terça-feira, 3 de novembro de 2009

A armadilha

Texto de João Boavida (ainda) sobre o novo livro de José Saramago, Caim, que, independentemente da sua valia literária, desencadeou uma discussão sempre interessante acerca da interpretação de textos antigos:

Saramago caiu na armadilha armada por ele mesmo. Meteu-se a aprendiz de feiticeiro e saiu-se mal. Não só pela literatura em si, mas também por tudo o que sobra dela. Mas não o reconhece e é pena.

Literariamente o livro de que se fala é fraco. No estilo que se lhe tornou característico a partir de Levantado do Chão e Memorial do Convento, mas muitos furos abaixo do seu melhor. Eu já disse muito bem dele e portanto posso agora dizer – e não é mais que uma opinião – que este livro é menor em termos literários. Tem alguns bons achados mas, como já alguém notou, parece mais o guião dum filme, e mesmo considerando-o uma novela picaresca à moda setecentista, falta-lhe dimensão literária, profundidade, em suma qualidade. As comparações com Voltaire, Laurence Sterne, por exemplo, ou mesmo Jan Potocki, são altamente elogiosas para Saramago.

De certo modo os comentários que provocou valem mais que o livro, “é demasiado barulho para nada” (Cristóvão Aguiar e outros). Se a provocação extra obra foi para vender, conseguiu o objectivo. Mas não lhe fica bem, pela idade, pelo estatuto e pela obra feita. Como dizia o outro, o diácono Remédios: “não havia necessidade”. Por outro lado, é o tipo de comentários que revelam ou leviandade ou falta de cultura, ou, quem sabe, algum problema mal resolvido com a divindade. O que não admira porque problemas mal resolvidos com a divindade todos temos, mesmo não o reconhecendo.

Fazer uma leitura literal de alguns factos do Antigo Testamento, com intervenções directas de Deus aqui e ali em diálogo com os homens é o mesmo que acreditar que na Ilíada os deuses que aparecem e desaparecem intrigando e influenciando, sem preocupações de justiça, andaram a combater na Guerra de Tróia.

Os que entendem que Deus é uma criação dos homens, uma projecção das suas carências, limitações e ânsias, e será o caso de Saramago, deviam ter algum cuidado. Porque o espírito humano ao criar a ideia de Deus meteu-se numa alhada de que não se consegue libertar pois ele mesmo a alimenta. Se é no espírito humano que está a origem e o fim do enredo o processo é circular e não tem saída. Se foi o espírito humano que chegou à ideia de Deus, e não Deus que desceu ao espírito humano, o “mal” está neste, e quer o afirme quer o negue o debate, vivo ou latente, é constante.

É por isso que me parece que Saramago caiu numa armadilha. Não resistiu à tentação dos anti-clericais do século XIX e de todos os ateus militantes e ignorou as inumeráveis obras que em todas as épocas se viraram para a Bíblia e a estudaram e sobre ela escreveram e escrevem. Tem direito a questionar tudo o que nela vem, claro, mas não o pode fazer de maneira elementar, pondo de parte toda a perspectiva histórica, a contextualização e a infindável exegese a que deu origem.

O problema é demasiado profundo e envolvente para ser resolvido de uma penada. Além disso, desta vez, ao contrário do que aconteceu com O evangelho segundo Jesus Cristo, faltou envergadura ao objecto produzido. Saramago tinha uma única maneira de se sair bem desta missão: era fazer um livro de grande qualidade e suficientemente belo para vencer os desafios teológicos que levanta. Só a qualidade literária teria possibilidade de vencer este combate, de superar airosamente uma densidade bíblica de milhares de anos. Ficando-se pela mediania em termos estéticos, a razão, se alguma havia, esfumou-se. Como também já foi dito, lembra A velhice do Padre Eterno, que, apesar da mestria de Junqueiro, envelheceu mais em cem anos que o Padre Eterno em seis mil.

João Boavida

10 comentários:

Jose Simoes disse...

Que direito tem de dizer que todos temos problemas com as divindades. Como se pode ter problemas com uma coisa que, a existir, nunca se manifesta.

O problema é com a crença nas divindades. Não pelo facto em si, mas pelo elevado sofrimento que isso causa à humanidade. Agora como no passado.

José Simões

rt disse...

A qualidade ou falta de qualidade dos escritos de Saramago não está em causa nesta polémica. Nem sequer o acerto ou desacerto das suas opiniões sobre política, nem a influência que essas opiniões têm sobre outras coisas que ele diz. O que está em causa não é sequer a justificação ou falta dela das opiniões de Saramago sobre religião e sobre a Bìblia.

João Boavida falhou completamente no que diz.

O que está em causa é se se pode criticar a Bíblia tal como se critica outra coisa qualquer. Pode-se criticar a Bíblia e receber em troca contra-argumentos (como se se receberia se se criticasse a teoria da relatividade, a teoria de Darwin ou a teoria da justiça de J. Rawls) ou só se pode criticar a Bíblia e receber de volta insultos e ataques pessoais?

talvez seja útil dizer que não gosto nem dos livros nem das opini~pes políticas de José Saramago e que acho mau para Portugal e para a língua portuguesa que ele tenha ganho o prémio Nobel da Literatura.

Ricardo disse...

Bolas, que tanto texto anti-Saramago já enjoa. Basta!

De tanto acusar de leviandade e banalidade na análise, os opositores de Saramago esquecem-se que estão eles mesmo a ser extremamente parciais e levianos na análise que fazem do seu livro e das suas declarações.

O ponto principal, como disse e muito bem a leitora anterior, é se criticar a Bíblia é tão legítimo como criticar outra coisa qualquer. Quando se insulta o Benfica, alguém vem dizer "o senhor acabou de insultar seis milhões de portugueses"? Quem aceita que isso não faz sentido tem também que aceitar que não se ofende ninguém pessoalmente por se colocar a nú o absurdo que a Bíblia literal é. A Bíblia não está acima de crítica, nem acima do humor, nem acima do insulto. A menos que achemos que a religião tem que ter um papel social especial - mas então os anti-Saramago que o afirmem abertamente!

E só por grande desonestidade intelectual é que os delatores do José Saramago podem vir tentar argumentar que a análise que faz é simplista por ser literal. Parece-me de loucos que se compare seriamente, por exemplo, a Bíblia à história de Ulisses, como já se viu neste blog. A menos que no dia 25 de Dezembro se comemore o nascimento de Ulisses. E na Páscoa a sua morte e ressurreição.

Sejamos sérios. Os cristãos levam a Bíblia a sério e à letra. Se não o Antigo Testamento, pelo menos o Novo. Quantos cristão convictos são cristãos sem a crença da existência histórica de Cristo, e todos os milagres que lhe são atribuídos? E não me venham com exemplos teístas Einsteinianos. Einsteinianos são meia dúzia, cristãos "normais" são milhões. E acreditam em Cristo Bíblico. A própria Igreja aceita milagres e acredita na verdade histórica da história cristã.

Só que não há nenhuma razão lógica para se apontarem partes específicas de um texto sagrado e dizer "esta é literalmente verdade", "esta é historicamente importante, mas não literalmente verdade". Este é um exercício discricionário nada rigoroso e nada científico. Afinal o que tem a história de Cristo que a torne mais credível do que Antigo Testamento? Das duas uma, ou se acha que tudo é verdade literal, ou se acha que tudo tem que ser interpretado simbolicamente. É este o grande valor das declarações de Saramago. Elas mostram o absurdo de se considerar a Bíblia uma verdade literal. Mostram que este deus, mesmo que existisse, não nos interessaria.

Resumindo, aparte considerações sobre a escrita e as opiniões de José Saramago, toda esta hipocrisia já enjoa. Teria havido esta reacção se Saramago se tivesse pronunciado nos mesmos termos sobre um partido político, um clube de futebol ou uma minoria social? Dificilmente. A religião goza de privilégios que as suas características intrínsecas não lhe podem conferir numa sociedade que se diz igualitária e humanista. Tudo o que Saramago fez foi reduzir ao absurdo a mesma postura literal que todos os católicos tacitamente seguem quando vão à missa.

Anónimo disse...

Outra vez os mesmos argumentos?! Vocês são chatos até ao infinito, porra!
Boavida, não sabia que também és crítico literário! És mesmo? Não parece porque a tua opinião não está fundamentada. Isso de dizer que lhe "falta-lhe dimensão literária, profundidade, em suma qualidade", é o mesmo que dizer que o livro é fraco sem dizer nada de especial! A tua crítica é que é muito fraca, é nula, é apenas uma típica boca que se manda no café, mais nada!
Quanto à polémica, vou repetir o que já disse: ninguém usa a Ilíada, ou outro roamance qualquer, para justificar actos. Mas a Bíblia e o Corão (não me apetecia pôr letras capitais, é só para satisfazer e não ter que aturar o Rui Baptista) são usados todos os dias para justificar muitas acções! Ali em baixo dei o exemplo de um texto do Vaticano que diz que os actos homossexuais são inaceitáveis porque blá blá blá que está escrito no livro do Génesis, do Antigo Testamento (Baptista, estou a portar-me bem). E estas coisas afectam as pessoas, como é evidente!
Não é evidente que a Bíblia e o Corão foram e são manuais de maus costumes?
Não vos percebo! A mim parece-me muito simples! Ou vós estais todos completamente burros ou sou eu e o Saramgo que estamos tapados! Mas desconfio que sois vós porque o gajo ganhou um nobel, apesar de eu nem sequer gostar dos livros dele!
Não há mais ninguém, além de mim, do Rolando, e do Saramago, a pensar assim?
luis
(Baptista, aqui é uma assinatura artística, não digas nada!)

Rolando Almeida disse...

A Vera fez um comentário muito certeiro. É natural que um autor tenha bons e maus livros. Se o livro de Saramago é mau literariamente não o será concerteza por ter uma versão boa ou má de deus. Por outro lado, é falso afirmar que porque não se acredita em deus, há um problema a resolver com a divindade. Por definição um ateu não tem qualquer problema com deus. Não podemos pressupor que um filósofo da religião, por pensar argumentos da não existência de deus, que tem um problema com deus para o resolver. Tem um problema filosófico, isso sim. Creio que há uma hipócrisia em toda esta polémica. Mas desde quando é que não se pode usar insultos numa obra literária, mesmo que seja para insultar as divindades?Há dezenas de escritores consagrados que recorrem ao insulto nas suas obras, sem qualquer prejuízo moral ou literário.
Tal como a Vera não me identifico politicamente com o escritor, nem sou grande amante dos seus livros. Mas não vejo problema no nobel, ao contrário da Vera.

Rolando Almeida disse...

Luís,
Xiça, mesmo sem ler a tua última frase, em que me mencionas, estava já a gostar do que disseste. Isto é um comentário particular, mas pelo menos demonstras que argumentas quando queres. Só não percebo por que razão quando me insultaste ninguém escreveu um texto a censurar-te!!!!!
:-)

Anónimo disse...

Rolandinho, já estou aqui a deitar lágrimas com a emoção de haver uma chance de vir a ser teu amigo e de nos entendermos! Buá!
Voltando á realidade: tu a mim não me enganas, disse-te desde o primeiro comentário para te manjares! É claro que não tenho nada contra ti nem contra ninguém, mas tu é que me insultaste, não me obrigues a ir aos arquivos, desde burro, que escrevo muito mal (é verdade), e a dizer que sabes mais de física do que eu etc. É que tu és um gajo que se fia muito nas aparências: se um gajo não é de letras e dá uns erros já é um grande burro! Mas não é assim, tens muito que aprender. Não penses que eu não sei porque é que agora estás mais manso, olha que eu não ando a dormir! Não te vou dizer o que tu sabes, mas não penses que me enganas.
Mais, já estou farto de dizer que não tenho nada contra ti nem contra ninguém, mas se começais com merdas tedes que me aturar, e eu não vergo a espinha seja a quem for, podeis vir cá com as tretas de que fazeis e aconteceis, que trabalhais aqui e ali, e que sois muito espertos, que para mim é igual!
Não sei porque é que as nossas opiniões não podem coincidir?! Acho isso ridículo.
Aquilo em que nunca vamos coincidir é no estilo! Eu vou contuinuar a escrever como se estivesse numa tasca e sem a mínima preocupação em escrever bem para passar a ter status, e tu vais continuar a tua cruzada de te armar em fino, que és muito esperto, que tens uma revista, e que fazes e aconteces!
Mas como é que tu que és "filósofo" não pões a hipótese de algumas vezes o tasqueiro ter razão e do "filósofo" estar errado? É por causa dessas merdas que ainda não te livraste das aspas!
Quando fores ao Porto aparece para um café, eu até já te convidei!
Hasta luego!
luis

Anónimo disse...

Rolando, só mais uma coisa: não tinhas dito que não comentavas mais aqui porque os comentadores são uma desgraça? E não foi só uma vez... aliás eu até te perguntei onde andava a tua coerência.
Mas estiveste bem nessa dos insultos em obras literárias, que é uma coisa evidentíssima, só os parolos com mentalidade tacanha é que parece (é impossível, não pode ser, não são assim tão burros) que não conhecem grandes obras que têm muitas caralhadas e insultos!
Não percebo sequer como é que num blogue destes (talvez por ser este mesmo!!) se pode sequer pôr a questão do vernáculo no livro do Saramago! Me cago em Dios! Este blogue, que é o melhor que há em Portugal sobre ciência, e que é tão fracote, é o reflexo do mesmo Portugal que aqui se critíca e se tenta ridicularizar, sem os autores se aperceberem que essa é uma atitude cómica!
Até me apetecia dizer um foda-se mas não posso porque depois o comentário não passa pelo censor e o Rui vem me chamar à atenção que isso é linguagem do povo, mas eu que sou povão nem sei o que fazer, se me armar fino ou quê!
People, free your mind!
luis

Rolando Almeida disse...

Luís,
Bem sabes que eu amo-te muito com muita consideração e admiração.
Volta sempre

Anónimo disse...

Rolando, agora até dás conversa a anónimos covardes e nojentos que andam por estas caixas de comentários a enche-las de lixo que impede a alta qualidade da conversa entre gente inteligente como tu! Como estás mudado! Que manso andas!
luis

FÁBULA BEM DISPOSTA

Se uma vez um rei bateu na mãe, pra ficar com um terreno chamado, depois, Portugal, que mal tem que um russo teimoso tenha queimado o te...