terça-feira, 3 de novembro de 2009

Gripe, ciência e o senso-comum

Em torno da gripe de que se fala surgem questões epistemológicas de grande interesse. Uma delas é comparação que se de vez em quando se esboça nos meios de comunicação social ou nas conversas de café, entre a validade da opinião do «indivíduo comum» e as advertências informadas dos especialistas.

F. N. Kerlinger, investigador interessando nas concepções que formamos acerca do que se passa à nossa volta e no modo como, em função delas, nos comportamos, estabelece cinco diferenças entre senso-comum e ciência. Percebê-las ajuda-nos, certamente, a tomar decisões razoáveis em relação à nossa saúde.

“Há quem defenda a ideia de que a ciência e o senso-comum são parecidos. Nesta linha de pensamento, seria legítimo afirmar que a ciência é uma extensão sistemática e controlada do senso-comum, já que este último, tal como refere Conant (1951), consiste numa série de conceitos (...) que se revelem satisfatórios, em termos práticos, para a humanidade. Todavia, estes conceitos (...) poderão ser seriamente distorcidos no campo da ciência moderna (…) — e particularmente na área da Psicologia e da Educação (…)

A ciência e o senso-comum diferem nitidamente em cinco aspectos (…).

Em primeiro lugar (…) embora qualquer «indivíduo comum» utilize «teorias» e conceitos, ele fá-lo habitualmente de uma forma pouco estruturada (porque é «moda»). Além disso, é normal que aceite explicações fantasiosas para os fenómenos naturais e humanos. Uma doença, por exemplo, poderá ser encarada como um castigo pelos pecados (...). Os cientistas, no entanto, formulam princípios teóricos de uma maneira sistemática (…) e sujeitam ao teste empírico diversos aspectos dos mesmos. Além disso, têm consciência de que os conceitos que utilizam, ao constituírem abstracções humanas, poderão estar mais ou menos próximos da realidade.

Em segundo lugar, os cientistas testam sistemática e empiricamente as suas teorias e hipóteses. Os «não-cientistas» também testam hipóteses, mas fazem-no de uma maneira que podemos considerar «selectiva» (...). Consideremos o seguinte estereótipo: «os indivíduos de raça negra têm tendência (inata) para a música». Se as pessoas acreditarem nisso, podem facilmente «verificar» a concretização da sua crença, ao verificarem que muitos músicos são de raça negra (...). Os cientistas sociais (…) tentam distanciar as suas investigações dos seus próprios preconceitos (...).

Uma terceira diferença radica na noção de controlo. Na investigação científica (…) o cientista tenta, de uma forma sistemática, descobrir as variáveis que constituem possíveis «causas» dos efeitos em estudo (…). Os «indivíduos comuns» (…) raramente se preocupam em controlar sistematicamente as suas explicações para os fenómenos observados. Fazem, de um modo geral, poucas diligências para controlar fontes estranhas de influência. Tendem, em vez disso, a aceitar as explicações que estão mais de acordo com as suas «ideias feitas». Se, por exemplo, acreditarem que condições miseráveis de vida conduzem directamente à delinquência, tenderão a dar pouca atenção a este problema em áreas em que as pessoas gozem de um nível de vida bastante elevado (...).

Outra das diferenças (...) é, talvez, menos evidente. Foi dito antes que o cientista está constantemente preocupado em estudar as relações entre os fenómenos. O mesmo acontece com os indivíduos, que fazem apelo ao senso-comum para encontrar explicações para esses fenómenos. Mas a diferença radica no facto de o cientista tentar estudá-los de uma forma consciente e sistemática, ao passo que o «indivíduo comum» o faz de um modo confuso, não-sistemático e não-controlado. Este último agarra-se, por vezes, à ocorrência fortuita de dois fenómenos e associa-os imediatamente como causa e efeito (...).

Uma diferença final (...) repousa nas diferentes explicações que são dadas aos fenómenos. O cientista, na sua tentativa de explicar as relações observadas, afasta-se cuidadosamente daquilo que se designa por «explicações metafísicas». Uma explicação metafísica é simplesmente uma afirmação que não pode ser testada (empiricamente). Dizer, por exemplo, que as pessoas são pobres e miseráveis porque Deus assim o deseja (…). Isto não implica que os cientistas devam necessariamente desprezá-las, negando-lhes qualquer veracidade ou significado.

Em suma, a ciência dedica-se ao estudo das coisas que podem ser publicamente observadas e testadas. Se certas afirmações ou questões não respeitam estes critérios, elas não podem ser consideradas apropriadas para a investigação científica.”

Referência bibliográfica:
- Kerlinger, F. N. (1986). Foundations of behavioral research. New York: Holt, Rinehart and Winston (Tradução do presente texto: Cristina Vieira).

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