sábado, 30 de agosto de 2008

Paleografia, polémicas e o redespertar do epicurismo

Desde a sua descoberta há pouco mais de sessenta anos, por um pastor que procurava uma ovelha perdida, que os manuscritos do Mar Morto perturbam pastores por todo o mundo e acendem controvérsias sortidas.

De facto, a história contemporânea dos pergaminhos, uma das fontes mais importantes sobre os primórdios do cristianismo, tem sido abalada por escândalos teológicos e académicos, estes últimos motivados pelas restrições ao seu acesso - embora tenham sido publicados na totalidade em 2001.

Na edição de 26 de Agosto do New York Times, ficámos a saber que os cerca de 15 mil frágeis fragmentos que compõem os 900 documentos do acervo serão disponibilizados online para que quem o deseje os possa estudar.

O interesse nos manuscritos traduz-se em inumeros pedidos de acesso ou mesmo de exposição dos mesmos que são complicados de satisfazer dada a sua provecta idade. Assim, sempre que os manuscritos (e as fotografias feitas na década de 50) saem da câmara especial em que são guardados e são expostos à luz, humidade e calor, deterioram-se mais um pouco. Aliás, a deterioração ocorre mesmo sem essa exposição, também devido à fita-cola usada pelos primeiros peritos nos seus esforços de reunir fragmentos num documento.

O projecto iniciou-se no âmbito da conservação dos manuscritos, ou pelo menos da informação que contêm, como explicou ao NYT Pnina Shor, que dirige o departamento de conservação da Israel Antiquities Authority.
The project began as a conservation necessity. We wanted to monitor the deterioration of the scrolls and realized we needed to take precise photographs to watch the process. That’s when we decided to do a comprehensive set of photos, both in color and infrared, to monitor selectively what is happening. We realized then that we could make the entire set of pictures available online to everyone, meaning that anyone will be able to see the scrolls in the kind of detail that no one has until now.
Mas se este escândalo académico está prestes a terminar já que, como diz Jonathan Ben-Dov, um académico israelita que participa no processo de digitalização, mesmo os estudantes graduados poderão olhar detalhadamente e sob todos os ângulos para os manuscritos, o escândalo teológico promete reacender em breve com a publicação do artigo do controverso Israel Knohl «The Messiah Son of Joseph: ‘Gabriel’s Revelation and the Birth of a New Messianic Model» na revista Biblical Archaelogy Review (BAR).

O artigo é uma interpretação do «Novo Manuscrito do Mar Morto em Pedra?», uma placa de pedra que parece datar do século I a. C. descodificada pela paleógrafa Ada Yardeni que publicou o texto traduzido na revista de história e arqueologia israelita «Cathedra» e na edição de Janeiro/Fevereiro da BAR.

O texto em hebraico, de natureza apocalíptica, apresenta a «revelação de que o arcanjo Gabriel vai despertar o Príncipe dos Príncipes três dias depois de sua morte». O texto está escrito, com tinta sobre a pedra, em 87 linhas e duas colunas (como na Torah), e algumas letras ou palavras inteiras foram apagadas pelo tempo. A análise de Knohl consiste essencialmente em decifrar a linha 80, onde figuram os termos «três dias mais tarde» seguidos por uma palavra pouco legível que, segundo o professor, significa «vive».

Esta novo manuscrito em pedra, que promete mais controvérsia que a que já provocou, corrobora a tese anterior de Knohl proposta com base em textos dos Manuscritos do Mar Morto e expressa no livro «The Messiah before Jesus. The Suffering Servant of the Dead Sea Scrolls» (discutido aqui em português).

Knohl considera que quer esta visão de Gabriel quer os manuscritos do Mar Morto que analisa no seu livro vão alterar a nossa visão do cristianismo e«pedem uma revisão total do que se pensa sobre messianismo, quer judaico quer cristão».

Estou absolutamente certa que o tema ainda vai aquecer mais, se a ciência ajudar a confirmar a autenticidade do «Hazon Gabriel», mas devo confessar que em questões de paleografia estou mais interessada nas surpresas que nos estão reservadas pela Villa dei Papyri em Ercolano (Herculaneum), enterrada na lava expelida pelo mesma erupção do Vesúvio que destruiu Pompeia.

A Villa dei Papyri, que se pensa ter pertencido a Lucius Calpurnius Piso, sogro de Júlio César, deve o seu nome aos muitos papiros que nela já foram descobertos, a maioria textos epicuristas, em especial do filósofo Filodemo de Gadara. As escavações na vila recomeçaram em finais do ano passado depois de um interregno de 8 anos, muito «escândalo académico» e de uma campanha por parte das maiores autoridades mundiais em literatura clássica, que consideravam que se as escavações não fossem retomadas perder-si-a «um dos maiores tesouros culturais de sempre» Pouco depois, a vila revelou um tesouro inesperado, um trono de madeira e marfim profusamente esculpido com o deus Attis.

Richard Janko, que dirige o departamento de estudos clássicos na Universidade de Michigan, acredita que a Villa dei Papyri revelará o maior número de novos textos desde aqueles que foram redescobertos no século XVI, nomeadamente o poema que dá nome ao blog, e que foram a base do Renascimento e moldaram o humanismo secular ocidental.

Como termina Luke Slattery no The Australian, num artigo sobre a escavação de que recomendo a leitura, os tesouros da Villa dei Papyri estão a permitir que o mundo actual aprofunde o conhecimento desta corrente filosófica, tão perseguida e vilipendiada, propiciando um redespertar do epicurismo. Para além disso:
"Empty is that philosopher's argument by which no human suffering is therapeutically treated," said the philosopher of the Garden. "For just as there is no use for a medical art that does not cast out the sickness of the body, so there is no use in philosophy, unless it casts out the sickness of the soul."

That sickness, in Epicurean terms, is rampant desire. If the Villa of the Papyri were to contribute nothing more to the 21st century than the taming of consumption, it might help save the planet as well as the soul.

3 comentários:

Armando Quintas disse...

Essas controvérsias e polémicas existem porque as pessoas são burras o suficiente para pensarem que tudo foi como é hoje, que o cristianismo sempre existiu desde que o homem é homem, que os homens viveram com os dinoussauros e se n fossem 1 chatos chamados cientistas muito mais gente engolia tretas.
O mundo antigo é foi muito diferente do que nós pensamos, tal como hoje se faziam e escreviam mentiras para se justificarem muita coisa.
A igreja católica tentou apagar o passado e reescrever-lo à sua maneira como o "partido" da obra de 1984.
Felizmente não o conseguiu de todo e de mau grado teve que aceitar um renascimento.
Existem tantas versões de evangelhos, de testemunhos que se contradizem sobre as origens do cristianismo, sobre o próprio jesus, que dificilmente se chega a saber o que é verdadeiro e o que é falso, o que justificava o que.
Uma coisa já está mais que provada, é que as coisas n foram como a igreja as conta, resta saber como foram de facto.

perspectiva disse...

Actualmente, mesmo teólogos e filólogos mais liberais têm reconhecido que os evangelhos e as cartas paulinas foram escritos entre 40 e 60 dC.


Os mesmos são inteiramente confiáveis, na medida em que consistem num relato fidedigno e circunstanciado de eventos singulares, relacionados com a encarnação, nascimento virginal, milagres, crucificação e ressurreição física de Jesus Cristo.

Os relatos dos evangelhos, apresentando detalhes sobre nomes de pessoas e locais, pretendem ser relatos históricos de testemunhas oculares, passíveis de confirmação pelas pessoas contemporâneas dos factos por eles descritos.

Os Romanos e os Judeus, principais interessados na refutação das afirmações dos primeiros cristãos, nunca conseguiram apresentar o corpo de Jesus Cristo. Por seu lado, os primeiros cristãos, alguns dos quais muito céticos e mesmo inimigos do Cristianismo, foram totalmente transformados pela convicção (que defenderam sem qualquer vantagem e com perigo real para a sua vida) de que Jesus Cristo tinha ressuscitado.

Ora, porque Jesus ressuscitou, podemos saber:

1) Deus está acima das leis naturais;

2) Deus não necessita de tentativas e erros para "evoluir" corpos incorruptíveis;

3) Existe vida para além da vida;

4) Podemos ter a vida eterna através de Jesus Cristo;

5) As decisões que tomarmos hoje, acerca da crença no Criador, repercutem-se na eternidade;

Espectadores disse...

Cara Palmira,

«De facto, a história contemporânea dos pergaminhos, uma das fontes mais importantes sobre os primórdios do cristianismo»

Se, com esta frase, pretende que alguns dos pergaminhos do Mar Morto sejam contemporâneos de Jesus, até concedo, visto que a comunidade ainda estava activa durante o ministério de Jesus.

Mas a sua frase parece sugerir que os Manuscritos do Mar Morto são importantes para compreender as origens do cristianismo propriamente dito. Isso é muito discutível.

O contexto da comunidade essénia que guardava esses textos (alguns com um ou dois séculos de idade ao tempo de Cristo - relativos à Torá e a livros não canónicos - p. ex., Enoc) é totalmente diferente do contexto em que Jesus e os seus discípulos se moviam. A tese do Jesus essénio já saiu de moda há mais de uma década.

A comunidade que guardava esses manuscritos era puramente judaica, não se conhecem seguidores de Cristo entre os seus membros, nem qualquer "flirt" entre essénios e cristãos...

«tem sido abalada por escândalos teológicos e académicos, estes últimos motivados pelas restrições ao seu acesso - embora tenham sido publicados na totalidade em 2001.»

Há quem goste do "suspense" e da aparência de escândalo ou polémica. O tema "Jesus" está sempre na moda, porque há uma horda de gente mortinha por meter as mãos numa qualquer prova que enfraqueça os sólidos alicerces históricos do cristianismo.

No entanto, que eu tenha conhecimento, a pessoa de Jesus não é mencionada em nenhum dos manuscritos do Mar Morto.

Se calhar, os manuscritos serão mais enervantes para o judaísmo ortodoxo, ao revelar detalhes sobre a história de uma comunidade separada, sedeada às portas da Cidade Santa, do que propriamente para o cristianismo.

Bernardo Motta

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