missão do laboratório.
Groves fê-lo por ter percebido que a lealdade do pessoal civil relativamente a Oppenheimer os estimulava a trabalhar na bomba e a respeitar a sua (de Groves) própria autoridade. Oppenheimer emergiu como o líder, aceite e admirado por todos, do projecto da bomba atómica devido a sua capacidade para dominar e manter sob foco permanente todos os aspectos do empreendimento. Isto granjeou-lhe admiração e respeito dos chefes de divisão e de grupo sob a sua alçada, e também a admiração e respeito de Groves. Esta mestria permitiu-lhe gerar discussões frutuosas e imprimir coesão ao processo de tomada de decisões. Oppenheimer possuía uma capacidade sem paralelo de encontrar o máximo denominador comum entre pontos de vista opostos, de formas que pareciam resolver os conflitos. Foi o “conhecimento sintético de Oppenheimer, juntamente com a percepção das suas qualidades morais, [que] lhe permitiram reconciliar partes desavindas, e o tornaram o porta-voz “natural” de um consenso subjacente, embora ainda não concretizado” (Thorpe, 2006). É, portanto, um erro atribuir o êxito de Los Alamos exclusivamente a Oppenheimer. Do mesmo modo que responder “maestro” à questão “O que determina um grande agrupamento musical?” implica um erro de atribuição do líder, o mesmo se aplica a Los Alamos.
(...) O êxito de Los Alamos deveu-se ao facto de se ter podido reunir as seguintes condições:
1. Nas suas diversas divisões, pontuavam indivíduos com um impressionante domínio das competências tecnicas necessarias. O laboratório era constituído por sete divisões, cada uma das quais com tarefas bem definidas. Cada uma destas era responsável pela produção de resultados verificáveis, em relação aos quais os seus membros assumiam responsabilidade colectiva.
2. Todo o empreendimento estava animado de um propósito mobilizador.
3. As várias divisões operavam num contexto organizacional bem definido. Além disso, a sua estrutura, e a dos grupos que as integravam, era estimulante: o processo de execução das tarefas optimizava a capacidade dos membros individuais para trabalharem juntos de forma interdependente. Mais do que isso, a experiência de grupo contribuía para o crescimento e bem-estar pessoal dos seus membros.
4. Existia um contexto organizacional que proporcionava um grande apoio a todos os membros: recursos fundamentalmente ilimitados eram canalizados para o projecto. Além disso, a possibilidade de requisitar os materiais e recursos humanos necessários a cada momento — pelo facto de o general Leslie R. Groves estar a frente da operação — possibilitava a manutenção do calendário e um ajuste no tempo muito exigente para o projecto."
quarta-feira, 31 de março de 2010
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